Piso orçamentário na Saúde pública - Por Clenio Jair Schulze

27/11/2017

Uma das principais questões que norteiam a concretização do Direito à Saúde diz respeito ao seu financiamento.

O artigo 198, §2º, inciso I[1], da Constituição da República Federativa do Brasil e os artigos 6º[2] e 7º[3] da Lei Complementar 141/2012 estabelecem um mínimo do percentual da arrecadação que a União, os Estados e os Municípios devem alocar para o financiamento da Saúde.

Contudo, tais percentuais não garantem, por si só, a proteção adequada ao aludido Direito fundamental. Isso já ficou demonstrado a partir da crise financeira dos últimos anos que culminou que a queda da arrecadação e redução, portanto, dos repasses.

Caso interessante acontece com os Municípios, que geralmente aplicam em Saúde mais do que o limite exigido constitucionalmente, principalmente porque são os responsáveis prioritários pelo cumprimento das decisões judiciais que determinam o fornecimento de tratamentos e tecnologias em Saúde.

Caso interessante é o do Estado do Rio de Janeiro, que não vinha cumprindo o parâmetro mínimo constitucional, o que levou o Ministério Público a ingressar com uma ação civil pública. Após a decisão liminar pelo juízo de primeiro grau, a suspensão da decisão e o posterior julgamento do recurso de agravo de instrumento, foi fixada a condenação do ente da Federação a aplicar os 12% na área da Saúde.

Em resumo, a decisão[4] assentou que: (a) não há discricionariedade do administrador estadual para deixar de cumprir o mínimo constitucional em Saúde; (b) é inaplicável a teoria da reserva do possível, pois ausente comprovação da efetiva impossibilidade de cumprimento da ordem judicial; (c) o administrador já alocou recursos públicos a outras áreas que não possuem prioridade se comparadas com a Saúde – construção de linha de metrô; (d) houve violação ao princípio da eficiência na alocação dos recursos públicos (artigo 37 da Constituição); (e) há inadequada concessão de isenções e renúncias fiscais em outros setores menos prioritários.

Tecnicamente, é acertada a decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, pois à Saúde não se pode fixar tratamento idêntico ou inferior a outras áreas menos importantes para a população, seja em razão das normas constitucionais ou mesmo em decorrência das necessidades humanas.

Assim, é importante que tal precedente judicial seja confirmado pelos Tribunais Superiores (STJ e STF) – pois ainda não houve o trânsito em julgado, com a finalidade de estancar os casos de descumprimento dos limites mínimos orçamentários de gastos com a Saúde. Isso evitaria a Judicialização e permitiria maior concretização do Direito à Saúde.

 

[1] Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: [...] § 2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre: I - no caso da União, a receita corrente líquida do respectivo exercício financeiro, não podendo ser inferior a 15% (quinze por cento);

[2] Art. 6o  Os Estados e o Distrito Federal aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde, no mínimo, 12% (doze por cento) da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam o art. 157, a alínea “a” do inciso I e o inciso II do caput do art. 159, todos da Constituição Federal, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios.

[3] Art. 7o  Os Municípios e o Distrito Federal aplicarão anualmente em ações e serviços públicos de saúde, no mínimo, 15% (quinze por cento) da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam o art. 158 e a alínea “b” do inciso I do caput e o § 3º do art. 159, todos da Constituição Federal. 

[4] AGRAVO INTERNO NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. REPASSE DE VERBA. SAÚDE PÚBLICA. TUTELA DE URGÊNCIA PARA DETERMINAR, ENTRE OUTRAS PROVIDÊNCIAS, OS REPASSES EM PROPORÇÃO MENSAL. INSURGÊNCIA ESTATAL. ATRIBUIÇÃO DE EFEITO SUSPENSIVO. AGRAVO INTERNO MANEJADO PELO PARQUET.

- Na origem, cuida-se de Ação Civil Pública com vistas à realização de repasses regulares e mensais do equivalente a 12% da arrecadação mensal dos impostos mencionados no artigo 6º da LC 141/2012 ao Fundo Estadual de Saúde (FES) para financiamento das ações e serviços públicos de saúde (ASPS).

- Efeito suspensivo concedido pela Relatora para sustar os efeitos da Tutela de Urgência conferida pelo Juízo de primeiro grau, fundada na gravíssima possibilidade de dano inverso, dada a severa crise econômico-social enfrentada pelo ente público, com destaque ao notório estado calamitoso de suas finanças, a exigir singular prudência.

- Decisão da Presidência deste E. Tribunal de Justiça em atenção e alinho ao decidido neste recurso.

- Após cautelosa instrução e resguardo do contraditório, sobretudo com a suspensão do processamento para tentativa de celebração de TAC, restou demonstrado que a inércia estatal remanesce, ainda que de modo parcial, em descumprimento aos ditames constitucionais.

- Portanto, em face da ausência e/ou insuficiência de repasses financeiros regulares e automáticos ao fundo estadual de saúde, legitima-se o controle judicial de políticas públicas, garantindo que os repasses sejam efetivados regularmente e com periodicidade, sob pena de comprometer a efetivação judicial do direito à saúde no Estado do Rio de Janeiro e a continuidade de tão relevante serviço público.

- Discricionariedade administrativa que não se confunde com arbitrariedade. Se a Constituição já estabelece uma cota mínima de despesa na efetivação do direito fundamental à saúde, a discricionariedade administrativa encontra um obstáculo constitucional intransponível à luz da força normativa dos princípios da eficiência e da continuidade do serviço público, tendo em vista que o direito à saúde básica compõe o mínimo existencial, de modo a afastar o argumento da reserva do possível, que não pode ser invocado em termos genéricos e abstratos.

- Inteligência dos artigos 198 e 212 da CRFB/1988 e 6º da LC 141/2012, à luz dos princípios da proporcionalidade, eficiência administrativa, continuidade do serviço público e mínimo existencial.

AGRAVO INTERNO CONHECIDO E PROVIDO.

(TJRJ, AGRAVO INTERNO NO AGRAVO DE INSTRUMENTO n° 0023334-05.2016.8.19.0000, DÉCIMA QUINTA CÂMARA CÍVEL, RELATORA DESEMBARGADORA MARIA REGINA NOVA, julgamento de 14/11/2017)

 

Imagem Ilustrativa do Post: Health Care Costs // Foto de: 401(K) 2012 // Sem alterações

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