Por Paulo Ferreira da Cunha – 06/07/2017
O Direito Romano, avô ou mais que isso (depende do grau da metáfora), mas de qualquer forma antepassado, e em linha direta, do nosso Direito Contemporâneo, foi sendo criado (é o célebre ius redigere in artem) por um processo normogenético inicialmente quase-sociológico, pela estilização e consagração com força normativa jurídica dos costumes mais racionais e mais justos que se foi vendo existirem já concretamente na sociedade.
Ex facto oritur jus: o Direito vem do facto, deriva dele. Essa também uma das grandes lições do múltiplas vezes reeditado pequeno livrinho (em tamanho) Direito Romano de Michel Villey, que bem soube dar sentido útil ao brocardo repetido muitas vezes sem consciência das suas implicações e do seu sentido histórico.
Depois, apenas depois, viria uma fase voluntarista mais pura, em que se criam leis sem esse lastro inicial consuetudinário como base. A própria lei das XII tábuas é um salto para evitar assumidamente maus julgamentos de maus magistrados… - segundo fórmula conhecida. Aliás, parece que toda a História do Direito vai no sentido de cada vez maior voluntarismo, até que nos nossos dias, a crer em autores como Luc Ferry e menos explicitamente noutros, se terá chegado a uma sociedade quase se roda-livre, com elementos, dizemos nós, interpretamos nós, de quase ingovernabilidade. E daí a sanha de alguns em, in extremis, tentar encontrar bodes expiatórios. A expansão das ideias políticas de responsabilidade, na vox populi, são sintoma dessa falta de reais e verdadeiros “responsáveis”, antes de mais pela extrema burocracia e complexificação da sociedade da confusão.
Ao comparar o mundo romano com o tempo atual, uma sociedade inquieta, fervilhando de mudanças, de imprevistos, de risco (tudo isso se resumindo em “sociedade da informação”), ressaltam desde logo um conjunto de diferenças essenciais.
Se em Roma imperava, apesar de todas as suas convulsões, que a História regista, essencialmente a tradição, a veneração dos antepassados, o culto da família, a autoridade do paterfamilias, a hierarquia social, o elitismo do saber, a escravatura, etc., hoje em dia todos esses tópicos estão (ou pelo menos teoricamente estariam) quase erradicados nas sociedades “civilizadas” de hoje, que são as democráticas (como bem observou Yadh Ben Achour). Assim, o Direito Romano organizou formas de atribuir a cada um o que é seu (suum cuique tribuere) num contexto mental e social muito diferente do nosso. O Direito Romano tem de ser muito diverso do nosso. Ou melhor: O nosso é que tem de ser muito diferente do Direito Romano.
É certo que há filigranas conceituais pensadas sobretudo para questões cíveis que não podem prescindir da lição romanística, mas que não deverão ser levadas a fio de espada de tradicionalismo. O Direito Romano serve como inspiração, como repositório de grandes quadros mentais, mas não estamos em Roma. Só em Roma se deve ser romano.
Aliás, um dia se estudará em que medida todo o arcaboiço mítico do Direito Romano poderá ter pesado, com a sua imponente estrutura e mesmo pela sua simples existência, na formação da mentalidade civilística mais tradicionalista ou conservadora. A justa veneração por um corpus iuris de prestígio quase inconteste e com vigência pelo menos teórica multissecular pode ter ajudado a que o Direito Civil e suas áreas de influência teórica se tenham imunizado mais que outras áreas a vagas novas.
É certo que a constitucionalização do Direito Civil, e do Direito Privado em geral têm vindo, de par com ventos de modernização críticos, alternativos e alguns até bastante mais revolucionários que as revoluções políticas clássicas, a mudar a face daqueles ramos jurídicos. Mas talvez essa realidade de mudanças ainda não tenha atingido muitos países e em especial muitos juristas…
É curioso como tanta gente parece passar placidamente, de forma ideologicamente imune, pelos cursos de Direito. O que pode significar que a encenação ex-denominadora (como diria Barthes, nas suas Mitologias), ou “branqueadora” (ou “legitimadora, como diria Baptista Machado) foi exercida à perfeição pelos professores, ou a incompreensão do que é na Juridicidade duro, agónico e discutível foi cabal nos estudantes… Em ambos os casos, a sociedade perde muito.
Podemos venerar miticamente o Direito Romano e nada saber de profundo dele. Podemos fazer casos práticos com Caius e Sempronios, e continuar a saber pouco do seu sentido. A maneira de melhor o venerar é contextualiza-lo, além de o conhecer tecnicamente. Ele pode ser muito útil, se usado criticamente.
Voltaremos ao Direito Romano e às sugestões que coloca e aos desafios que lança. Fiquemos agora com este “aperitivo”, antes de uma pausa (acompanhando a letiva) nesta coluna…
Paulo Ferreira da Cunha é Membro do Comité ad hoc para o Tribunal Constitucional Internacional. Professor da Escola de Direito das Faculdades Metropolitanas Unidas. Professor da Académie Internationale de Droit Constitutionnel. Possui graduação (Licenciatura em Direito), com o Curso complementar em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (1984), Mestrado em Direito – Ciências Jurídico-Políticas pela mesma Faculdade (1988), Doutorado em Direito (História do Direito / Filosofia do Direito) pela Université Panthéon-Assas, Paris II. E ainda Doutorado em Direito. Ciências Jurídico-Políticas, pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (1995), reconhecido em 16.4.2014 pela Universidade de São Paulo como Doutor em Direito, área de Direito do Estado. Agregação em Direito Público (similar à Livre-docência) pela Universidade do Minho (2000). É Pós-doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (2013). Lattes: http://lattes.cnpq.br/4615065392733954
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