Pelo direito de recusar a bondade dos bons: Intervenções policiais em tentativas de suicídio

08/06/2015

Por Maíra Marchi - 08/06/2015

O slogan da polícia militar de Santa Catarina é “por pessoas de bem, para o bem das pessoas”.  Evidentemente ele daria margem a várias discussões, mas me restringirei à pergunta que resta das intervenções policiais em tentativas de suicídio. Mais que alguma afirmativa, pretendo deixar o questionamento, ao meu ver ainda pouco aprofundado, sobre a legitimidade da intervenção estatal (sobretudo policial) em casos desta natureza.

De fato, a própria discussão acadêmica sobre gerenciamento policial de crises (que é, como se verá adiante, como o Estado responde a ameaças de suicídio) é precária. Gomes (2010), em seu levantamento da produção bibliográfica sobre o tema, encontrou monografias, apostilas, manuais de centros de formação de policiais e monografias e outros trabalhos produzidos em cursos de especialização frutos da parceria entre universidades/faculdades e Secretarias de Segurança Pública, bem como alguns livros de teor prescritivo (todos de autoria de policiais). As únicas exceções foram um trabalho anterior da autora juntamente de uma colega (Gomes e Sesarino, 2009) e o trabalho de Storani (2006), que foi capitão do Bope-RJ[1]. Por tal motivo, as referências aqui mencionadas são de teor normativo, e não analítico, e de autoria de policiais.

A tentativa de suicídio é considerada pela Polícia como uma “crise”, que “é uma mudança brusca que se produz no estado de coisas (status quo), com teor manifestamente violento, repentino e breve” (Thomé, 1998, p.23). Também se encontra na própria definição do que seja “crise” que seu gerenciamento deve ser coordenado pela Polícia, ainda que a mesma demande em alguns casos apoio de outras instituições.  Vide, nesta direção, a seguinte definição de “crise”: “um evento ou situação crucial, que exige uma resposta especial da polícia, a fim de assegurar uma solução aceitável” (Academia Nacional do FBI apud Academia Nacional de Polícia, 1991, p.03) (grifo do autor).

Sobre os exemplos de “crises”, tem-se “acidentes com múltiplas vítimas, evacuação de comunidades, incêndios florestais, acidentes com produtos perigosos e crises policiais com reféns” (Governo do estado de Santa Catarina, s/d), não se podendo desconsiderar que “As ocorrências policiais envolvendo a extorsão mediante seqüestro ou roubo à instituição bancária com tomada de refém, são os mais puros exemplos de crise (ou do estabelecimento de uma situação crítica)” (Thomé, 1998, p.24).

Quanto às características das crises, nelas melhor se situa a situação da ameaça de suicídio. Tais características seriam: “imprevisibilidade; compressão de tempo (urgência); ameaça de vida; e necessidade de: a) Postura organizacional não-rotineira; b) Planejamento analítico especial e capacidade de implementação; e c) Considerações legais especiais” (Academia Nacional de Polícia, 1991, p.03). Isto porque, particularmente em relação à ameaça de vida, tem-se que “(...) de acordo com a doutrina do FBI, a ameaça de vida configura-se como componente do evento crítico, mesmo quando a vida em risco é a do próprio indivíduo da crise” (Academia Nacional de Polícia, 1991, p.03) (grifo do autor).

Com relação aos níveis de gravidade, a crise de ameaça de suicídio seria a de mais baixo nível. Ainda assim, por se tratar de uma “crise”, ela é denominada “altíssimo risco”, que são aquelas sem reféns (Thomé, 1998). Assim sendo, ela exige a aplicação por parte da Polícia da metodologia de gerenciamento de crises, até por haver precária especificação das intervenções que a caracterizam junto a casos de suicídio (Silva, 2014).

A tentativa de suicídio pode se caracterizar como um evento não-negociável quando não alcança algumas das condições de negociabilidade do incidente (Somzal, s/d). Particularmente, a falta de vontade de viver por parte do provocador, a inexistência de exigências, a impossibilidade de reconhecer o negociador como alguém que pode ajudá-lo.

Nestas situações, para além de casos em que a negociação é possível mas não apresenta sinais de sucesso, o evento é em si inegociável. Daí ser autorizado passar às demais ações táticas disponíveis. Em ordem, procura-se o uso de armas menos que letais, o tiro de comprometimento e, em última instância, a invasão tática (Vaz, apud Lucca, 2002). Em se tratando de ameaça de suicídio, algumas ocorrências demandam o uso de armas menos que letais. O tiro de comprometimento apenas em caso do sujeito, com sua arma, passar a trazer risco atual e eminente a alguém (por exemplo, policiais). E a invasão tática apenas quando a ameaça de suicídio apresenta-se acompanhada de uma tomada de refém, e se constata que o há claro risco à integridade do mesmo.

Após esta rápida explanação sobre onde se situa, para a Polícia, a ameaça de suicídio, gostaria de questionar a propósito da legitimidade deste braço do Estado intervir nestes casos. E, antes disto, do Estado intervir sobre o direito dos sujeitos fazerem o que desejarem de suas vidas. Questionamento semelhante, lembra-se, faz-se quanto à eutanásia.

Silva (2014) argumenta que a maior parte dos autores destes atos os comete por impulso; logo, a decisão careceria de consideração de alguns aspectos que, num estado mental outro, poderia se dar. Ocorre que, no caso da eutanásia, o Estado autoriza-se a privar a todos do direito de abdicar da própria vida, inclusive àqueles que tomam a decisão de maneira lúcida e planejada. Desta maneira, também se pensa que a Polícia, generalizando a previsão de sua ação em todos os casos de ameaça de suicídio, toma como “impulsivos” todos os atos desta natureza.

Ademais, mesmo que seja por impulso, resta a dúvida se a instituição estatal que deveria responder a ameaças de suicídio é a Polícia. Pode-se pensar que assim se faz para se omitir a presença do Estado em outras ações, e por meio de outras instituições, junto a estes mesmos sujeitos. Refiro-me à garantia de direitos que, deles sendo privado o sujeito, pode inclusive contribuir para a decisão pelo suicídio. Por exemplo: direito ao trabalho digno, à saúde, à alimentação, etc. Aliás, talvez alguns sujeitos tenham como motivação suicida o fato de que o Estado só se apresentou em sua faceta policial.

Nesta direção, chama a atenção que, ao descrever as situações anteriores ao suicídio, a literatura cite apenas aspectos “intra-subjetivos”, digamos assim. Numa aparente “psicologização” do suicídio, bem como numa omissão de responsabilidades outras que não as do próprio sujeito sobre esse estado mental. Refiro-me aos seguintes pontos: perda súbita, isolamento social, solidão, enfermidade, mudança social, sentir que incomoda os outros e frustrações (Lucca, 2002).

Falando do outro lado da moeda (daqueles a quem aparentemente o Estado em nada faltou), poder-se-ia pensar se não há um mesmo sentimento de exclusão regendo sua ameaça de suicídio, ainda que, nestes casos, sua exclusão possa ser melhor pensada a partir dos ideais de competitividade, juventude, descartabilidade, individualismo, romantismo, consumo, status, etc. Tais ideais não deixam de estar relacionados com vários sofrimentos (além de que com crimes), mas as instituições e instâncias responsáveis por sua vigilância e fiscalização talvez nisto atuem precariamente devido a interesses político-econômicos.

Alguém pode argumentar que, independente do que falhou antes do episódio de ameaça suicida, o Estado (via Polícia) poderia atuar oferecendo o que falhou. Daí é que, por exemplo, prevê-se encaminhamentos após a solução da ocorrência a psicólogos, assistentes sociais, etc. Apenas desconheço se o fato de alguém haver ameaçado se matar faz com que “fure fila” em CREAS, CAPS, etc. E nem sei se seria ético, inclusive com quem tentou se matar, que sua dor fosse tomada como uma moeda valiosa.

Alguns acreditam, pelo menos em algum momento da vida, que a vida depois da morte é melhor que essa. Outros simplesmente acreditam que a não-vida é melhor que a vida. Em todos os casos, de qualquer modo, parece questionável o Estado, neste momento tão agudo, apresentar-se dizendo que a vida vale a pena. Mais ainda, fazê-lo via Polícia. Em outros termos: via repressão.

Alguns só querem morrer em paz, de modo a se livrar do tormento da vida. Alguns querem morte matada, e não morte morrida. Alguns querem morte matada, porque só ali podem ser autores de sua vida.

Se sou favorável ao suicídio? Não. Se sou contrária? Também não. Apenas nunca insistirei a alguém que perdeu a esperança de que essa vida melhore que ela é um bom lugar.

O direito ao delírio

(Eduardo Galeano)

Mesmo que não possamos adivinhar o tempo que virá, temos ao menos o direito de imaginar o que queremos que seja.

As Nações Unidas tem proclamado extensas listas de Direitos Humanos, mas a imensa maioria da humanidade não tem mais que os direitos de: ver, ouvir, calar.

Que tal começarmos a exercer o jamais proclamado direito de sonhar?

Que tal se delirarmos por um momentinho?

Ao fim do milênio vamos fixar os olhos mais para lá da infâmia para adivinhar outro mundo possível.

O ar vai estar limpo de todo veneno que não venha dos medos humanos e das paixões humanas.

As pessoas não serão dirigidas pelo automóvel, nem serão programadas pelo computador, nem serão compradas pelo supermercado, nem serão assistidas pela televisão.

A televisão deixará de ser o membro mais importante da família.

As pessoas trabalharão para viver em lugar de viver para trabalhar.

Incorporar-se-á aos Códigos Penais o delito de estupidez que cometem os que vivem por ter ou ganhar ao invés de viver por viver somente, como canta o pássaro sem saber que canta e como brinca a criança sem saber que brinca.

Em nenhum país serão presos os rapazes que se neguem a cumprir serviço militar, mas sim os que queiram cumprir.

Os economistas não chamarão de nível de vida o nível de consumo, nem chamarão qualidade de vida à quantidade de coisas.

Os cozinheiros não pensarão que as lagostas gostam de ser fervidas vivas.

Os historiadores não acreditarão que os países adoram ser invadidos.

O mundo já não estará em guerra contra os pobres, mas sim contra a pobreza.

E a indústria militar não terá outro remédio senão declarar-se quebrada.

A comida não será uma mercadoria nem a comunicação um negócio, porque a comida e a comunicação são direitos humanos.

Ninguém morrerá de fome, porque ninguém morrerá de indigestão.

As crianças de rua não serão tratadas como se fossem lixo, porque não haverá crianças de rua.

As crianças ricas não serão tratadas como se fossem dinheiro, porque não haverá crianças ricas.

A educação não será um privilégio de quem possa pagá-la e a polícia não será a maldição de quem não possa comprá-la.

A justiça e a liberdade, irmãs siamesas, condenadas a viver separadas, voltarão a juntar-se, voltarão a juntar-se bem de perto, costas com costas.

Na Argentina, as loucas da Praça de Maio serão um exemplo de saúde mental, porque elas se negaram a esquecer nos tempos de amnésia obrigatória.

A Santa Madre Igreja corrigirá algumas erratas das tábuas de Moisés, e o sexto mandamento mandará festejar o corpo, a igreja também ditará outro mandamento que Deus havia esquecido: “amarás a natureza da qual fazes parte”.

Serão reflorestados os desertos do mundo e os desertos da alma.

Os desesperados serão esperados e os perdidos serão encontrados, porque eles se desesperaram de tanto esperar e se perderam de tanto procurar.

Seremos compatriotas e contemporâneos de todos os tenham vontade de beleza e vontade de justiça, tenham nascido onde tenham nascido e tenham vivido quando tenham vivido, sem se importarem nem um pouquinho com as fronteiras do mapa e ou do tempo.

Seremos imperfeitos porque a perfeição continuará sendo um chato privilégio dos Deuses.

Neste mundo trapalhão, seremos capazes de viver cada dia como se fosse o primeiro e cada noite como se fosse a última.


Notas e Referências:

ACADEMIA NACIONAL DE POLÍCIA. Manual de Gerenciamento de Crises. Brasília, 1991. 77 p.

GOMES, Maíra Marchi. O lado negro do preto: o fardo da farda: narrativas de integrantes do BOPE-SC sobre mandato policial de grupos especiais de polícia. 475 p. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Florianópolis, 2010.

GOMES, Maíra Marchi; SESARINO, Shirley Valera Rialto. A contribuição da psicologia policial ao gerenciamento de situações críticas: um diálogo entre a Psicanálise e a Polícia. In: CARVALHO, Maria Cristina Neiva de; FONTOURA, Telma; MIRANDA, Vera Regina (OrgS.). Psicologia Jurídica: temas de aplicação II. 1ed.Curitiba: Juruá, 2009, v. 1, p. 73-98.

GOVERNO DO ESTADO DE SANTA CATARINA. Capacitação em defesa civil: sistema de comando em operações – SCO. Apostila de Capacitação à Distância. s/d.

LUCCA, Diógenes Viegas Dalle. Alternativas táticas na resolução de ocorrências com reféns localizados. Monografia de conclusão de Curso apresentada ao Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais 11/01. Orientador: Roberto Zapotoczny Costa. São Paulo: Centro de Aperfeiçoamento e Estudos Superiores / Polícia Militar do Estado de São Paulo, 2002. 132 p.

SILVA, Daniel Nunes da. Suicídio: A atuação da Polícia Militar em ocorrências envolvendo atos suicidas. 2014. 72 p. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Administração de Segurança Pública – Área: Direito Penal e Direito Processual Penal) - Curso de Especialização em Administração de Segurança Pública da Escola Superior de Administração e Gerência, da Universidade do Estado de Santa Catarina e do Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais da Polícia Militar de Santa Catarina, Florianópolis, 2014.

SOMZAL, Waldemar. Reféns. s/d. Disponível em: http://br.monografias.com/trabalhos/refen/refen.shtml. Acesso em: 08 nov. 2006.

STORANI, Paulo. Vitória sobre a morte: a glória prometida. O “rito de passagem” na construção da identidade dos Operações Especiais do BOPE. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia. Orientador: Roberto Kant de Lima. Florianópolis: Universidade Federal Fluminense, 2006. 173 p.

THOMÉ, Ricardo Lemos. A solução policial e gerenciada das situações críticas. Florianópolis: (S. ed.), 1998. 180 p.

[1] A propósito, esta inexistência, até aquele momento, de trabalhos de autoria de não-policiais sobre o assunto foi problematizado pela autora.


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Maíra Marchi Gomes é doutoranda em Psicologia, mestre em Antropologia pela UFSC e Psicóloga da Polícia Civil de SC.  Facebook (aqui)                                                                                                                                                                                                                                                                                                


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