"Pensamento positivo": Almas que sofrem (Parte 1)

04/05/2015

Por Atahualpa Fernandez - 04/05/2015

 “¡Me gusta demasiado la vida como para querer ser solamente feliz!”. Pascal Bruckner

Parte I

Viver sempre feliz e com otimismo é negar a humanidade da vida. E ninguém pode elevar-se por encima da humanidade; sempre a levamos conosco (Montaigne). Esta é, em essência, a desmitificadora e realista proposta de Barbara Ehrenreich, jornalista, escritora, ativista social e autora de mais de uma dozena de livros. Em um determinado período de sua vida experimentou o que define como o “pior momento de minha vida até agora”: lhe diagnosticaram um câncer de mama. Uma situação angustiosa que, segundo conta, lhe provocou um lógico mal-estar, muito sofrimento e incerteza.

Nada obstante, Ehrenreich pronto descobriu que o “não estou bem” não  quadrava no novo mundo ao que estava acedendo. Um mundo de laços, camisetas e ursinhos rosas, ao que se lhe dedicam incontáveis páginas web, blogs, grupos de apoio, plegárias de intercessão... E um mundo no qual, descobriu, não todos veem a enfermidade com horror, senão como uma oportunidade para cambiar de trajetória e de desfrutar a vida como nunca. Cada vez mais se dava conta de que o medo, o enfado, a tristeza e o pessimismo que ela sentia por sofrer a enfermidade não eram aceitáveis. O importante era, sobre todas as coisas, não deixar de sorrir, dar graças (a qualquer coisa!) e sentir-se cheia de otimismo.

Mas quando lhe disseram que se tomara o câncer “como um presente”, sentiu que havia chegado ao seu limite e respondeu a toda essa avalancha açucarada de positividade escrevendo «Smile or Die. How Positive Thinking Fooled America & The World»; um livro que passa revista à influência que teve (e tem) na sociedade a corrente do «pensamento positivo». Quase uma nova religião (um novo evangélio da  felicidade pseudomágica ou  filosofia vital de hedonismo maníaco) que Ehrenreich qualifica de ditadura, e que não somente tem influência no mundo do espetáculo senão também, e principalmente, na vida em geral. Alguém tinha que dizer «basta!». Alguém tinha que advertir que “quem aspira a ser ou é feliz de modo constante e toda a vida (aqui ou em outro mundo) é um cretino”(Umberto Eco). Alguém tinha que denunciar a «moda positiva», essa compulsão quase enfermiça pela felicidade a qualquer preço. É uma anedota, uma soberana anedota de muito mau gosto. E um perigo, porque a exigência de ser felizes empedrou o mundo de desgraçados[1] - mas se o amável leitor (a) tem mais de doze anos e sigue acreditando nisso, neste tipo de pensamento mágico “coelhista”, provavelmente deveria consultar um bom terapeuta.

Por que somente os seres humanos são capazes de desenvolver essa habilidade tão falaz e perigosa de distorcer ou negar a realidade? Por que os demais animais  não buscam a liberação do sofrimento? Acaso é porque, sem necessidade de pensar nele, sabem que isso não é possível? Se as pessoas sofrem e morrem todos os dias (o que nos faz conscientes de que somos mortais) por que vivemos, trabalhamos, jogamos, planejamos, etc., como se fôramos uns descerebrados otimistas e imortais? Será porque a espécie humana, tal como pensava T. S. Eliot, não pode suportar demasiada realidade?

A felicidade deixou de ser a sorte que se cruza em nosso caminho, um momento fasto ganhado à monotonia dos dias: agora é nossa condição, nosso destino. “Converte-te em teu melhor amigo, ganha tua própria estima, pensa positivo, atreve-te a viver sempre feliz...”. Junto com o mercado da espiritualidade e da fé, a felicidade constitui não somente a maior indústria da época, senão que é também, e com maior exatidão, o novo imperativo moral: devemos a nós mesmos a felicidade tanto como nos a devem os demais. Uma nova ordem moral baseada no «dever» de ser feliz, sempre e quando «este fim» justifique «qualquer meio» (e dado que não há nada mais envenenado e impreciso que a ideia de «felicidade», uma palavra que não tem um significado único e que não deveria usar-se como se usa, nos encontramos, «ad absurdum et ad nauseam», no perigoso reino do «tudo vale»).

A proposta é a mesma em todas as partes: basta, para estar bem, com desejá-lo; a satisfação é apenas uma questão de vontade e está ao nosso alcance; o único que necessário (e suficiente) é armar-se dos meios graças a um «condicionamento positivo», uma «disciplina otimista» que nos leve à felicidade. Somos os únicos culpáveis de nossos sofrimentos, um mal que temos que responder ante todos os demais e ante nossa jurisdição íntima (P. Bruckner). Um mundo maniqueu, um mundo de dualismo radical entre luz e trevas, em que não há mais que uma «solução» permitida, razoável e lógica para sofrimento, um suposto fundamental que não se pode pôr nunca em dúvida: Penso, e como sou o único responsável de tudo o que me ocorra na vida, logo tenho que ser feliz sem interrupção e sem margen de erro. A neurose está servida.

A moral e a felicidade, outrora inimigos irredutíveis, se fusionaram: o que atualmente resulta imoral é não ser feliz; o “superego” se instalou na cidadela da «Felicidade» e a governa com mão de ferro. Para essa despótica felicidade e o sufocante otimismo dominante que lhe acompanha (contra os quais Ehrenreich se rebela), como o poder da mente «não tem limites», como podemos controlar tudo o que pensamos[2] e como o que concebemos como verdadeiro se converte em verdade, só os bons momentos têm direito a existir. Uma mentalidade comum que atualmente impregna perigosamente a todos; outro tipo de aporte ao infinito catálogo das loucuras humanas.

Mas toda essa ética ou projeto existencial gerado por um pegajoso hedonismo tropeça com um obstáculo maior: a onipresente e iniludível variedade do sofrimento («o experimentar um estado não querido e desvalorizado da mente, do corpo ou do espírito»)[3]. Estar no mundo é estar na insuficiência, na insatisfação e marcado por uma incompletude constitutiva da espécie: a vida cotidiana não é fácil, nem sequer para os mais adaptados dos seres humanos. Como disse em certa ocasião um personagem de Virginia Wolf, o conjunto da existência se converte em uma tarefa quase sobre-humana: “Es muy peligroso vivir, aunque solo sea un día.”

E uma vez que a mente humana não é unicamente fáustica em seu (ilimitado) descontentamento, senão quase vitoriana em sua salaz fascinação pelo lado negativo da vida, não ver sempre o lado bom das coisas, não esperar produzir acontecimentos concretos com o poder de nossa mente ou não passar o dia controlando incessantemente nossa atitude positiva e revisando nossos pensamentos otimistas, não nos leva diretamente ao «lado escuro» ou ao «fogo eterno»; ao contrário, nos faz mais cautelosos, moderados e resistentes, porque a principal causa do sofrimento é precisamente aquilo que não somos capazes de aceitar (Schmedling). E todos sabemos que a vida tem seus altibaixos, que é ao mesmo tempo realização e desconcerto, que se desenvolve em um intervalo desigual feito de contrariedades e prazeres, esperas e desenganos, e que não somos nem amos nem senhores de nossos momentos felizes. Simplesmente não podemos escolher evitar toda a dor e o sofrimento a que estamos regularmente expostos.

Um objetivo semelhante, intentar eliminar a dor e o sofrimento, só nos leva a encontrar-nos desarmados frente a eles enquanto ressurgem. Por causa de um estranho paradoxo cujas consequências não deixam de incrementar-se, quanto mais tratamos de exterminá-los, mais proliferam e se multiplicam, intensificando a consciência de nossa vulnerabilidade. E essa dupla obcecação tem, por sua vez, duas consequências: primeira, converte a solução intentada (felicidade) em progressivamente mais ineficaz e a situação em cada vez mais difícil; e segunda, leva o peso crescente do sofrimento à única consequência lógica aparentemente possível, isto é, à convicção de não haver feito o bastante para solucionar o mal.

Um tipo de modelo de conduta de uma hipocrisia insofrível e cuja única vantagem consiste em que não conduz a nada, “si no es a «más de lo mismo», es decir, «neurosis»: se aplica más cantidad de la misma «solución» y se cosecha más cantidad de la misma miseria” (P. Watzlawick). Quer dizer: que com as mensagens de que «basta com que creias que podes» ou «com esforço e vontade qualquer um consegue», chega também, em um sussurro, a mensagem ominosa de que se não consegues o que desejas, se fracassas, se te encontras mal, desanimado ou derrotado, a culpa é só (e toda) tua. Um sentimento que não exercita nossa vontade: a arrebata e a devasta.

Além disso, o importante não é somente essa «contradição» em si, senão também seus efeitos. É falso que com o pensamento positivo e muito otimismo possamos fazer qualquer coisa, ser quem queiramos ser e que «o céu seja o limite». Esta é a quimérica atitude do «can do», do «podes fazê-lo», que não põe barreiras às capacidades de um indivíduo e que se reafirma com um tipo de otimismo ingênuo que confia cegamente na «autoestima» e no matrimônio da eficácia com a vontade[4]. Quem espera percorrer todos os caminhos corre o risco de não empreender nenhum; uma coisa é estar ou sair de si mesmo e outra é crer-se livre, com a força do «poder do pensamento», da necessidade de eleger e de nossas limitações, ou seja, livre de um marco que nos restringe e condiciona nossa liberdade: a realidade resiste à distorção mental fácil.

Há também outra ironia muito inquietante do excesso de positividade: que não parece acompanhar demasiado ao conhecimento; ou melhor, uma vez que o otimismo costuma engendrar maior confiança que o conhecimento, quanto mais otimista é um indivíduo, mais ignorante e mais confiado em si mesmo pode ser. Por dizê-lo de alguma maneira, embora a ignorância seja sempre corrigível, uma mente confusa está constantemente exposta ao risco de narcotizar-se com a fascinação gerada pela droga do otimismo e condenada a aceitar, até à indiferença, que a ignorância é sinônimo de «felicidade»: “más saber, más dolor”, diz o Eclesiastes.


Amanhã (05/05) tem a Parte II, também as 18h!


Notas e Referências:

[1] Este é o aspecto da psique moderna que, segundo Eva Illouz, deveria preocupar-nos mais: a evitação a todo custo de qualquer sofrimento. O futuro da alma – ou da psique – parece encaminhado claramente ao intento massivo de erradicar o sofrimento, já seja mediante a medicina, as terapias verbais, a prática da meditação, a indústria da autoajuda, etc. Todas e cada uma das formas de sofrimento (a baixa autoestima, os abusos, a ansiedade, a obesidade, o divórcio, o stress, a ira, a depressão, os sentimentos de vulnerabilidade e fragilidade) devem desaparecer. Nossa psicologia “se ha vuelto altamente funcional, utilitaria y positiva. El resultado de esta tendencia es paradójico: se han desplegado un enorme arsenal de recursos para la reducción del sufrimiento, pero es precisamente este intento masivo de erradicarlo del cuerpo y de la psique de la sociedad lo que ha generado una plétora – y un interminable discurso – de “víctimas”, de personas que no son solo víctimas de la maldad de otros, sino de sus propias psiques débiles o heridas.” E se o amável leitor (a) tem mais de doze anos

[2] Há que aceitar, ainda que com cautela, esse tipo de ideia no que se refere exclusivamente ao âmbito «interno» de nossas mentes, a nossos estados mentais: podemos intervir sobre nossas emoções e estados de ânimo, regular nossos pensamentos e controlar nossa preparação para os problemas que possam ocorrer, por exemplo. Santiago Ramon y Cajal, prêmio Nobel de Medicina em 1906, disse uma frase tremendamente potente que em seu momento parecia que era metáforica, mas que agora sabemos que é literal: “Todo ser humano, si se lo propone, puede ser escultor de su propio cerebro”.

[3] Nota bene: Para que nos entendamos, não trato de fazer aqui qualquer tipo de apologia à inevitável e compulsiva «algofilia» dos cristianismos protestante, ortodoxo e católico, nem tão pouco qualquer tipo de proselitismo ao «sofrimento» apostolado pelo sincretismo de um budismo difuso (tibetano, zen ou tântrico) ou de qualquer outra das teorias populares asiáticas de tão boa fama e tão de moda nas sociedades ocidentais hedonistas e da implicação mundana. Também sobra dizer que ao não aceitar nenhuma das ideologias e categorias sem fundamento das diferentes religiões e seitas (monoteístas ou politeístas) organizadas e/ou praticadas pela humanidade, a questão de «crer» ou «não crer» em algo, em suas respectivas posturas e/ou postulados extremos, perde todo seu interesse e acaba por perder também seu sentido.

[4] É a falaz euforia otimista de que entre tantíssimas pessoas como existem, você, amável leitor (a), de alguma maneira, é diferente de todas. Tem algo de extraordinário, ainda que não seja consciente dele. Um it esquivo, um fator “X”. E você o intui, percebe que “está aí” e sente no fundo de sua alma. Não é um talento nem uma virtude. É outra coisa. Um asterisco invisível que pende sobre sua cabeça, como o protagonista de um “videogame”. Por isso, como afirma o iluminado Paulo Coelho, você “joga um papel central na História do Mundo”, foi criado para uma finalidade especial e é capaz, “em qualquer momento de sua vida, de fazer aquilo com que sonha” (Paulo Coelho). Porque haverá uma quantidade inconcebível de pessoas, mas você tem algo que elas não tem: o poder de conjurar o improvável. Por isso pode e deve conquistar seus objetivos, “con la sola fuerza de sus deseos y ese poder conjurador que tienen sobre el mundo material. Y lo más importante, por supuesto: «Cuando realmente quieres que algo suceda, el universo entero conspira para que tu deseo se vuelva realidad» (Paulo Coelho). Todo un clásico.” (R.  Díaz Caviedes)


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España  


Imagem Ilustrativa do Post: Keep going and stay positive // Foto de: Janet Ramsden // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/ramsd/6147756679 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

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