Pensando além da Lava Jato: o papel da Advocacia Pública – Por João Paulo de Souza Carneiro

08/01/2017

 O ano de 2017 mal começou, e não é possível saber o que este ano nos reserva, principalmente nesta época de tantas incertezas. Como em todo início de ano, neste princípio de 2017 dá-se licença às pessoas para que nutram as esperanças mais acalentadas ou para que se aflijam diante dos temores mais assustadores: se ninguém pode prever o futuro, tanto os otimistas quanto os pessimistas podem, no final do ano, verem confirmados os seus sonhos ou os seus pesadelos. Algo, porém, se não é certo, é muito, mais muito provável: durante todo o ano de 2017, a Operação Lava Jato continuará dominando o debate político e jurídico do Brasil, para desespero de uns e alegria de outros.

Não é preciso contar com poderes sobrenaturais ou ter elevados conhecimentos científicos para prever que no decorrer do ano que se inicia a Operação Lava Jato continuará a despertar, na maioria da população, sentimentos de esperança e de satisfação. Frases como “A justiça está sendo feita”, “Agora os corruptos estão indo para a cadeia” e “É possível fazer um Brasil diferente” serão ouvidas aqui e acolá, escritas nas redes sociais e divulgadas pela imprensa. Provavelmente, alguma figura importante da política ou do empresariado será encarcerada ou “conduzida coercitivamente”, e é quase certo que novos esquemas de desvio de dinheiro público serão desvendados, o que alimentará a corrente de entusiasmo cívico pelo combate à corrupção.

Tecer elogios à Operação Lava Jato e felicitar o entusiasmo cívico que suas ações provocam é praticamente um truísmo. A seriedade e a dedicação demonstradas pelos principais responsáveis pela Operação são inegáveis, o que se reflete nos impactantes resultados até aqui apresentados pelas investigações. Sem dúvida alguma, a Operação Lava Jato, em determinados aspectos, representa um ganho histórico para a república brasileira, ao procurar dissecar e desmontar, sem peias, sofisticadas estruturas de obtenção ilícita de recursos públicos. As repercussões trazidas pelo trabalho desenvolvido pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário podem constituir motivos de celebração.

A celebração não precisa ser associada ao conformismo: comemorar uma conquista não significa entendê-la como suficiente ou definitiva. Em meio ao entusiasmo anticorrupção, é saudável levantar questionamentos e pensar no futuro: a Lava Jato será suficiente para banir de vez a corrupção? Os resultados trazidos pela Operação são permanentes ou transitórios? Ora, não é preciso ser pessimista ou simplesmente inconveniente para responder que a Lava Jato, por si só, não é suficiente para banir a corrupção, e para supor que os resultados por ela trazidos, na ausência de aperfeiçoamentos do sistema político e do sistema jurídico, são transitórios.

As respostas acima dadas têm como base a mera intuição, mas é possível dar a elas uma sustentação um pouco mais robusta. Para defender a ideia de que a Operação Lava Jato é impotente para extirpar a corrupção da vida pública, é interessante lembrar o resultado de longo prazo apresentado pela Operação Mãos Limpas, desenvolvida na Itália na década de 1990. A Operação Mãos Limpas desvendou casos de corrupção envolvendo a máfia, parte do empresariado e parte dos políticos italianos, levando à condenação e à prisão de várias pessoas ilustres e causando a implosão dos principais partidos do país, reduzindo a cinzas a até então hegemônica Democracia Cristã. Era de se esperar que a Operação Mãos Limpas trouxesse, como frutos duradouros, o saneamento definitivo de um desacreditado sistema político. Contudo, não foi bem isso que aconteceu: depois da Operação Mãos Limpas, houve a ascensão do populista Silvio Berlusconi – cuja vida pública é, no mínimo, controvertida – e, mais recentemente, a ascensão do não menos populista Beppe Grillo e seu Movimento Cinco Estrelas, que questiona abertamente os pilares da democracia representativa. E, no tocante ao combate à corrupção, não parece que a Operação Mãos Limpas tenha sido plenamente exitosa: no ranking elaborado pela Transparência Internacional em 2016, que classifica os países em uma escala em que o primeiro colocado é o menos corrupto e o último colocado é o mais corrupto, a Itália está em 61º lugar, melhor que o Brasil (76º lugar), mas pior que Uruguai (21º) e Grécia (58º)[1]. Quais as razões do fracasso, por assim dizer, da Operação Mãos Limpas?

Apontar as razões do “fracasso” da Operação Mãos Limpas em extirpar a corrupção da vida pública italiana exigiria um amplo estudo, com minuciosa análise de dados, que não cabem neste espaço. No entanto, nada impede que uma hipótese seja levantada, ainda que com base meramente intuitiva: a Operação Mãos Limpas foi incapaz de atender à ambição de alterar uma cultura política corrupta por uma razão muito simples: esse não era o seu papel; a função da Operação era detectar crimes determinados e punir pessoas determinadas, como manifestação repressiva do Estado de Direito. O que se aplica à Operação Mãos Limpas aplica-se, grosso modo, à Operação Lava Jato: a função desta última restringe-se à detecção de determinados crimes e à punição de determinados agentes; apesar da amplitude que pode tomar, sua eficácia será sempre pontual, direcionada a casos específicos, não sendo própria para a formação de uma nova cultura política avessa à corrupção, tarefa esta que requer ações sistêmicas.

Alertar para as limitações da Operação Lava Jato não significa, de forma alguma, diminuir a sua importância, mas atentar para a necessidade de um novo modelo de combate à corrupção, que conjugue forças com o modelo repressivo utilizado pelo aparato judicial-policial. Esse novo modelo deve visar à prevenção da corrupção, com a identificação de fatores de incentivo ao desvio de recursos públicos e a criação dos correspondentes antídotos institucionais, e ao aperfeiçoamento de mecanismos de controle, com foco nos resultados da atividade administrativa, primando pela pronta detecção e retificação de atos irregulares, em benefício da eficiência administrativa. Este último ponto é particularmente importante, haja vista que, geralmente, os mecanismos de controle da administração pública são meramente punitivos e não geram melhorias institucionais que aumentem a qualidade da ação governamental[2].

O funcionamento adequado de um modelo preventivo de combate à corrupção requer o fortalecimento dos sistemas de controle interno da administração pública, a fim de que a eventual conduta corruptora seja prontamente identificada e a ação administrativa irregular, prontamente retificada, sem prejuízo, obviamente, das sanções cominadas em lei. E é justamente nesse aspecto – fortalecimento dos sistemas de controle interno – que se abre a oportunidade para uma atuação ainda mais vigorosa da Advocacia Pública no combate à corrupção.

Note-se que à Advocacia Pública não cabe exercer funções típicas do Ministério Público, da Polícia ou do Poder Judiciário; a sua tarefa, no combate à corrupção, há de ser, precipuamente, a de avaliar e adequar os sistemas de controle interno da administração, de modo a reduzir o risco de corrupção, orientando a ação governamental e corrigindo-a quando necessário, exercendo uma atividade de auditoria interna. O ganho social a ser obtido com uma boa supervisão e uma boa estruturação dos sistemas de controle interno não pode ser subestimado: por vezes, sistemas de controle excessivamente rigorosos acabam por restringir a concorrência, reduzindo o número de potenciais contratantes da administração e facilitando, paradoxalmente, a cooptação de funcionários do governo por poucas empresas poderosas.

Para que a função de avaliação e supervisão dos sistemas de controle interno da administração pública seja bem exercida, prevenindo-se a eclosão de casos de corrupção, é preciso, em primeiro lugar, uma reorientação das prioridades de atuação da Advocacia Pública, tornando-a partícipe da necessária – e, no Estado de Direito, inafastável - conversão das decisões políticas em comandos normativos, na condição de zeladora da legalidade e da moralidade das ações governamentais; em segundo lugar, é preciso dotar a Advocacia Pública de uma adequada imunização institucional que lhe possibilite o desempenho de ações de redução do risco de corrupção sem o perigo de contaminação por fatores externos – pressões empresariais, corporativistas, político-partidárias, etc. – como preconiza a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção em seu art. 6º[3]. Essa necessária imunização institucional envolve, dentre outros elementos, a previsibilidade na destinação de suprimentos e um suporte administrativo condizente com as funções exercidas pela Advocacia Pública.

Para parcela relevante da população brasileira, a Operação Lava Jato representa a esperança de um Brasil menos corrupto. Entretanto, apesar de todas as ações desenvolvidas por essa operação, a redução da corrupção requer o desenvolvimento de um modelo preventivo, que ceife os atos de ilicitude no seu nascedouro e que crie desenhos organizacionais que os desestimulem. A edificação desse novo modelo é uma missão que, com a indispensável imunização institucional, pode ser exercida pela Advocacia Pública, com amplas vantagens para toda a sociedade.


Notas e Referências: 

[1] TRANSPARENCY INTERNATIONAL. Table of results: corruption perceptions index 2015. Disponível em: <https://www.transparency.org/cpi2015/#results-table>. Acesso em: 05 jan. 2017.

[2] PETERS, B. Guy. Performance-based accountability. In: SHAH, Anwar (Ed.). Performance accountability and combating corruption. Washington: The World Bank, 2007. p. 18-20.

[3] ONU. Convenção das Nações Unidas contra a corrupção. Disponível em: <http://www.unodc.org/documents/lpo-brazil//Topics_corruption/Publicacoes/2007_UNCAC_Port.pdf>. Acesso em: 04 jan. 2017.


 

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