Coordenador: Marcos Catalan
Há poucos dias, em Porto Alegre, vivenciou-se o ato de censura à exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, um ato conduzido pelo conservadorismo e pela intolerância do senso comum e executado por uma instituição financeira, o banco Santander. Por isso, parte-se do pressuposto de que o Santander visa, tão só, ao lucro, que é mantido principalmente com as voluptuosas somas de investimentos de certo grupo de pessoas, que, não por coincidência, é o mesmo que exaltou as suas perturbações com o conteúdo da arte exposta. No entanto, não se está aqui para discutir se as obras deviam ter sido expostas ou não, muito menos se quer demonstrar a relação perversa entre o sistema financeiro e essas exposições.
O que se pretende é instigar as leitoras e os leitores a pensarem quais poderiam ser os motivos que levaram a tamanha perturbação das mentes conservadoras ante a matéria e a realidade da diversidade sexual. Nesse sentido, desde uma perspectiva feminista, provoca-se: por que tais perturbações não ocorrem face às formas majoritárias de publicidade que objetificam as mulheres? Imprescindível, para tanto, considerar que tanto a criação artística como a publicitária derivam do ato de criar e, portanto, que se encontram impregnadas de subjetividade; soma-se à arte publicitária uma finalidade objetiva: adequar-se aos meios de determinado produto ou serviço[1].
Ocorre que os detalhes de conduta, que são comuns a todos os sujeitos, formam o modo de viver da cultura e das pessoas[2], sendo que a mídia, especialmente como comunicação de mercado, utiliza do corpo para a promoção de venda, oferecendo corpos femininos como pedaços de carne[3]. Isso não está a perturbar! A presença da mulher é notável em anúncios publicitários de produtos cujos destinatários não são sequer elas mesmas, mas homens. A mulher está para servir de elemento persuasivo e de desejo, um objeto de consumo. Não raras são as campanhas publicitárias de desodorantes, carros e cervejas, dentre tantas outras, em que as mulheres estão retratadas como o fim da utilização do produto, como o objeto a ser, de fato, alcançado pela compra do que se oferta.
Cabe lembrar que os veículos de comunicação são sustentados por grupos econômicos que obviamente visam a lucros, os quais poderão ser obtidos com a venda de produtos nos espaços de publicidade, a partir de discursos persuasórios. Dessa forma, necessário o questionamento das representações da mídia quanto à objetificação da mulher[4], que permitiu evidenciar que o patriarcado, com o apoio do discurso midiático, fundamenta sua pretensão política, para reafirmar certos espaços e condutas à mulher, quanto para combater o feminismo, culpando-o de esgotamento das mulheres.
Depreende-se das investigações sob essa ótica, que o patriarcado é uma forma de organização social androcêntrica[5], que favorece o homem ao projetá-lo como padrão de humanidade[6], uma vez que o androcentrismo é a característica cultural que sustenta a mulher como parte de uma minoria. Por esse motivo, o posicionamento de Alda Facio é de que apenas o conhecimento por parte das mulheres de sua condição possibilitará lograr e impulsionar uma resistência à própria negação de sua humanidade[7], já que o desenvolvimento da sociedade se deu mediante a exclusão das mulheres em decisões fundamentais, com ênfase àquelas que institucionalizam o controle de sua sexualidade, e que as bloqueia da apropriação de seus próprios corpos e da ocupação de determinados espaços sociais[8].
Já afirmava Simone de Beauvoir sobre a necessária intervenção histórica para moldar uma nova forma de pensar sobre a mulher. Para a autora, a liberdade deve ser o oposto da opressão, defendendo em seus escritos, inseridos no contexto da reconstrução dos costumes no pós-guerra, que a base moral e cognitiva da cultura está sustentada na misoginia, pois toda vez que o feminino recebe algum tratamento na história, o tem no lugar do outro[9]. Dessa forma, a mulher possui um status secundário na sociedade, um papel social específico e delimitado pelo patriarcado, instituição muito anterior ao capitalismo e à sua fase neoliberal, que atualmente tenta ressignificar as opressões históricas sem, ao menos, considerar a perspectiva e a teoria feminista[10].
Logo, banalizou-se o corpo da mulher, a fim de estabelecer um padrão de corpo feminino. As mudanças do modelo de subjetividade e de corpo feminino em relação aos períodos culturais patriarcais e desde o século XX dividem as mulheres entre a pura e recatada, virgem quando solteira, e, quando casada, devotada e dependente financeiramente do esposo; e, de outro, a mulher sensual e provocante, estável profissional e financeiramente, mas submetida às imposições da mídia[11], que usa as suas estratégias de “marketing” para criar desejos, anseios e angústias, a fim de que os sujeitos consumam o que ela lança no mercado[12].
A consideração das mulheres como objetos sexuais para o prazer dos outros está na base da construção histórica de sua opressão, assim seus corpos objetificados são veiculados nos espaços públicos e privados de educação e cultura. A exibição sexualizada das mulheres na televisão possui um caráter pedagógico, pois ensina um estereótipo de mulher-objeto ao conjunto de mulheres e as valoriza quando se encaixam nos padrões de beleza[13]. A mídia impõe, portanto, padrões estéticos, éticos e políticos, influenciando, cada vez mais, a existência do sujeito, e atingindo, assim, a sua subjetividade por meio das suas mensagens.
Voltando à pergunta inicial: por que tais perturbações não ocorrem face às formas majoritárias de publicidade que objetificam as mulheres? Entende-se que a naturalização da inferioridade da mulher, bem como a sua consideração enquanto objeto, cuja origem reside no patriarcado, não permite sequer que esse grupo de pessoas enxergue a contradição na sua perturbação seletiva, que censura exposições artísticas ao mesmo tempo que exalta a mulher-objeto para o seu deleite.
Notas e Referências:
[1] SALLES, Cecília Almeida. Redes da criação construção da obra de arte. São Paulo: Horizonte Vinhedo, 2006.
[2] BORIS, Georges Daniel JanjaBloc; CESIDIO, Mirella de Holanda. Mulher, corpo e subjetividade: uma análise desde o patriarcado à contemporaneidade. Rev. Mal-Estar Subj., Fortaleza, v.7, n. 2, set/ 2007, p. 455-456.
[3] LESSA, Patrícia. Mulheres a venda: uma leitura do discurso publicitário nos outdoors. Londrina: EDUEL, 2005, p.47.
[4] DURHAM, MeenaskhiGigi. O efeito Lolita: a sexualização das adolescentes pela mídia, e o que podemos fazer diante disso.São Paulo: Larousse do Brasil, 2009, p. 160.
[5] HIRATA, Hirata, Helena; LABORIE, Françoise, et all. Dicionário Crítico do feminismo. São Paulo: UNESP, 2009, p. 59.
[6] LERNER, Gerda. A Origem do Patriarcado. Barcelona: Editorial Crítica, 1990 Barcelona: Editorial Crítica, 1990, p. 55.
[7] FACIO, Alda. Hacía otra teoría crítica del derecho. In: HERRARA, Gioconda (org). Las fisuras del patriarcado, Reflexiones sobre Feminismo y Derecho. Ecuador: FLACSO, 2000, p. 34-37.
[8] SAFFOTI, Heleieth I.B. Gênero Patriarcado Violência. São Paulo: Expressão Popular, 2015, p.73.
[9] BEAUVOIR, S. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970, p. 242.
[10] SAFFIOTI, Heleieth I.B. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987, p. 44.
[11] BORIS, Georges Daniel JanjaBloc; CESIDIO, Mirella de Holanda. Op.cit, p. 462.
[12] FRASER, Nancy. El feminismo, el capitalismo y la astucia de la historia. Revista New LeftReview. España, nº 56, 2009, p. 129.
[13] LAGARDE Y DE LOS RÍOS, Marcela Los cautiverios de las mujeres: madresposas, monjas, putas, presas y locas.México: UNAN, 2014.
Imagem Ilustrativa do Post: stand alone in the void of your mind. // Foto de: Mackenzie Greer // Sem alterações
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