Por Maíra Marchi Gomes – 04/04/2016
Eu só queria ter do mato Um gosto de framboesa Pra correr entre os canteiros E esconder minha tristeza
Fagner
A discussão jurídica a propósito do direito à fuga já é significativamente estabelecida em várias de suas nuances, e nem por isto menos polêmica. Aqui não me aterei a ela, mas aos limites a que chegam aqueles que consideram um dever que o outro fique onde eles decidem que deva ficar. Particularmente, refiro-me à demanda frequentemente dirigida à polícia (em unidades especializadas como “Delegacias de pessoas desaparecidas” ou não) de que não apenas localize, mas conduza sujeitos que fugiram do lar.
Não se está referindo às situações em que o desaparecimento dá-se de maneira duvidosa, de modo que se pode cogitar tanto que o sujeito fugiu, mas também que sofreu alguma modalidade de crime, como rapto e seqüestro, ou mesmo morreu. Nestes casos, é previsto legalmente que a polícia civil investigue. Está-se tratando das “ocorrências” em que o próprio comunicante afirma que o que se deu foi uma fuga, e mesmo assim recorre à polícia.
A polícia muitas vezes atende a estas demandas, fazendo algo freqüente num Estado policialesco: realizando ações que não seriam de sua competência, numa contingência na qual o Estado exime-se de fornecer outros serviços que garantiriam os direitos ao cidadão. Se não há qualquer indício de que o desaparecido tenha sofrido um crime, por que motivo a primeira e única instituição muitas vezes a se responsabilizar pela intervenção estatal é a Polícia?
De qualquer modo, a explicação para que a polícia seja tão procurada nas ocasiões em que o desaparecimento tem tudo para ser uma fuga não parece ser apenas por ela ser a única porta aberta na casa do Estado. Há uma ideologia alastrada na sociedade ocidental contemporânea de se encontrar crime em todo lugar. Há uma tendência a entender como sinônimos transgressão e crime. Bom...não se sabe o que vem primeiro: o Estado se apresentando principalmente em sua faceta policialesca, ou a sociedade constituindo este tipo de Estado. Provavelmente o Frankstein e seu criador formam-se mutua e simultaneamente.
Em Delegacias de Pessoas Desaparecidas depara-se com o esforço dos policiais para explicar aos que procuram seus familiares desaparecidos/fugitivos que fugir é um direito, e que nada podem fazer caso o “localizado” proíba-os de informar onde eles estão. Os familiares esperam habitualmente que a polícia traga os fugitivos, se necessário abaixo de susto, bronca e força.
Infelizmente há policiais que, em parte por atuarem em algo que não é sua competência, movem-se nestes casos pelo senso-comum. Assim, por exemplo, acreditam que o melhor lugar para todos, e em todos os momentos da vida, é em família. Também há policiais, assim como outros agentes do Estado que às vezes envolvem-se nos casos dos fugitivos (Bombeiros, Conselho Tutelar), que se autorizam a julgar a legitimidade dos motivos para fuga. Logo, autorizam-se, frente às fugas “menos nobres”, a tratar estas transgressões como potencialmente reprováveis pelo Estado.
É fato que no caso de menores de idade há uma complexidade maior. Mas mesmo assim, se há indícios de que tenham fugido (e, portanto, se é possível descartar pelo menos de início a hipótese de que tenham sofrido/estejam sofrendo algum crime), o primeiro órgão a ser acionado parece ser o Conselho Tutelar.
Em algumas situações, o caso pode vir a gerar um procedimento policial; por exemplo, se na condição de “fugitivos”, os menores de idade sofrerem algum crime. Ou se forem abrigados por adultos que não comunicam os responsáveis pelas crianças/adolescentes ou o Conselho Tutelar. Mas se perceba a ação investigativa, e de eventual responsabilização criminal, dever-se-ia dar a posteriori.
Infelizmente os direitos das crianças e adolescentes são daqueles que mais facilmente se abdica em nome do bem. É impressionante a dimensão que pode alcançar a intervenção policialesca frente a crianças e adolescentes quando travestida de “proteção”. Talvez seja uma maneira por excelência do Estado-Penal cada vez mais representar a sociedade como carente de tutela, para assim se autorizar a crescer cada vez mais.
Há casos, por exemplo, de adolescentes com Complexo de Romeu e Julieta (quem nunca?) e decidem fugir. Para que a situação fique mais romântica, via de regra deixam bilhetes justificando sua partida ou desaparecem logo após uma discussão familiar. Em outros termos: deixam claro que sua conduta não é caso de Polícia! Tenho sérias dúvidas se inclusive é “caso de Estado”. Tenho cada vez mais pensado que os “casos da vida” têm sido reduzidos a “casos de Estado”, e especialmente “casos de Polícia”.
A vida não é sempre boa, e quase nunca fácil! Ademais, nem sempre nós, viventes, temos quem nos acompanhe nesta empreitada. Não é só na hora da morte que estamos sozinhos. Parece que há uma tendência de se tomar a vida como uma dádiva; daí a surpresa quando ela se mostra ruim. Daí um certo sentimento de injustiça, e a correlata caça por um algoz e a construção de uma identidade de “vítima da vida”.
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Maíra Marchi Gomes é doutoranda em Psicologia, mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Psicóloga da Polícia Civil de SC.
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