Pedro Mineiro e o atentado de 28.dez.1914 na Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia

17/11/2022

Coluna Cautio Criminalis

I.

O Séc. 20 passou ao 21, pelos cantadores populares nordestinos, um verso peculiar ainda hoje cantado nas tradicionais rodas de capoeira de São Paulo. Eu ouvi pessoalmente suas duas versões:

  • A primeira: “Torpedêra Piauí / Curaçádo na Bahia / Marinhero absoluto / Chegou pintando arrelia / Mataro Pedro Minero / Dento da Secretaria” 
  • A segunda muda o fim por “Intimaro Pedro Minero / Dento da Delegacia / Para dar depoimento / Daquilo que num sabia”.

Que Pedro Mineiro é esse? Existiu mesmo ou é invenção cultural? Que é isso de intimado em delegacia para depor sobre o que não sabia? Morto na Secretaria? Que Secretaria?

Bom, eu fui atrás dessa história. É uma história de Polícia.

 

II.

Salvador estava um caco. A Rua do Saldanha, na Baixa dos Sapateiros, desde o início de dez.1914 testemunhara tiroteio e briga dia sim, dia também: marinheiros do Rio aportados com o navio torpedeiro Piauhy encetaram confusão armada, disputa por mulher e bebedeira, e a tensão dos rumores elevava a temperatura cotidiana daqueles dias nada amenos.

 

III.

É dia 26. No Botequim do Galinho, Rua do Saldanha nº 12, um tal Pedro chefia um bando e ataca os marinheiros: ele se enciumara dum marujo que gracejou Maria, prostituta por quem é afeiçoado num tempo em que amar uma mulher significa possuí-la. Bom, tiro e paulada, dois marujos mortos, um a pau, um defenestrado: José Domingos, armado só de faca, e Francisco Hollanda. Uns fogem e o tal Pedro é carregado à Delegacia onde funciona a Secretaria de Segurança Pública. A gente comum batiza o evento - “O crime do Saldanha” – e não se fala doutra coisa.

 

IV.

Inquérito instaurado: o homi é Pedro Mineiro, capoeira local, muito “amigo da polícia” num tempo em que os limites entre polícia, capangagem, miliciatura e jagunçaria não eram nada claros. O Diário de Notícias (29/12/1914) divulga o interrogatório: Pedro “declara ser empregado da polícia e que exercia suas funções por toda a cidade; perguntado em que caráter, diz que de subdelegado da polícia e que não dizia como delegado, porque respondia ao dr. Delegado, pois se respondesse ao chefe, dizia como delegado, por lhe ser inferior; perguntado por ordem de quem se arvorava em autoridade disse que por ordem do chefe e do delegado”.

 

V.

Sobre o crime, Pedro dirá não saber muito. “Estando em casa a tomar café”, segundo ele, “em companhia de Sebastião e Branco, ouvira grande alarido na rua, pelo que saiu, sendo agredido por marinheiros, procurando se defender com uma faca, nada sabendo sobre a morte dos marinheiros”. Mentira. Clima horrível e um marujo espancado à noite anterior, insultado, toma uma decisão inesperada...

 

VI.

Segundo o Capitão do Piauhy, Cap. Carlos Alves, nenhum dos militares podia portar armas fora do torpedeiro. Mas eles estavam armados sim. E esse foi armado à Delegacia. Pedro terminou a fala e ele, no impulso, sacou o revólver e meteu-lhe bala dentro da Delegacia, na frente do delegado estarrecido, boca aberta, olho arregalado. Pedro foi levado ainda vivo, mas muito ferido, ao Hospital Santa Izabel, ali por Nazaré. Que será dele?

 

VII.

Pedro Mineiro, que o pai batizou Pedro José, lábios grossos e cabelo crespo, morreu dias depois aos 27 anos; enterrado no cemitério da Quinta dos Lázaros. Tentou antes liquidar a agonia com suicídio, mas foi impedido. Tinha o corpo todo à navalha, como tudo quanto era valente. De tão bom de briga virou lenda e o apelido ganhou quando saiu de Ouro Preto/MG e se mudou para a Bahia a trabalho. Preso muitas vezes, batia de soldado a coronel e respondeu a pelo menos quatro Júris, e muitas vezes “trabalhou” para a polícia como “ganso” (informante).

 

VIII.

O Chefe de Polícia, Álvaro Costa, enviou cartas ao comandante do Piauhy reclamando dos marujos “se apresentarem armados em condições de praticarem tão vergonhosa selvageria”: o atentado no “edifício sede da alta administração policial do Estado” era uma afronta à Polícia, mas, embora as Posturas Municipais criminalizassem o porte indevido de arma, o regulamento militar tinha preferência e competia ao Capitão dar destino a eles. Ouviu que os marinheiros só tiveram “conduta semelhante à dos agentes de vossa polícia secreta”, e outras cartas, ríspidas de ambos, ilustraram e tensionaram a arisca rixa entre polícias e forças armadas à época. Os marujos pagaram cadeia no navio e ficou por isso mesmo.

  

IX.

Segundo uma fonte, Pedro, que sempre “trabalhou para a polícia”, morreu lamentando a falta de ajuda dos policiais que outrora ajudou. Até hoje, lá, quando alguém se zanga, diz-se que “está com o espírito de Pedro Mineiro”, revoltado, valente. Eis aí a história do atentado de 28.dez.1914 dum marinheiro contra Pedro Mineiro dentro da Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia.

 

X.

“Torpedeira Piauí

Encouraçado na Bahia

Marinheiro absoluto

Chegou pintando arrelia

Quando vê cobra assanhada

Não meta pé na rodia

Se a cobra assanhada morde

Se eu fosse a cobra mordia

Intimaram Pedro Mineiro

Dentro da Delegacia

Para dar depoimento

Daquilo que não sabia

Mataram Pedro Mineiro

Dentro da Secretaria”

 

Notas e Referências

Adriana Albert Dias, “Os fiéis da navalha”, 2005.

Biblioteca Nacional. Hemeroteca dos jornais “A Tarde” e “Diário de Notícias”.

Mapa da Capoeira, “Bar do Galinho e Rua Saldanha da Gama”.

Pedro Abib, “Mestres e capoeiras famosos da Bahia”, 2013.

Waldeloir Rego, “Capoeira Angola – ensaio sócio-etnográfico”, 1968.

E o que eu ouvi por aí.

Um abraço ao pessoal da Casa Mestre Ananias, em São Paulo.

 

 

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