Pessoalidades   

09/02/2022

 

Indivíduo: “o ser humano considerado isoladamente na comunidade de que faz parte” (Houaiss). Esse atributo é invenção da burguesia. O indivíduo, nesse sentido, como ser destacado da indistinção, é uma criação da Modernidade afirmada pela Revolução Francesa. O sujeito de direitos, ou com direitos, pela tão só condição de estar no mundo, é uma construção intelectual do Iluminismo. Antes, em não sendo nem nobre nem clérigo, uma pessoa não era um sujeito; era um plebeu, um nada, um ninguém. O liberalismo propiciou a evolução política do subordinado ao suserano a titular de si próprio.

Qual a condição para ser sujeito? Além das afirmações cidadãs de direito, que vêm sempre e mais certificando com essa qualidade pessoas que não eram assim consideradas, sujeito, nas relações cotidianas, é o indivíduo com determinação sobre si, responsável e responsabilizável por seus atos. Ou seja, sujeito é o corpo com capacidade de pensar e de se determinar conforme seu pensamento; só um corpo com capacidade de autodeterminar-se pode assumir compromissos e responder por seus gestos.

Onde há um sujeito, pois, há deliberação, há vontade. Os burgueses, quando inventaram e afirmaram a individualidade, fizeram-no para opô-la aos nobres e ao clero. Hoje, com mais ou menos consciência disso, já nascemos indivíduos com uma lista de direitos, o que torna difícil aceitar a condição de mero objeto das relações sociais de poder. É verdade que os liberais iluministas foram traídos pela burguesia positivista, estabelecendo-se nova e perduradoura ordem conservadora, com uma hierarquia social que releva o dinheiro e converte tudo em mercadoria; não obstante, inegavelmente restaram bons avanços nas condições gerais de estar no mundo.

Um desdobramento da invenção do indivíduo foi a individualidade e, consequentemente, a privacidade. A vida privada é a resguardada da vida pública. Associa-se vida privada à vida íntima, contudo, há uma diferença importante. A vida privada é aquela em que o Estado ou os governos não se devem meter; é aquela esfera da vida cidadã que não deve ser governada, sobre a qual deve incidir o mínimo de especificações legais. Já a vida íntima é o âmbito personalíssimo, o mínimo individual que a ninguém mais concerne.

Nesse espaço meu que só a mim pertence, nem outros indivíduos privados, ainda que de minha relação próxima ou mesmo afetiva, se deveriam imiscuir. Quero ressaltar: dado que se trata de um valor constituído, não se trata de se poder defender da intromissão de alguém – o que sempre se pode –, mas de cada um conter-se a si próprio no enxerir-se na vida do próximo. Creio, todavia, que a reserva da intimidade, ainda que seja coisa sobre a qual muito se fale, tem sido aviltada. As pessoas não se conservam o seu mínimo íntimo e não se furtam de invadir o âmago existencial de outrem.

Exemplo: eu tinha amiga minha como vítima de um casamento machista típico. Vista a coisa com olhos de querer ver, contudo, percebi que não é bem assim. É verdade que o marido contempla suas suspeitas: controla o hodômetro do carro, a conta e o sistema de mensagens do celular, o computador, o gasto de combustível, o perfume, o GPS, o cheiro da calcinha, o lixo do banheiro; usa aplicativos cibernéticos e não descuida das fofocas. Faz o que pode e o que não pode. Bem, mas e daí? A mulher seria vítima disso? Mais ou menos. Primeiro, ela trabalha e tem renda suficiente para viver com dignidade sem o marido; segundo, o que mais interessa: ela faz a mesma coisa, ou pelo menos tenta.

Claro, o marido leva as vantagens de ser “macho” em uma sociedade machista. Então, dados os hábitos dominantes, ele tem bastante vantagem relativa. Mas, estranhamente, a mulher não se rebela contra o estado de coisas em si. Ela só lamenta não dispor de igual poder controlador; descaradamente, diz que faria o mesmo, se pudesse. Ela, simplesmente, também e igualmente quer bisbilhotar. Claramente, há um clima compartilhado de invasão de intimidade. Esse casal tem cidadania, tem privacidade, mas cada parte sofre invasão de intimidade pela outra. O que os mantém em estado conjugal? Mero hábito? Uma indignidade a preservar?

Vida civilizada pede o conceito de pessoalidade. É imperativo que haja um conjunto de qualidades que defina o humano além de um macaco evoluído. Um humano que meramente cumpre os (maus) costumes que o encerram é um humano como espécie, mas é um humano sem excelência substantiva. Não há humanidade como vida culturalmente construída sem intimidade. Parafraseando Christopher Lasch: ninguém sobrevive sem um mínimo eu. E isso não virá da repetição de (maus) hábitos, mas da invenção e do exercício espontâneo de modos mais inteligentes e libertários de existir.

 

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