Performances olímpicas e os saberes desprezados entre a vitória e o fracasso

10/09/2021

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

O Brasil voltou a se emocionar ao acompanhar participações históricas de vários atletas, deixando a sua grande mensagem esportiva nas Olimpíadas de Tóquio, em 2021. Por muitos motivos, compreendeu-se que esse ano não seria igual a todos os outros. A tradição das competições olímpicas sempre ofereceu inovações, unindo estímulos de retorno econômico a outras narratividades esportivas, coisas que são melhor exploradas como ferramentas de marketing digital para os mercados. Elas aproximam países e públicos de várias idades dos jogos internacionais e despertam interesses incomuns sobre a vida dos atletas, sobre as modalidades esportivas e histórias de culto à superação.

Para a carreira de um atleta de alto desempenho, disputar as olimpíadas simboliza chances gloriosas de consolidar a sua autossuficiência, ultrapassar gradações de omissão das políticas públicas de emprego no seu país, receber uma nacionalidade de "presente” ou bolsas esportivas de estudo para atletas refugiados (O mérito olímpico como barganha de acesso à direitos humanos fundamentais). A carreira do esporte é uma via alternativa e tem a qualidade de libertar da inferioridade social, de trazer sucesso à imagem, e de firmar diferenças pessoais através de feitos extraordinários.

Se entre a performance e a identidade há uma nítida relação de sujeição, a aceitação de si passa por um elevado nível de apostas individuais nos rendimentos: "Sinto-me mais eu" à medida que me percebo como um vencedor.

No Brasil, a sensação de esperança e de orgulho olímpico foi renovada pela jovem geração de atletas que esteve nos representando. O pódio foi liderado por medalhistas mulheres de diferentes trajetórias, idades e situações socioeconômicas. Elas conquistaram 9 das 21 medalhas disputadas até o momento. É surpreendente que o país tenha chegado tão longe, superando resultados anteriores aos jogos do Rio, em 2016. Martine Grael e Kahena Kunze, na modalidade vela; Ana Maria Marcela Cunha, na maratona aquática; e Rebeca Andrade, na Ginástica artística foram alguns nomes de destaque na medalha de ouro. Mais do que isso. Rebeca, uma jovem preta da periferia de Guarulhos, saltou para uma majestosa trajetória olímpica, após ter sido descoberta por um projeto de inclusão social no esporte.

Diferentemente das outras campeãs, Rebeca não teve inspiração de outros atletas na mesma família. Antes de conhecer o alcance do seu potencial, quase não recebeu apoio financeiro suficiente para trazer tal honraria ao nosso país. É inquestionável que Rebeca, com apenas 23 anos, tenha se tornado um grande ícone de representatividade, reerguendo uma identidade nacional vitoriosa. 

Sem que nada mais fosse preciso acrescentar, ao som do hino brasileiro “baile de favela”, Rebeca constituiu, a seu modo, uma gramática de sucesso, o padrão-ouro da felicidade, que todo atleta almeja experimentar. À medida que isso acontece, é inevitável que uma dimensão de fracassos e de sofrimento alheio sejam frustradas como etapa fundamental de toda prática competitiva. Alguém irá perder, e isso é um fato e também um fardo.

Junto à linguagem do corpo do atleta, unem-se à ele multidões de sonhos fartos, além de outros tantos sonhos que serão desfeitos pelas ocasiões de um duro caminhar de fracassos. O que não nos contam é que quem sai vitorioso também pode perder. Com isso, me refiro ao fracasso dos corpos que não atendem às normas da feminilidade, da corporalidade hegemônica, da binaridade de gênero, ao padrão de cor e de beleza, dos corpos Queer, com deficiência, adoentados, não produtivos. São alguns desses exemplos diários que atletas e pessoas comuns têm de lidar,  e isso em nada contribui para diminuir o mérito individual dedicado à Rebeca e à Simone Biles. 

Na disciplina das práticas esportivas o suplício está presente como uma bússola, um dispositivo que administra o controle da vida, do tempo, do trabalho e da persistência ao alcance dos sonhos.

De antemão, a busca por auto realização impõe-se pelo teste de produtividade para todos nós porque, no mundo real, pessoas comuns também são submetidas ao controle punitivo e pela racionalidade da performance econômica. Em relação às conquistas citadas, não se pretende aqui estampar vitórias de gênero pontuais, simulando-as, como exemplo de párias chances de igualdade. O interesse demonstrado é sobre a falta de uma avaliação perigosa, que transforma histórias de superação em propagandas de puro proselitismo neoliberal. Afinal, parece que ao escrever uma história vitoriosa de sucessos, os capítulos da dor deverão auto elaborar o seu autor por meio do contato inadiável com o sofrimento, transformando-o, assim, em fórmulas vendáveis de sucesso em títulos como: ‘O que acontece quando o que esperamos da vida não acontece?”.

A narrativa do sofrimento introduz disputas subjetivas em nós, a tal ponto, que uma história ruim sempre pede por uma ainda pior, e isso acaba com a troca de conselhos mesquinhos e falsas disputas sobre quem perdeu mais. O sofrimento é uma fábrica de sentimentos morais e de racionalidades econômicas, por isso, a competição, assim como a dinâmica da vida social, tem como demanda a legitimidade de quem sofre mais. De quem consegue suportar mais dor sem abrir mão de tornar-se um vencedor. Percebemos isso com certa facilidade nas campanhas publicitárias, nos reality shows, nas novelas e nos roteiros de cinema, quando facilmente o sofrimento torna-se uma etapa mais bem elaborada do que a própria vitória.

Por outro lado, há os inadaptáveis à ideia de viver uma vida de sucesso, e por isso, recuam ao chegar perto demais da ideia de assimilação da felicidade como um sentimento impostor. A maior mentira já contada é a de que nem todo mundo sofre, ou precisa sofrer, para alcançar o que deseja. Antes de tudo, é aí que o culto à performance neoliberal se concretiza como uma utopia política interessante. Ao se transformar numa incubadora da meritocracia, de privilégios de classe, raça e de gênero, incentiva a cultura da auto exploração psíquica àqueles que atribuem a si mesmo a tarefa de se construírem  sozinhos como vitoriosos, partindo de posições sociais desiguais. 

Nunca antes  o sucesso fora tão desejado e tão difícil de se alcançar, de tal maneira, que o pódium do primeiro lugar torna-se um espaço vazio e restrito a poucos eleitos. Por outro lado, quem será que se beneficia quando incorporamos os ideais de que só existem espaços para os vencedores, em uma sociedade neoliberal? Parte da resposta está na compreensão do fracasso como posição social. Quem fracassa, está destinado à errância de um lugar-comum, sem distinção, sem gozo, e pior, habitado por todos. O fracasso provoca o horror do igual em ambientes sociais e digitais, que premiam a diferença para comercializar desejos de inovação. Isso porque o mérito é uma fonte que reproduz hierarquias de saberes disciplinares entre as classes sociais.

Romantizar o desamparo, o sofrimento e a persistência, como culto à performance neoliberal, contribui para edificar um universo de pessoas que fracassam ao tentar realizar seus sonhos, e se culpam por continuar existindo. Ou seja, de sujeitos que, de muitas maneiras, se punem e adoecem por não se enquadrarem às formas pré-estabelecidas pela disciplina hierárquica do sucesso. O problema é quando o fracasso é produzido por fatores interdependentes e externos à realidade individual e coletiva. A própria ideia de ‘oportunidade’ remete a uma circunstância escassa, favorável a criar mais distinções entre potenciais fracassados e distintos merecedores.

A naturalização do sucesso e da pobreza, propõe que sejamos cada vez mais tolerantes com ambientes perniciosos e a realidades precárias. Tornamo-nos carrascos e vítimas da auto exigência, de práticas mais individualistas e egoístas uns com os outros.

Por muitos motivos, a figura daquele que fracassa, seja no ato político, no econômico ou no social, me encanta mais. Prefiro aqueles que não se acham menores ou maiores, do que verdadeiramente são, e é justamente sobre não conseguir concretizar o que se quer - pela mesma razão que eu não consigo - cometem enganos, se frustram e são capazes de decepcionar. Soa muito mais empático e inteligente aprimorar nossas habilidades (e o que faltam a elas), ao longo da vida. Isto é, elaborar-se a partir de formas mais criativas e colaborativas de aprendizado, enxergar o mundo e encarar a si mesmo sem tanta rejeição.

O uso indiscriminado da cultura Life coaching nos coloca em uma posição de demanda infantil, onde quase todos os nossos sonhos são encorajados à realidade, ainda que não se saiba elaborar, exatamente, o que se quer e onde se pretende chegar, por meio de vagas fórmulas para o sucesso. O saldo do fracasso é sentido como o preço não pago pela economia do esforço bruto, e as imperfeições (pouco acolhidas em nós), deixam de serem vistas como parte da afirmação da nossa identidade. Isso impede que haja um reposicionamento diante dos conflitos, das verdadeiras condições de experimentar o sucesso e, sobretudo, de inventar saídas estratégicas usando o humor.

Quando romantizamos as condições de insegurança e de instabilidade da vida, permitimos que se inaugurem disputas entre quem sobrevive com o mínimo, oferecendo o máximo da sua vontade de existir, e isso nunca será justo. As apostas neoliberais sobre a política do futuro, representam um grande moedor de carne de fracassados até os ossos, dilacerando talentos, rasgando expectativas e mastigando nossos sonhos, antes de que possam inventar a sua própria sorte. Além disso, quanto mais se fracassa, não por inabilidade ou por falta de vontade, mais o capitalismo neoliberal arranca-nos aos pedaços - a subjetividade - para fazer mais e mais dinheiro com o nosso sofrimento. Não é o caso de inverter a lógica do derrotismo à vitória, mas sim descolonizar a lógica do encontro com o fracasso como dimensão humana, social e criativa de aprendizado. E, porque não de aprimoramento político? Não se trata de vender o fracasso como oportunidade. 

Antecipadamente, o preconceito e as más práticas de saúde mental funcionam como um pêndulo moral sobre quem sofre e não é ouvido. Por quem é julgado como imaturo, fraco de caráter ou “sentimental por natureza” - como se presumem culturalmente as “mulheres”. A verdade é que desistir nem sempre é uma ideia ruim. A postura de Simone Biles está para nos lembrar de que somos frágeis, e se permanecermos juntos, responsáveis pela nossa saúde mental e ao redor, seremos capazes de construir alternativas conscientes, a partir de saberes desprezados, como característica inteligente dessa nova geração. Além disso, essa oportunidade nos é dada a todo momento, de forma facilitada pelas plataformas de vida digital.

À nossa volta, entendemos que a política do governo Bolsonaro nunca fracassará sozinha. Ela conta com farsantes infiltrados no centrão para erguer o seu derrotismo como bandeira político-teológica da banalização do mal. Neste caso, o fracasso do Brasil já aconteceu e é comemorado pelo presidente como vitória.  Recentemente, a comitiva parlamentar de sicários, à serviço da extrema direita de Bolsonaro, tem passado a privatização dos correios, força projetos de lei com a intenção de mudar o sistema eleitoral, censurar pesquisas e pesquisadores na tentativa de institucionalizar um palco político para a grilagem e o agronegócio (Marco temporal).

Parte importante dessa realidade fracassada que nos cerca, embora encubra as possibilidades de futuro, não tem o poder de nos impedir de tentar agir politicamente, em busca de melhores cuidados para o país, para a população e para um novo modelo de democracia. Ou seja, elevar o cuidado como horizonte político para desmantelar falsas conspirações sobre a ciência e a educação, abrindo caminho para a emancipação. Mas, para que isso aconteça, precisamos largar a mão da submissão irreflexiva, do autoengano e do perigo das projeções paranoicas no Bolsonarismo. É preciso admitir o que está errado e parar de agir como se não soubéssemos o que está acontecendo, ou como se também não fôssemos parte disso. Sei bem que muitos de nós estamos exauridos pelo costume de ver nossos sonhos pulverizados, nossas esperanças esmagadas, nossas ilusões despedaçadas com as crises econômicas e a dialética digital do new empreendedorismo neoliberal. Mas, e se pensarmos melhor, o que virá depois da esperança? 

Fracassadxs do mundo, uni-vos!

 

 

Notas e Referências

Da SILVA, Regis F. F.; VARGAS, Tainá M. A Super Liga de Lucros: uma ameaça ao futuro do futebol mundial. Ludopédio: Junho de 2021. Disponível em: <https://ludopedio.com.br/arquibancada/a-superliga-de-lucros-uma-ameaca-ao-futuro-do-futebol-mundial/>

HALBERSTAM, Jack. ARTE QUEER DO FRACASSO. Libanio, Bhuvi. Recife: Cepe, 2020. 

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015.

EHRENBERG, Alain. O culto da performance: da aventura empreendedora à depressão nervosa. Organização e tradução Pedro Bendasolli - Aparecida, SP: Ideias & letras, 2020.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Thomas Quine // Foto de: Lady justice // Sem alterações

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