Por Ricardo Dani Becker - 20/09/2015
“o ser humano se caracteriza, exatamente, por ser sujeito da sua história, a capacidade que tem de se decidir por um caminho...”
Cezar Peluso, Julgamento da ADI 4.424, STF[1]
Recentemente a edição da súmula 542, do Superior Tribunal de Justiça, trouxe novamente à tona o desagradável julgamento proferido pela Corte Constitucional junto à ADI 4.424, o qual assentou interpretação conforme à constituição aos artigos 12, inciso I, e 16, ambos da LEI Nº 11.340/2006 – Lei Maria da Penha – com o fito de prescrever a ação penal pública incondicionada aos crimes de lesão corporal leve contra a mulher no âmbito doméstico.
A Suprema Corte Constitucional brasileira, ao julgar a ADI 4424, conjuntamente com a ADC 19, proferiu decisão no sentido de que a Lei Maria da Penha, em casos comunicados como lesão corporal leve, não pode admitir a ação penal pública condicionada à representação, sob o fundamento de que o princípio da dignidade humana seria vilipendiado, representando um obstáculo à efetivação do direito fundamental à proteção de inviolabilidade física e moral da ofendida, atingindo, em última análise, a dignidade humana feminina[2].
Com efeito, o referido julgamento acaba por ceifar da vítima a possibilidade de retratar a denúncia efetuada, quando houver lesão leve contra a mulher no âmbito doméstico.
De pronto, consigno que é indubitável que o referido julgamento representa um passo a frente na concretização e efetivação da dignidade da pessoa do gênero feminino. Entretanto, tal entendimento somente apresenta-se como avanço democrático, à medida que se aplica a casos de violência doméstica reiterada, contínua e grave, onde a mulher, em razão da intimidante situação sente-se acuada (por impedimento moral ou por receio de represálias físicas do agressor) em dar prosseguimento ao processo criminal. Aí sim, cumpre ao poder punitivo e repressor do Direito Penal adentrar na seara familiar e agir incondicionalmente.
Do contrário, o Direito Penal deve limitar-se à sua condição de ultima ratio, sob pena, por óbvio, em virtude da sua exacerbada ingerência junto ao núcleo familiar, causar danos à dignidade da mulher e do acusado – inclusive cindindo a relação conjugal e familiar –, haja vista a sua desnecessária e incontrolável intervenção.
Por isso, uma das pilastras do direito penal sedimenta-se junto aos princípios da intervenção mínima[3] e da subsidiariedade, cuja função é assegurar que somente serão criminalizadas aquelas condutas que efetivamente lesionem os bens jurídicos imprescindíveis para a vida social, bem como inexista, nos demais ramos jurídicos, possibilidade viável para a solução do conflito. Assim, às demais frentes do Direito cabem a responsabilidade por apaziguar as relações humanas, restando, ao direito penal, o dever de somente agir quando as demais tentativas de resolução de conflito não se mostrarem suficientes.
Nesse compasso, Nucci[4] esclarece que a razão pela qual o Direito Penal não deve ser o primeiro a ser chamado para a solução de todos os conflitos é que ao ser chamando ao fronte de atuação acabaria por promover a edificação do “império da brutalidade”.
O Estado em nada contribui para a resolução de conflitos dessa espécie; pelo contrario, apenas retira a possibilidade da ofendida repensar sua vida amorosa e dificulta a reconciliação da relação conjugal. Muitos casos semelhantes batem cotidianamente às portas do judiciário que, se tivesse à disposição as ferramentas adequadas (atendimento multidisciplinar, por exemplo) poderia solucionar os conflitos de forma diversa à criminalização do acusado e a supressão da autonomia privada da vítima[5]. Aliás, tal previsão de incondicionalidade da ação penal, por vezes, pode levar a vítima a afastar-se da tutela jurisdicional, tendo em vista que, sabendo desta implicação jurídica, deixará de comunicar a ocorrência e, assim, também restará carente da possibilidade de usufruir das medidas protetivas que para ela seriam satisfatórias.
Essa ingerência estatal sobre a autonomia privada da mulher também pode ser compreendida como uma agressão a sua dignidade, especialmente quando essa diferenciação de gênero implica na impossibilidade desta em conduzir sua liberdade de agir ou não contra o cônjuge/agressor. Claro, e por certo, tal negativa de opção possui o intuito de favorecer o gênero mais frágil, entretanto, nos casos em que a mulher possui capacidade decisória, representa um substancial prejuízo à sua liberdade, bem como um tratamento não isonômico, significando, portanto, uma invasiva intervenção exatamente em face do seu gênero, tratando-a de forma desigual, na medida em que objeta a possibilidade dela perdoar/desistir da ação penal.
Nesse ponto, crucial rememorar o conceito de dignidade, que para SARLET[6] constitui a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano, garantindo-lhe respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade. Outrossim, são direitos e deveres que evitam tratamento degradante e desumano, salvaguardando a todo e qualquer ser humano o mínimo existencial.
Aliás, o atual ministro do STF, BARROSO[7] (que não se manifestou sobre a matéria, quando do julgamento, por ainda não compor o excelso pretório) doutrinou na busca pelo alcance de elementos conceituais mínimos a fundamentar a dignidade da pessoa humana. Como conclusão, tem-se que a autonomia representa uma das pilastras da dignidade da pessoa humana, devendo ser acautelada a fim de viabilizar ao ser humano seu livre arbítrio.
Com efeito, reside exatamente nesse ponto fulcral a questão acerca da dignidade da vítima em operar a renúncia ao processamento de seu companheiro/acusado. Há casos, evidentemente abrigados pela venerável decisão constitucional da ADI 4424, em que a proteção estatal se faz impreterível, na medida em que a vítima, em face às particularidades de seu núcleo familiar, não possui os requisitos indispensáveis ao exercício de sua autonomia. Ou seja, não possui o arbítrio, ou o mesmo é viciado, quer pelo temor justificado, quer pela dependência emocional ou financeira do seu agressor. De fato, não se pode descurar que há inúmeros casos em que a ofendida encontra-se em tal situação de coação por parte do agressor que resta totalmente desprotegida e imobilizada ante as circunstâncias que a tocam. Enfim, a soma de fatores que convergem para o condicionamento da vítima a uma única opção: não processar seu agressor.
ENTREMENTES, esse não é o caso da totalidade das lesões corporais leves abrigadas pela lei Maria da Penha, é, talvez, a realidade de uma expressiva maioria. Por isso, cumpre rememorar, novamente, que há casos em que a vítima é possuidora de razão, de independência moral e financeira, e possui, obviamente, a virtude da escolha. Portanto, em nome de sua dignidade humana, lhe é devida a autonomia para que faça o gerenciamento de sua relação particular/amorosa, mormente quanto há fatos isolados que culminaram na comunicação policial.
À vista do exposto, está claro que a decisão proferida pelo Tribunal constitucional é absurdamente falha, notadamente à medida que extirpa de todo a dignidade daquela minoria de mulheres que possuem o desejo pela desistência da ação penal, mas restam obrigadas ao acompanhamento de um processo, bem como posterior condenação daquela pessoa com a qual possui fortes laços afetivos e que findará prejudicada, tornando-se, ao fim e ao cabo, uma situação constrangedora e inescrupulosa entre aquele casal que, após o fato, retoma a vida conjugal e tem que conviver ainda como réu e vítima.
Portanto, não se pode olvidar a importância do julgamento do STF, porém, em contrapartida, é imperioso admitir que o referido julgamento não deveria servir como ancoradouro para obrigar o processamento de toda e qualquer violência (lesão leve) cometida no domínio familiar, haja vista que em determinados casos é necessário modular o referido entendimento a fim de sanar possíveis afrontas à dignidade da vítima, que se vê impossibilitada de desistir/renunciar (d)aquilo que deu início.
Nesse sentido, Karam[8] assenta que tal vedação à restrição representa negar à mulher o direito de liberdade de escolha com quem relacionar, inferiorizando-a e vitimizando-a.
Não por menos que o Ministro Cezar Peluso consignou em seu voto divergente a vital observância à autonomia da vítima quanto à desistência da ação, sendo esta, ser humano ciente de seu livre arbítrio, apta a decidir o futuro do seu núcleo familiar. Ademais, alertou a possibilidade de ocorrência afugentamento da mulher das delegacias, uma vez que tome ciência da ulterior consequência da comunicação policial.
Outrossim, verifica-se pelo excerto do julgamento do HC Nº 190.835 - SP (2010/0213462-6), de relatoria da eminente ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, que o mesmo entendimento, antes do julgamento da ADI 4424, ecoava pelos cantos do judiciário[9] Todavia, embora tenha me curvado ao posicionamento firmado pela Terceira Seção deste Sodalício, consigno o meu ponto de vista em relação à temática. Nesse passo, além do rigor técnico e democrático que deve pautar a intervenção no litígio entre os companheiros, é fundamental, ademais, não se perder de vista a autonomia da vontade da mulher, que, a par de protegida, não pode ver solapada sua condição de sujeito de direitos. Nesse cenário, de rica ponderação de valores, é que se construiu a compreensão de que, sim, é curial a realização da audiência de ratificação da representação e que o tipo do art. 129, § 9.º, do Código Penal depende de representação. Assim, acredito que restringir o espectro de atuação do art. 16 da Lei Maria da Penha para os delitos de ameaça, contra a honra e contra a liberdade sexual, excluindo-se tão-apenas o delito de violência doméstica é conferir exegese inapropriada. Então, depois de muito meditar sobre o tema, entendo que a mens legis do art. 41 da Lei Maria da Penha - exclusão da aplicação Lei 9.099/95 - refere-se exclusivamente ao procedimento sumaríssimo e aos mecanismos despenalizadores. O art. 88 da Lei dos Juizados, em verdade, não está conectado de forma imanente à introdução do nolo contendere no nosso sistema processual penal. A modificação da disciplina da ação penal do art. 129 do Código Penal poderia muito bem ter sido viabilizada por meio de outra norma, meramente modificadora do Codex.
Com efeito, juízes de primeiro grau, reiteradamente, vêm verificando a situação melindrosa resultante do processamento do acusado contra a vontade da ofendida, obrigando os tribunais ad quem a reafirmarem o entendimento equivocado do STF[10].
De outro lado, também se torna salutar lembrar que o Supremo Tribunal Federal, ao analisar tão somente a questão a partir da dignidade da ofendida – e mesmo assim, deixar de analisar a sua autonomia privada – passou ao largo da ponderação rogada pelo neoconstitucionalismo, cuja teoria é adotada pelo ministro Luis Roberto Barroso[11], na medida em que sequer citou os princípios da intervenção mínima e subsidiariedade, regentes junto ao Direito Penal. Também, mitigou o princípio da igualdade, tendo em vista que tal julgamento implicou em tratamento diferenciado à vítima de lesão corporal leve em violência doméstica com relação às demais vítimas de lesão corporal, suprimindo a liberdade de escolha daquela, sendo que, impende frisar, se trata de situação em que a escolha representa um significativo substancial na vida da pessoa, pois é atinente à relação amorosa, sentimento extremamente íntimo e pessoal.
Além do mais, o direito deve assimilar as reações sociais e regulá-las conforme haja necessidade. Não restam dúvidas de que a decisão da Corte Constitucional representa um avanço na majoração e democratização dos direitos do gênero feminino. Mas, de outra banda, pode tornar-se o algoz dessa ofendida (atualmente, minoria) que, em razão do seu gênero, perde o direito de gerir suas relações pessoais. Por isso, irrefutável concluir que o atual posicionamento jurídico das mais altas cortes do país representa, por vezes, a mitigação da dignidade feminina.
Dessa forma, conclui-se que o julgamento realizado pelo excelso pretório não atende à análise acerca da dignidade/autonomia dessa minoria feminina possuidora de livre arbítrio, independência e que optam pela renúncia à acusação do companheiro. Também não se atém ao confronto dos postulados axiológicos jungidos ao Direito Penal, como a subsidiariedade, fragmentariedade, ofensividade, enfim, tal ramo como ultima ratio, E NÃO COMO primeira razão social educadora. Aliás, através do r. julgamento, verifica-se algo muito similar à prevenção geral negativa, uma vez que se tenta modificar uma cultura violenta através da pena, o que, gize-se, já demonstrou há séculos não se prestar.
Enfim, podemos afirmar que o problema possui uma complexidade muito maior do que simplesmente analisar a capacidade relativa ou absoluta da mulher quanto à representação. Passa pela imprescindível praça das políticas públicas, pelo atendimento integral às vítimas de violência doméstica e culmina pela análise interdisciplinar da autonomia da mesma quanto à representação contra o agressor. Porém, ao poder judiciário, tal complexidade se resumiu colocando a ofendida no pedestal da incapacidade, prescrevendo o processando abstrato de todo e qualquer agressor, independentemente da vontade da ofendida diante do caso concreto[12].
Por fim, imperioso não aquiescer com um julgamento equivocado e perquirir nesse ofício de articular os defeitos da referida decisão, a fim de que seja verificada a necessária retificação do atual entendimento sedimentado (o que atualmente seria labor do Poder Legislativo), garantindo à mulher – ser autossuficiente que é – a totalidade da amplitude de sua dignidade humana[13].
Notas e Referências:
[1] Ministro Cezar Peluso, pág. 92, no voto divergente do julgamento da ADI 4.424/ADC 19, disponível no sitio do STF, endereço: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=5719497.
[2] Consoante se verifica do voto do ministro Luiz Fux junto ao julgamento da ADI 4424/ADC 19, disponível no sitio do STF, endereço: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=5719497
[3] Assim, cabe mencionar a passagem de Conde (2001, p. 107) acerca da necessária intervenção mínima do Direito Penal:
El poder punitivo del Estado debe estar regido y limitado por el principio de intervención mínima. Con esto quiero decir que el derecho penal sólo debe intervenir en los casos de ataques muy graves a los bienes jurídicos más importantes.
Las perturbaciones más leves Del orden jurídico son objeto de otras ramas del derecho. MUÑOZ CONDE, Francisco. Introduccíon al Derecho Penal. 2. ed., Editor Julio César Faira. Argentina: Editora B de F., 2001.
Aliás, nesse contexto, Baratta (2004, p. 310), inteligentemente, relaciona a subsidiariedade à dignidade da pessoa humana, quando afirma que não deve ser visto apenas a necessidade da penalização, mas, também, a possibilidade de outra sanção que não cause tanto dano quanto a pena causa:
Una pena puede ser conminada sólo si se puede probar que no existen modos no penales de intervención aptos para responder a situaciones en las cuales se hallan amenazados los derechos humanos. No basta, por tanto, haber probado la idoneidade de la respuesta penal; se requiere también demostrar que ésta no es sustituible por otros modos de intervención de menor costo social.
BARATTA, Alessandro. Criminología y Sistema Penal (compilación in memoriam). Editor Julio César Faira. Argentina: Editora B de F., 2004.
[4] NUCCI, Guilherme de Souza, Princípios constitucionais penais e processuais penais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, pág. 168:
Fosse o Direito Penal a primeira opção do legislador para a composição de conflitos e mediação de interesses contrapostos e estar-se-ia vulgarizando a força estatal, privilegiando o império da brutalidade, pois a todos os erros seriam impostas reprimendas máximas. Assim não se dá no dia-a-dia em cenário algum, visto existir a proporcionalidade e a razoabilidade, como mecanismos jutos de quantificação da demanda punitiva em face de desvios de toda ordem. Logo, não se poderia acolher, especialmente no contexto penal, o abuso e o exagero para a imposição do respeito lei.
[5] Nesse sentido, labora a PEC 43/2012, que tramita junto ao congresso nacional, com relatoria da Senadora Marta Suplicy, visando a inclusão, junto ao artigo 203, da CF, do inciso II, na seguinte forma: o amparo às crianças e adolescentes carentes e à mulher vítima de violência doméstica.
Com efeito, defende-se que é necessário que o estado suplante as necessidades da vítima – seja financeira, psicológica ou protetiva – a fim de que esta possa exercer seu livre arbítrio independentemente de qualquer fator externo de coação promovido pelo agressor.
[6] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição Federal de 1988. 9. ed. rev. atual. 2. tir., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012. Pg. 73.:
[...] temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.
[7] BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial, Belo Horizonte, Fórum: 2014, pg. 81-82.:
“A autonomia é o elemento ético da dignidade humana. É o fundamento do livre arbítrio dos indivíduos, que lhes permite buscar, da sua própria maneira, o ideal de viver bem e de ter uma vida boa. (...) A autonomia pressupões o preenchimento de determinadas condições, como a razão (a capacidade mental de tomar decisões informadas), a independência (a ausência de coerção, de manipulação e de privações essenciais) e a escolha (a existência real de alternativas). (...) Mas a autonomia é a parte da liberdade que não pode ser suprimida por interferências sociais ou estatais por abranger as decisões pessoais básicas, como as escolhas relacionadas com religião, relacionamentos pessoais, profissão e concepções políticas. (...)
A autonomia, portanto, corresponde à capacidade de alguém tomar decisões e de fazer escolhas pessoais ao longo da vida, baseadas na sua própria concepção de bem, sem influências externas indevidas.”
[8] DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. 3ª ed. revisada, atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, pg. 93:
“Quando se insiste em acusar da prática de um crime e ameaçar com uma pena o parceiro da mulher, contra sua vontade, está se subtraindo dela, formalmente dita ofendida, seu direito e seu anseio a livremente se relacionar com aquele parceiro por ela escolhido. Isso significa negar-lhe o direito à liberdade de que é titular, para tratá-la como se coisa fosse, submetida à vontade de agentes do Estado que, inferiorizando-a e vitimizando-a, pretendem saber o que seria melhor para ela, pretendendo punir o homem com quem ela quer se relacionar – e sua escolha há de ser respeitada, pouco importando se o escolhido é ou não um “agressor” – ou que, pelo menos, não deseja que seja punido.
[9] Interessante pontuar que perante o STJ, notadamente junto à terceira seção, a matéria vinha sendo julgada de forma pacífica quanto à necessária representação da ofendida:
PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL.
OFENSA AOS ARTS. 16 DA LEI 11.340/06 E 88 DA LEI 9.099/95. LEI MARIA DA PENHA. CRIME DE LESÃO CORPORAL LEVE. RENÚNCIA À REPRESENTAÇÃO.
EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA. RESP REPETITIVO Nº 1.097.042/DF. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
1. A Terceira Seção desta Corte Superior consolidou, em sede de recurso representativo da controvérsia, Resp 1.097.042/DF, que a natureza da iniciativa da ação penal relativa ao parágrafo 9º do artigo 129 do Código Penal é pública condicionada à representação.
2. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no REsp 1094727/DF, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 06/12/2011, DJe 19/12/2011)
[10] Ementa: RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. LESÃO CORPORAL. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE PELO RECONHECIMENTO DA RENÚNCIA TÁCITA. IRRESIGNAÇÃO MINISTERIAL. Tendo em vista que os procedimentos judiciais decorrentes de atos de violência doméstica com lesão física contra a vítima possuem natureza publica incondicionada, desnecessária a representação da ofendida. Logo, ineficaz a retratação da vítima para obstar o prosseguimento do feito e autorizar a extinção da punibilidade. Decisão desconstituída. RECURSO PROVIDO. (Recurso em Sentido Estrito Nº 70053672655, Segunda Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Ricardo Coutinho Silva, Julgado em 20/08/2015)
RECURSO CRIMINAL - LESÃO CORPORAL DE NATUREZA LEVE, NO ÂMBITO DA LEI N. 11.340/06 (LEI MARIA DA PENHA) - DECISÃO DE EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE POR AUSÊNCIA DE REPRESENTAÇÃO DA VÍTIMA - INSURGÊNCIA DA OFENDIDA - CABIMENTO - PRESCINDIBILIDADE DA REPRESENTAÇÃO - HIPÓTESE DE AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA - PRECEDENTES DO STF E DESTA CORTE - SENTENÇA REFORMADA - REMESSA À PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA PARA OS FINS DO ART. 28 DO CPP - RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. "A ação penal relativa a lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada" (ADI n. 4424, Min. Marco Aurélio, j. 09.02.2012). "O STF suplantou a divergência jurisprudencial existente acerca da natureza da ação penal nos casos de lesões corporais cometidos no âmbito violência doméstica, calcada na previsão da Lei Maria da Penha (n. 11.340/2006), em seu art. 41, de que 'aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995', quando, em 9-2-2012, julgou a ADI n. 4424 e decidiu, 'dando interpretação conforme aos artigos 12, inciso I, e 16, ambos da Lei nº 11.340/2006, assentar a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão, pouco importando a extensão desta', bem como julgou a ADC n. 19, e decidiu 'declarar a constitucionalidade dos artigos 1º, 33 e 41 da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha)'" (ACrim n. 2013.076992-2, Desa. Salete Silva Sommariva, j. 26.08.2014). (TJSC, Recurso Criminal n. 2015.020013-2, da Capital, rel. Des. Getúlio Corrêa, j. 23-06-2015).
[11] Luis Roberto Barroso. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 5ª ed., São Paulo, Saraiva, 2003, pág. 125.
[12] Aliás, não se pode olvidar que o efeito colateral do processamento irrestrito do agressor culmina na obrigatoriedade da vítima, em sede de instrução processual, falsear acerca da verdade dos fatos, no intuito de livrar seu companheiro das agruras do sistema penal.
[13] Pertinente, apenas brevemente, anotar passagem doutrinária no que toca à expansão do Direito Penal , pois ROSA , que em um trabalho específico sobre a expansão do direito penal e a dignidade da pessoa humana, parafraseando Canotilho, assevera:
Destaca-se a lição de Canotilho, que preceitua, dentre as funções dos direitos fundamentais, a de defesa ou de liberdade, dispondo que impõe-se ao Estado, nesse momento, um dever de abstenção, que refere-se ao dever de não interferência ou não intromissão, respeitando-se o espaço reservado à sua autodeterminação; nessa direção, impõe-se ao Estado a abstenção de prejudicar, ou seja, o dever de respeitar os atributos que compõem a dignidade da pessoa humana.
ROSA, Gerson Faustino. A violação da personalidade humana pelo expansionismo penal. Revista Direito e Liberdade, Natal, v. 15, n. 3, p. 41-70, set./dez. 2013. Quadrimestral.
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Ricardo Dani Becker é Advogado e Membro Voluntário do Observatório de Direitos Humanos da UNIVATES.
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