Pelo direito a uma infância livre do trabalho infantil  

17/07/2019

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenador Assis da Costa Oliveira

Nas últimas semanas, o país voltou ao tema do trabalho infantil por motivos inversos. Após paulatinos avanços na área, o presidente Jair Bolsonaro, alimentou o senso comum sobre o assunto, com declarações que naturalizam o trabalho infantil. O presidente defendeu o trabalho infantil nas suas redes sociais, afirmando que quebrava e colhia milho aos nove anos de idade, numa fazenda administrada pelo seu pai. Além disso, afirmou que, na época, já dirigia tratores e atirava com armas de fogo. Inúmeros são os equívocos cometidos nessas afirmações, ameaçando direitos duramente conquistados no campo da infância e juventude.

As declarações foram dadas em um momento de grandes retrocessos, como por exemplo, cortes orçamentários nas políticas estratégicas para o enfrentamento do trabalho infantil, bem como da precarização da fiscalização do trabalho infantil e escravo. Vale salientar que dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do ano de 2016[1], indicaram 1,8 milhões de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos trabalhando, em atividades proibidas pela legislação. Faz-se importante, então, trazer ao debate o real significado do trabalho infantil, contextualizando-o em um país de fecundas desigualdades sociais, e suas consequências para o desenvolvimento de crianças e adolescentes.

 

A história social das infâncias e adolescências e o trabalho infantil

O Brasil é o que tem talher de prata

Ou aquele que só come com a mão?

Ou será que o Brasil é o que não come

O Brasil gordo na contradição?

(A cara do Brasil, Celso Viáfora/Vicente Barreto)

O contexto brasileiro, marcado por uma sociabilidade forjada na escravização e exploração da classe trabalhadora, de pauperismo e profunda desigualdade social, evidencia um quadro social de desemprego, violência, falta de acesso à educação, à saúde, à moradia, ao trabalho decente e às mínimas condições de cidadania, para um imenso contingente populacional.

A história social das infâncias e adolescências pobres no Brasil também é marcada por diversos tipos de violações de direitos, incluindo os mais básicos e necessários para a sua subsistência. Desde muito cedo, a rotina das crianças e adolescentes das classes populares, que vivenciam contextos de privações e precarização da vida, segue a lógica de garantir recursos para a sobrevivência por mais um dia. A esses sujeitos são negados uma série de direitos e um conjunto de possibilidades para um desenvolvimento pleno e digno. No seu lugar, é exigida uma subserviência à sociedade e ao modelo predatório de capitalismo, presente de forma ainda mais perversa nos países do sul, que ocupam posição de países dependentes no capitalismo global.

Mesmo diante dessa realidade, além de políticas compensatórias, que não chegam às raízes do problema, as perspectivas atuais apontam para um momento hiperautoritário do neoliberalismo no Brasil e no mundo, intensificando as sequelas da “questão social”. Como afirmaram Dardot e Laval (2016)[2], o avanço do neoliberalismo no plano político, econômico e cultural, significa uma racionalidade que molda como os sujeitos compreendem a realidade, a si próprios e suas relações com os outros. Logo, a condição de pobreza é atravessada pela ideia da culpabilização individual e meritocracia. Basta lembrarmo-nos da fábula da cigarra e da formiga, conhecida de todos, que demonstra os conceitos ideológicos presentes na noção de pobreza e desigualdade: o sol nasce para todos, mas é preciso esforço e merecimento.

Diante das vulnerabilidades, o trabalho aparece como esperança ou salvação e as narrativas que legitimam esse entendimento ganham ainda mais força num contexto de neoliberalismo hiperautoritário, em que empreendedorismo, meritocracia e self-made man são palavras de ordem para escamotear as formas de precarização do trabalho. Tais ideias possibilitam a interpretação de que “o trabalho dignifica o homem” e que, por meio do trabalho, o sujeito também se desenvolve. Mas em quais condições? À custa de que?

As consequências e gravidade dos acidentes de trabalho nos ajudam a dimensionar esses custos. Dados do Ministério da Saúde revelam que, entre 2007 e 2018, foram registrados 43.777 “acidentes de trabalho” envolvendo crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos. Nesse mesmo período, foram 26.365 acidentes graves, tais como: traumatismos; ferimentos; e, amputações[3]. Vale ressaltar que, embora alarmantes, os números não dão a dimensão real do problema, tendo em vista a sua subnotificação. Imaginemos a quantidade de crianças e adolescentes que trabalham em carvoarias, plantações/cultivos, que são exploradas sexualmente, são cooptadas pelo tráfico, entre outras situações de violências e que nem as políticas de enfrentamento ao trabalho infantil, nem a fiscalização, conseguem alcançar. A convivência com as consequências físicas, educacionais e psicológicas são a realidade desse grupo de sujeitos que não conhecem outras possibilidades na vida. Como dissemos, essas crianças vivenciam ciclos geracionais de miséria e vulnerabilidade, e desde muito cedo são empurradas para essas condições como forma de subsistência.

O trabalho infantil, entendido como “aquele executado por crianças e adolescentes com menos de 16 anos (salvo na condição de aprendiz, com registro em carteira como tal, a partir dos 14 anos), no setor formal ou informal ou ainda em atividades ilícitas” (Brasil, 2004)[4], precisa ser visto como um problema estrutural e estruturante da nossa sociedade, que foi fundada utilizando a mão de obra dos grupos mais vulnerabilizados, como as crianças e as mulheres.

Vale ressaltar, ainda, que o trabalho infantil se confunde com a história do nosso país, estando presente no Brasil desde a Colônia e Império, com a exploração do trabalho das crianças indígenas e escravas (Rizzini, 2000)[5], e intensificando-se com a Revolução Industrial, com a exploração do trabalho infantil nas fábricas. Durante toda a nossa história, crianças foram submetidas a condições de trabalho desumanas, a extenuantes jornadas de trabalho e a diversos acidentes de trabalho em locais insalubres e perigosos. Ou seja, o país tem uma dívida histórica com as crianças e adolescentes das classes trabalhadoras, que foram duramente explorados.

Desde então, a questão econômica e cultural é um dos maiores entraves para o enfrentamento do trabalho infantil. Afinal, como dissemos, o trabalho aparece como valor inquestionável: “É melhor a criança trabalhar do que ficar na rua, exposta ao crime e aos maus costumes”; “Trabalhar forma o caráter da criança”; ou ainda “É bom a criança ajudar na economia da família”. Evidentemente que, com relação à população pobre, o valor do trabalho ganha um contorno ideológico adicional: é visto como elemento educativo, formador e reabilitador.

O que ocorre, na verdade, é que o trabalho infantil é causa e efeito da pobreza, encontrando aliados poderosos para a sua manutenção e legitimação, tendo em vista que atuam como mão de obra barata ao mercado. Nas engrenagens de um capitalismo predatório, muitas crianças colocam em risco suas vidas diariamente, e comprometem seriamente o seu desenvolvimento. Por isso, o trabalho infantil é considerado uma grave violação dos direitos humanos e uma antítese do trabalho decente.

 

O que diz a legislação brasileira

 O Brasil tem um histórico relativamente recente de proteção às infâncias e juventudes. Até o advento do Estatuto da Criança e do adolescente (ECA), em 1990, as políticas sociais voltadas para esse público eram marcadas pelo controle, disciplinamento e institucionalização. O ECA, baseado no paradigma da proteção integral, apresenta um conjunto de direitos que devem ser assegurados e contribuem para prevenir o trabalho infantil.

Vale salientar que, até meados da década de 1980, não havia preocupações em torno do trabalho infantil, que ocupava um lugar naturalizado na nossa sociedade, como dissemos alhures. O fenômeno passa a ser questionado a partir de então, em consonância com movimentos no campo dos direitos da infância no mundo inteiro, inicialmente protagonizados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).

 “Aclamado por muito tempo como o “país do futuro”, o Brasil começava a ser visto como um “país sem futuro”, conhecido pelas imagens dos meninos em situação de rua em Copacabana ou na Avenida Paulista, da miséria das crianças trabalhando nos canaviais e nos garimpos, da situação de penúria no trabalho informal urbano, da inaceitável exploração sexual, da miséria dos adolescentes nas favelas e nas unidades de internação. Em resposta a essa situação, iniciou-se gradualmente uma ampla mobilização social de organizações governamentais e não governamentais, que desembocou na busca do estabelecimento de princípios que priorizassem os direitos da criança e do adolescente como “seres humanos em fase de desenvolvimento” durante o Congresso Constituinte (1986-1988). Promulgada a nova Constituição Federal em 1988, iniciou-se a elaboração do ECA, aprovado dois anos depois. Estavam dadas as condições sociais e legais mínimas para a introdução de novo paradigma na maneira de abordar o trabalho infantil no País” (Brasil, 2004).

Dessa forma, além dos marcos conceituais e legislativos internacionais, a legislação brasileira a respeito do trabalho infantil orienta-se pelos princípios estabelecidos na Constituição Federal de 1988. O art. 227 da Constituição Federal assegurou a proteção integral de crianças e adolescentes com absoluta prioridade. Além disso, o art. 7º, inciso XXXIII (alterado pela Emenda nº 20, de 15 de dezembro de 1998) estabelece a idade mínima de 16 anos para o ingresso no mercado de trabalho, exceto na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos. Os artigos 60 a 69 do ECA tratam da proteção ao adolescente trabalhador e estendem a proibição de 16 aos 18 anos para atividades perigosas, insalubres e penosas, em horário noturno ou que prejudique o seu desenvolvimento.

A criação do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), em 1994, foi um marco importantíssimo para a prevenção e erradicação do trabalho precoce. O Fórum demarca um lugar de luta importante para que ferramentas e estratégias possam ser criadas e contribuam para o enfrentamento das situações de trabalho infantil em todo o país, observando também as particularidades de cada região e adaptando essas estratégias, quando necessário.

Hoje, o país é signatário de diversos acordos e tratados internacionais que preveem o combate ao trabalho infantil, como a Convenção da Idade Mínima para Admissão no Trabalho – nº 138 (1973) e a Convenção das Piores Formas de Trabalho Infantil – nº 182 (1999). A Convenção nº 138 da OIT, assinada pelo Brasil em 28 de junho de 2001, estabelece que todo país que a ratifica deve especificar, em declaração, a idade mínima para admissão ao emprego ou trabalho em qualquer ocupação.

O governo brasileiro aprovou o Decreto nº 6.481, de 12 de junho de 2008, que define a Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP). As piores formas de trabalho infantil são uma estratégia de classificação adotada por vários países para definir as atividades que mais oferecem riscos à saúde, ao desenvolvimento e à moral das crianças e dos adolescentes.

Uma história recente, de avanços significativos, que agora são duramente ameaçados por discursos que já se mostraram falaciosos e danosos ao desenvolvimento físico, educacional e emocional de inúmeras crianças e adolescentes.

 

Entre a romantização do trabalho infantil e a dura realidade  

Segundo dados do PNAD (2015), o universo dos trabalhadores infantis é masculino (59% das crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil são meninos e 41% são meninas). Entretanto, em algumas ocupações, como o trabalho infantil doméstico, há predominância de mulheres. Fatores associados a desigualdades regionais e raciais também influenciam, ou seja, a ocorrência do trabalho infantil é mais acentuada nos segmentos historicamente submetidos à discriminação regional e racial e essa tendência é ainda mais grave no que diz respeito à faixa etária mais jovem. Ainda de acordo com o PNAD (2015), a maioria da população ocupada entre 5 e 17 anos está nas regiões Nordeste (852 mil) e Sudeste (854 mil), vindo em seguida as regiões Sul (432 mil), Norte (311 mil) e Centro-Oeste (223 mil).

Ressaltamos, mais uma vez, que inúmeros são os impactos do trabalho infantil para crianças e adolescentes, como: excessiva carga física e psíquica; exposição a doenças; acidentes de trabalho; deformidades físicas; envelhecimento precoce; retardo no crescimento e no desenvolvimento psicológico; abandono da escola e baixa qualificação profissional:

“No caso de trabalhos que exigem esforço físico extremo, como carregar objetos pesados ou adotar posições antiergonômicas, podem prejudicar o seu crescimento, ocasionar lesões na coluna e produzir deformidades” (Brasil, 2004).

A situação pode ainda ser mais grave, quando meninos e meninas realizam trabalhos para os quais não apresentam peso ou tamanho suficientes, que levam da amputação de membros à morte, em alguns casos. Diante dessa dura realidade, não há o que romantizar quando falamos em trabalho infantil.

 

Desafios atuais

Em 2002, foi instituído pela OIT que o dia 12 de junho seria demarcado como o dia mundial contra o trabalho infantil. Cada vez mais, o mundo tem acordado para os prejuízos que um trabalho precoce em um período de peculiar de desenvolvimento pode ocasionar. Porém, mesmo com campanhas e com a maior visibilidade sobre esse debate, como dissemos, ainda há no Brasil cerca de 1,8 milhão de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos em situação de trabalho[6]. Deste total, 54,4% (998 mil) estavam em situação de trabalho infantil, sendo 190 mil por terem de 5 a 13 anos, e outros 808 mil entre 14 e 17 anos, por trabalharem sem registro na carteira. Para organizações como o  FNPETI e a Rede Peteca – Chega de Trabalho Infantil, os números reais são bem maiores, já que o IBGE mudou a metodologia na PNAD 2016 e excluiu crianças e adolescentes que trabalham para o próprio consumo. Para o FNPETI, o número real é 2,4 milhões.

Diante dos desafios impostos pela conjuntura política atual, é preciso disputar o sentido comum sobre trabalho infantil, especialmente nas suas piores formas, trazendo à tona todas as consequências severas, incluindo a preservação da vida, e atuar na defesa intransigente dos direitos humanos de crianças, adolescentes e jovens. O sentido comum são ideias ordenadoras do mundo. Ordenadoras da cotidianidade, mobilizadoras e o lugar das certezas estratégicas da sociedade. Faz-se necessário construir um léxico que reforce o lugar social da criança na escola, na brincadeira, na convivência e acessando todos os direitos que possam promover seu desenvolvimento saudável.

Sempre é bom lembrar que não há que desanimar. Afinal, o próprio trajeto das políticas voltadas para a infância e juventude, conflituoso, mas de avanços, faz com que o desejo de um futuro diferente para todas as crianças seja algo ainda factível: a história está em aberto. E como sujeitos/as dessa história, é nosso compromisso contribuir para que os avanços legislativos se transformem em ações concretas, permitindo uma vida digna e um desenvolvimento pleno de possibilidades para nossas crianças e adolescentes.

 

Notas e Referências

[1] Cf. IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2016. Rio de Janeiro: IBGE, 2016.

[2] Cf. DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Editora Boitempo, 2016.

[3] Dados do Sistema de Informações de Agravos de Notificações (SINAN), do Ministério da Saúde. Tais informações estão também disponíveis no link: https://www.chegadetrabalhoinfantil.org.br/noticias/ materias/mais-de-40-mil-criancas-e-adolescentes-sofreram-acidentes-trabalhando-em-dez-anos/

[4] Cf. BRASIL. Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente. Prevenção e erradicação do trabalho infantil e proteção ao trabalhador adolescente. Brasília: Ministério do Trabalho e Emprego, Secretaria de Inspeção do Trabalho, 2004.

[5] Cf. RIZZINI, Irene. A criança e a lei no Brasil: revisitando a história (1882-2000). Brasília: UNICEF, Rio de Janeiro: USU, 2000.

[6] De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2016, realizada pelo IBGE. Pesquisa nacional por amostra de domicílios: síntese de indicadores 2015 / IBGE, Coordenação de Trabalho e Rendimento. Rio de Janeiro: IBGE, 2016.

 

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