Pibe: inspirai nos, os defensores criminais

26/11/2020

Coluna Defensoria e Sistema de Justiça / Coordenador Jorge Bheron

Ele se foi. Na linguagem que uso com Miguel, o meu filho mais novo, El Pibe virou estrelinha. Não, não posso falar isso. Diego sempre foi uma estrela e não merece na eternidade ingressar no diminutivo. Um amigo, em um recado na sua rede social, lembrou de como eram os domingos nos distantes anos 80: televisão ligada na Bandeirantes e já começava com campeonato italiano logo cedo. Não havia ainda lido Gramsci, não conhecia A Questão Meridional, o meu encanto pelo sul não era ideológico, era pura estética. Mas, como essas lembranças podem se relacionar com o direito? É essa a proposta do texto.

Menino humilde, Maradona antes de estrear no Argentino Juniors, jogou bola pelas periferias portenhas. Não havia essa preocupação com táticas ou mesmo o ingresso precoce em “escolhinhas” para formatar os jovens. O seu interesse era obter o prazer com a bela jogada, com o drible e o gol. Essa busca pelo prazer não se limitou as quatro linhas, mas não posso julgar o homem Diego; afinal, todos temos nossos defeitos, imperfeições e vícios. Eu falo do meu ídolo que partiu precocemente. Aliás, que não poderia ter partido ainda que se tornasse centenário ou milenar. Antes de deixar o Planalto Central, me recordo que no ano de 1990, Maradona foi responsável pela primeira grande crise na minha relação com Deus. Como Ele deixou os argentinos vencerem aquele jogo da Copa da Itália? Uma, isso mesmo, uma única jogada dos nossos rivais e nossos vizinhos venceram o jogo. Logo eles que quase não classificaram para as oitavas de final? Depois do drible que o Taffarel tomou comecei a rezar e quando acabou o jogo, decidi brigar com o Criador. E olha que não sabia do episódio da água batizada, que foi revelado muitos anos depois.

Mas, voltemos ao Pibe de Oro. Ele tinha prazer e era intenso no futebol. Esses são os pontos relevantes para esse texto. Será que as defesas criminais não se burocratizaram? Não se tornaram assépticas? Onde se encontra a indignação de defensores públicos e advogados? Em tempo, manifestação em redes sociais não conta, pois, até hoje, nunca vi um alvará de soltura assinado ou a superação da mentalidade autoritária em razão de um “tuitaço”.

A defesa criminal é formada atualmente por profissionais que se equiparam aos jogadores formados em “escolhinhas” de futebol. Podem saber muita teoria, mas não trazem a intensidade e o amor na sua função.

Como prova dessa apatia, os advogados e defensores públicos já não se importam em ser destratados e humilhados por magistrados – quando não acompanhados pelos membros do Ministério Público –, tal como expressamente denunciado por Lenio Streck:

“Exercer a advocacia nestes tempos difíceis é um exercício de humilhação cotidiana, como me disse dia desses uma pessoa muito próxima (...) Advogados de todo país: uni-vos. Nada tendes a perder depois de tudo que já perderam[i]

É claro que, nessa verdadeira cruzada pela busca do respeito aos defensores, não se está aqui a defender a falta de educação. Há de ser enérgico, é preciso demonstrar que sob um terno bem cortado ou da loja mais barata da cidade, existe uma pessoa que merece ser tratada com dignidade e, caso isso não ocorra ou o desrespeito se volte ao réu é exigida uma intervenção mesmo que enérgica. A submissão e o medo não levaram advogados e defensores públicos a lugar algum, ou melhor, dirigiu mais facilmente os seus defendidos para o cárcere.

Os advogados e defensores públicos que destoam desse modelo burocrático não só são rejeitados pelos magistrados que são incapazes de entender a relevância da defesa técnica, como ainda discriminados por seus pares - o intenso e apaixonado pela defesa é tido como um “porra louca, um indomável e problemático.

Maradona foi capaz de lances ontológicos: o gol de placa na Copa do México, a bicicleta com a camisa do Barcelona o quase gol do meio de campo na Copa América de 1989 em pleno Maracanã no jogo contra o Uruguai. Em comum, essas jogadas foram marcadas pela ausência de medo em se arriscar.

Não é hora de saudosismos, Maradona merece ser celebrado. Como defensor público, ainda que possua todas as limitações cognitivas, buscarei me inspirar nele para não temer novas trilhas a serem desbravadas no exercício da defesa técnica. O consolidado, ainda mais considerando a clientela da Defensoria Pública, não se mostrou capaz de combater o grande encarceramento.

Dieguito no curso de sua intensa vida não teve receio nenhum em tornar públicas as suas convicções. Leonardo Boff, ao tratar da morte do argentino, não quis adentrar na querela sobre quem seria o melhor jogador: Maradona ou Pelé. Porém, não deixou passar a oportunidade para resgatar a relevância de Diego além dos gramados:

Pelé e Maradona são gênios. Cada um com seu estilo. Mas me permito ver uma diferença: Pelé tinha pé e a cabeça era para fazer gols com ela. Maradona tinha pé e cabeça que fazia também gols com ela e ainda pensava, mostrando que tinha lado: o dos oprimidos, representados por Lula.”[ii] (destaquei)

E nós, defensores criminais, diante desse modelo hegemônico amorfo, será que somos, de fato, capazes de bradar para a sociedade o nosso compromisso com o Texto Constitucional? Teríamos essa coragem? Apresentamos alguma coesão para demonstrar o nosso repúdio aos rábulas que ocupam as grades televisivas com seus programas sensacionalistas que desinformam a população? Seria um delírio, e não uma verdadeira lembrança, o apoio dado por alguns advogados ao “espetacular” Projeto de Dez Medidas contra a Corrupção?

Viva Don Diego Armando Maradona! À sua memória, me resta tentar algo novo sempre pelos fóruns, cadeias e órgãos públicos. A mesmice é proibida! D10S’: obrigado por ter me feito amar o futebol, obrigado por me fazer amar a arte e o espetáculo. Agradecido por me mostrar o valor de ser alguém intenso; sim, vale a pena! Reconheço minha dívida por saber que é válido lutar por aquilo que acredita – a dignidade da defesa criminal – ainda que isso possa desagradar. E, caso eu esqueça de seus ensinamentos, ainda que volte a discutir a relação com Ele, me “obrigue” a ver aquele jogo da Copa Mundo de 1990 de novo.

 

Notas e Referências

[i] STRECK, Lenio. Advocacia virou exercício de humilhação e corrida de obstáculos. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-jul-28/senso-incomum-advocacia-virou-exercicio-humilhacao-corrida-obstaculos

[ii] https://twitter.com/LeonardoBoff/status/1331673025788452864?s=20

 

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