"Pensamento positivo": Almas que sofrem (Parte 2)

05/05/2015

Por Atahualpa Fernandez - 05/05/2015

«Cuando hayamos aliviado lo mejor posible las servidumbres inútiles y evitado las desgracias innecesarias, siempre tendremos, para mantener tensas las virtudes heroicas del hombre, la larga serie de males verdaderos, la muerte, la vejez, las enfermedades incurables, el amor no correspondido, la amistad rechazada o vendida, la mediocridad de una vida menos vasta que nuestros proyectos y más opaca que nuestros sueños: todas las desdichas causadas por la naturaleza divina de las cosas». Marguerite Yourcenar

Veja a Parte I aqui

Parte II

É a consciência dos infortúnios da vida e do sofrimento que nos indica a necessidade de cambiar algo em nós mesmos e que nos permite capear os temporais impostos por nossa existência; quero dizer, de aceitar esses momentos como uma oportunidade em que uma e outra vez nos sentimos obrigados a reflexionar sobre nossas debilidades e que nos obriga a corrigir-nos: os fracassos, as fatalidades e a dissabores atraem necessariamente a preocupação pela «autoregulação». Ao aprender a aceitar, assumir e conviver estoicamente com nossas tragédias podemos fazer com que nosso tempo presente tenha mais importância e reforçar ou corrigir as expectativas que depositamos no futuro.

Aceitar a totalidade da existência é também aceitar a suportar a parte iniludível de desgraça e sofrimento que a vida inclui. Ninguém pode viver permanentemente em harmonia absoluta consigo mesmo e com o mundo. Ademais, na vida tudo adquire valor por contraste. É desejável muita felicidade, mas não o é uma felicidade constante, pois nada é mais difícil de suportar que a continuidade de dias felizes: «seria um inferno», para dizer com Bernard Shaw.[5]

Elidir a incerteza, a tristeza e o sofrimento como partes da vida não somente tem pouco que ensinar-nos, senão que também nos desumaniza e supõe uma perversão da ideia mais bela que existe: a possibilidade concedida a cada qual de ser dono de seu destino e de melhorar sua existência. É uma grande arte saber sobrelevar com calma a infelicidade, classificar e relativizar os próprios sentimentos, e assumir a responsabilidade de que podemos eleger a forma de como reagir e de como valorar as circunstâncias (boas e más) de nossa vida. Uma arte de viver que abarca a compreensão da adversidade sem cair no abismo da renúncia, uma arte da resistência que nos permite viver com o sofrimento e contra ele. E essa habilidade, não isenta de tensões, depende do que somos: nossos pensamentos, sentimentos, conhecimentos e crenças, assim como nossos estados de ânimo, determinam nossa relação com o mundo que nos rodeia. Somos produto de nossos pensamentos e o que pensamos sobre nós define quem fomos, quem somos e quem seremos.

É óbvio que nem tudo é mau no otimismo, que sempre há algo de bem no pior mal e certa porção de mal no bem mais apreciado. De quando em quando é conveniente (e necessário) enganar-nos a nós mesmos e mostrar um otimismo biológico ou vital que aumenta a autoestima e a motivação, promove ficções benignas acerca do «Eu», o mundo e o futuro, e que foi selecionado pela «Seleção Natural» para distorcer e maquilar a realidade em um sentido positivo. Como disse alguma vez um psiquiatra, “para alimentar uma fantasia das boas, se necessita muito pouco: apenas uns diminutos fragmentos de realidade”. Todos construímos castelos no ar; o perigo surge quando tratamos de «viver» neles.

O que quero dizer é que a felicidade (melhor dito, a «eudaimonia», “el trabajado dominio de uno mismo y el poder encontrarle el sentido a la vida”) não surge de admitir e ressaltar somente uma parte da vida, a parte agradável, exitosa e positiva. Também deve abarcar e assumir, com sensatez e equilíbrio, a outra parte, a parte desagradável e negativa, com que devemos aprender a conviver. Evidente que ninguém busca ou deseja essa outra parte, mas tão pouco pode ser excluída. No melhor dos casos, admitindo por princípio que esta outra parte da vida tem direito a existir, podemos aprender a moderar suas consequências, exercitar o pensamento, a considerar coisas, valorar os recursos que temos e o rumo que levamos, refinar nossas prioridades e praticar o hábito de tolerar e superar os golpes que nos desbordam.

Para isso, dependemos fundamentalmente da fortaleza mental e da intrepidez que adotamos ante nossos inevitáveis fracassos e da serena assunção de que isso é precisamente o característico da vida através de todos seus fenômenos e imprevistos. Não se mostra, por acaso, a polaridade, o antagonismo, a contraposição, em todas as nossas experiências e em todas as coisas? A imagem que temos de nossas experiências pode ser positiva, mas o fato é que há coisas negativas que jamais desaparecem. A vida reclama sua polaridade de forma obstinada e vivê-la implica um incessante «respirar» entre os pólos do positivo e o negativo. Trata-se simplesmente de aceitar tanto os bons como os maus momentos, tomar o «ar da esperança» com as coisas que nos fazem bem, concretamente ante alguma das fases problemáticas em que as circunstâncias se nos complicam, e, por outro lado, encontrando-nos em um bom momento da vida, estar preparados para esses outros tempos em que os obstáculos e as dificuldades nos surpreendem e nos superam.

Este tipo de mentalidade não depende de casualidades favoráveis ou desfavoráveis, das oscilações pontuais entre o êxito e o fracasso, a bonança e a tormenta, o entusiasmo e o desânimo. Pelo contrário, constitui o equilíbrio que se repete em toda polaridade da vida, não somente naqueles momentos em que não conseguimos o que desejamos, senão também naqueles em que a perda de uma ilusão abre uma porta à boa fortuna. Não somente os logros, também as frustrações; não somente o êxito, também o fracasso; não somente o prazer, também o sofrimento; não somente a saúde, também a enfermidade; não somente estar alegre, também estar triste; não somente estar satisfeito, também estar insatisfeito (W. Schmid). Não somente dias plenos, senão também dias vazios, pois esses cem dias que percebemos como talados, cansativos e frustrantes se justificam totalmente com um único dia de plenitude desbordante.

Uma postura mental, enfim, que dá tanta importância à alegria como à tristeza, que conhece muito bem as oscilações da balança para um ou outro lado, mas que ainda assim se compensam mutuamente com o tempo, conseguindo que a polaridade da vida imponha sua lei. Essa espécie de «ataraxia» (de imperturbabilidade e fortaleza da alma frente às adversidades sobre as quais não temos controle), esse «sereno sossego» de que nos fala W. Schmid, é a consciência de que “todo lo que hacemos lo hacemos para alterar nuestro estado de la conciencia”; de que “cada momento de vigilia – e incluso en nuestros sueños - luchamos para dirigir el flujo de sensación, emoción y cognición hacia estados de conciencia que valoramos”(Sam Harris); de que em tudo o que existe há também outra possibilidade; de que os bons momentos se alternam com os maus como o dia e a noite, como inspirar e expirar; de que esse é o ritmo da vida que desde a contradição e a incerteza estende sua tensão a todas as coisas.

Por uma boa razão Voltaire fazia dizer, a modo de conclusão, a seu herói «Candide», perdido pelo mundo: “Devemos cultivar nosso jardim”. A parte tormentosa e autodestrutiva de nossas frustrações e melancolia se atenuam quando nos esforçamos por admitir que a infelicidade também é parte essencial da felicidade e reforça sua duração e importância. Não se trata de um tipo de otimismo ingênuo, passivo, relaxado e ilusório. É uma atitude virtuosa, entregada e comprometida, e que reconhece que não há maior fracasso que aquele que subjuga nosso ânimo. A felicidade, por indeterminada e fugaz que seja, pode e deve ser produzida de forma ativa e realista; não se cria por si só com o «poder da mente». É bela, mas custa muito trabalho e tempo, demasiado esforço e umas quantas toneladas de realismo.

Abstenhamo-nos pois dessa ditadura do «motivacional», da opressão do «pensamento positivo» e da tirania do «otimismo», já que “nenhuma coisa da vida é tão importante como pensamos quando pensamos nela” (D. Kahneman). Não confundamos o «pensamento positivo» (um estado cognitivo, uma expectativa consciente, que não só faz sentir-nos mais otimistas, senão que favorece e/ou garante que «de fato» as coisas saiam bem e alcancemos nossos desejos) com a «esperança» (um desejo, um sentimento ou uma mera expectativa de que as ações do presente podem produzir uns resultados positivos no futuro), e nem tão pouco com a «sabedoria» (que consiste em amar a vida tal como é: feliz ou infeliz, sábia ou estúpida; e por certo, nenhuma vida é feliz ou sábia por completo: essa é a sabedoria de Montaigne).

Não há nenhum rastro de uma força misteriosa que sintonize com outro mundo, não há nenhum fantasma em nosso solo, não há nenhum «gancho celestial», não há nenhuma fonte sobrenatural, não há monstros nas profundidades, não há terras regidas por dragões, nem fadas ou duendes, nem poderes ocultos, nem dimensões paralelas, nem espíritos, nem fórmulas mágicas, nem estranhas causas ainda por desvelar... «Saber viver» é aprender a eleger. Esta é a dita.

Portanto, e aqui termino, um realismo ou preocupação vigilante - inclusive incorrendo em certo «pessimismo defensivo»  – é o que se necessita para afrontar os problemas reais com que nos enfrentamos, para aprender dos erros que cometemos, para reconhecer nossas próprias limitações, para superar nossas dificuldades e as más experiências, para conformarmo-nos com o disponível em cada momento e equilibrar os desejos impossíveis que modelam nosso trato com o mundo exterior que nos limita e “de lo que no podemos cambiar o controlar mediante un mecanismo de nuestra voluntad” (H. Frankfurt).

Depois de tudo, todos morreremos “en algún lugar de lo inacabado”. (R. M. Rilke)


Notas e Referências:

[5] “No se hagan ilusiones: en la vida sufriremos injusticias o arbitrariedades, y tendremos conflictos con los demás cuando nuestros deseos choquen con los del vecino. No siempre triunfaremos, ni nos saldremos con la nuestra. No podemos controlarlo todo. Aparecerán rabia, frustración, envidia o celos, pues son inseparables de la experiencia humana. Es más, es sano que experimentemos estos sentimientos: la alegría auténtica no se entiende completamente sin la tristeza. Las emociones nacen en nuestro cuerpo y no tienen moral por sí mismas: se la ponemos nosotros según el contexto. El miedo o la tristeza tienen una función esencial en nuestro recorrido vital. Arrinconarlas, rechazar una parte de nosotros mismos porque no nos gusta mirarla, nos aleja de la realidad y nos coloca en un mito ideal. Lo que es peor, nos impide vivir plenamente. En definitiva, nos coloca en una fantasía que la vida se encargará de desmentir una y otra vez, acumulando esa misma frustración de la que tratamos de huir” (A. García). Este é precisamente o grande perigo subjacente ao pensamento positivo: desconectar-nos de uma parte do que nos humaniza atendendo unicamente a outra, a agradável de contemplar, desatendendo o contexto.


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España  


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