PASSADO, PRESENTE E FUTURO DOS CONTRATOS NO DIREITO BRASILEIRO: UMA BREVE DIGRESSÃO

29/05/2020

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

É sabido por todos que o comportamento humano – e todos os seus atributos – resulta de uma conexão entre tempo, espaço e circunstâncias. Nossos pensamentos e atos estão intimamente ligados ao momento histórico, político e econômico no qual estamos inseridos. Heráclito parece ter compreendido como se dão os acontecimentos humanos ao afirmar que “nada existe de permanente se não a mudança”.

O contrato, produto da vontade humana, possui momentos e características que variam de acordo com o transcurso do tempo e de acordo com a mentalidade dos contratantes. Este texto visa a revisitar algumas das concepções do contrato para que, em um momento de tantas incertezas, possamos redescobrir como este instrumento poderá bem reger uma boa parcela de nossas vidas cotidianamente.

A Modernidade foi marcada pela supervalorização do indivíduo enquanto ser racional posto em sociedade. A igualdade formal entre os homens era um pressuposto seu e legitimava a ampla liberdade de contratar. Esse pensamento é marcado principalmente pelas correntes do direito canônico e da Escola do Direito Natural. Os canonistas tinham para si a relevância do consenso e da fé jurada[1], fazendo nascer a pacta sunt servanda em uma compreensão de extrema rigidez: o descumprimento do contrato seria considerado pecado. A Escola do Direito Natural, por sua vez, contribuiu com seus vieses individualista e racionalista, tratando a liberdade de contratar do indivíduo como a razão de ser do contrato: bastava que fosse válido para que houvesse justiça, pouco importando seus efeitos e conteúdo[2].

Tal qual o Code Napoleón de 1804 exerceu na França o papel de resguardar os interesses proprietários ao tutelar a liberdade na contratação e permitir a ascensão burguesa, o Código Beviláqua carregou consigo a mesma estrutura e objetivo. O Código brasileiro que entrou em vigor em 1917 guardava consigo a não transparência da realidade social, incorporando somente os interesses de uma minoria de pessoas que ocupava a mais alta classe social, semelhante ao cenário francês.

E é exatamente por guardarem consigo uma preocupação com a manutenção do poder de uma minoria no controle de suas posses é que essas codificações são vistas por alguns como opressoras[3].

No período pós I e II Guerra Mundial, cresceu a busca por um Estado intervencionista que participasse na vida das pessoas conferindo-lhes garantias e segurança. Nessa esfera, o direito público se sobrepõe ao privado, estando o interesse social acima do individual. Surge o que podemos chamar de dirigismo contratual. A partir disso, o contrato recebe limitações quanto ao seu conteúdo e formas de execução, estabelecendo normas de natureza cogente[4].

O que se percebe nessa fase é que o Estado passou a enxergar a coletividade como sendo os grupos que compunham a sociedade, fazendo com que cada vez mais a ideia do indivíduo absolutamente livre para contratar se perdesse: ele agora estava condicionado ao todo. E, embora as inúmeras tentativas do Estado de se desvencilhar da perspectiva contratual individualista, surge um obstáculo: a percepção dos juristas ainda estava atrelada à concepção antiga do contrato[5].

A tentativa do Estado de intervir nas relações privadas colocando o coletivismo como referencial não teve êxito. Surge então o Estado Democrático de Direito, que traz consigo um novo fenômeno: a constitucionalização do direito privado. A interpretação dessas relações deve passar pelo teste da dignidade da pessoa humana[6]. O contrato não possui mais a visão unicamente patrimonialista, incorporando a preocupação com a tutela da pessoa humana como indivíduo que merece proteção e garantias. Entende-se que a igualdade plena sempre foi uma falácia usada como instrumento de dominação, sendo percebido que nosso contexto social é heterogêneo, direcionando-se de maneira contrária com a filosofia adotada anteriormente.

Surge com esse fenômeno o princípio da função social do contrato, que subordina os efeitos da liberdade individual em detrimento do interesse coletivo, conferindo densidade à dignidade da pessoa humana[7]. Nasce a ideia de supracontratualidade, estendendo os efeitos os efeitos dos contratos a terceiros, condicionando seus efeitos ao interesse do outro[8]. “É por isso que cada contrato não pode ser pensado como um fragmento jurídico autossuficiente, mas como uma parte – que compõe o todo – deveras importante para o Direito”[9].

Após a contextualização feita acerca do contrato nos últimos tempos, investigando todo o seu passado e suas influências, chegamos até o instituto que possuímos atualmente. O contrato hoje é, por definição, um negócio jurídico bilateral que Paulo Nalin estabelece como uma “relação jurídica intersubjetiva, nucleada na solidariedade constitucional, destinada à produção de efeitos jurídicos existenciais e patrimoniais, não só entre os titulares subjetivos da relação, como também perante terceiros”[10].

O contrato é então uma relação de fato, um instituto multifacetário[11] que permite a organização da sociedade. No âmbito privado, age com sua função reguladora nas relações individuais por meio da autonomia da privada – que consiste na releitura da autonomia da vontade –, estando ela limitada por princípios que condicionam seus efeitos e dão dignidade à pessoa humana, visando a diminuir desigualdades. Este instrumento age também como propulsor da ordem econômica, concretizando a circulação de riqueza e difusão de bens, juridicizando e conferindo segurança a essas relações.

Nascidos nesse contexto os contratos serão interpretados de maneira sistemática, analisando a vontade das partes conjuntamente com suas declarações, a fim de definir o objetivo de ambos contratantes. Os comportamentos devem ser analisados durante todo o iter negocial, além do contexto econômico e social em que estão inseridos. A finalidade interpretativa não se resume em constatar se o interesse desejado pelas partes pode ser contemplado pelo universo jurídico, devendo ainda possibilitar a definição do tipo contratual pactuado e dos efeitos produzidos[12].

O questionamento que fica no presente momento é como se dará a interpretação do contrato e sua posterior produção de efeitos em tempos instáveis vivenciando a crise do coronavírus?

A pandemia alcança o contrato e a sua causa, mas não podemos deixar que o caos do sistema de saúde se estenda ao sistema jurídico. É sabido pelos juristas que há uma quebra na base negocial, mas como reagiremos a isso? Salários, demissões, mensalidades escolares, contratos de aluguel, contratos de transporte, como todas essas relações que nos cercam ficarão? O momento, mais do que nunca, pede a consideração ao princípio do favor negotti, da conformação da pacta sunt servanda às teorias e regras revisionistas, quando necessário e, ainda, da boa-fé objetiva.

São tempos em que devemos ter a decisão calibrada, tantas são as respostas possíveis (resolução ou revisão do contrato, alegação de caso fortuito de força maior, excessiva onerosidade superveniente, exceção do contrato não cumprido, teoria do adimplemento substancial, entre outros ...), mas nenhuma delas, em sua abstração teórica, carrega consigo qualquer certeza. Em verdade, não é o momento de produzirmos convicções. Devemos ter bases sólidas para as decisões, mas não taxar os acontecimentos de forma padronizada. Sabemos que a lei civil não dará conta de regular todos os fatos nesse contexto. Devemos, portanto, ser mais flexíveis e menos contundentes em crenças pré-estabelecidas: o caso concreto e suas circunstâncias devem prevalecer sobre qualquer antecipação de conceituação da realidade.

Deixo como minha consideração final a seguinte provocação: será que chegamos ao momento para o qual não nos preparamos por mero desinteresse? A necessidade do uso da autocomposição e da negociação de forma solidária já vem sendo abordada há anos pela literatura jurídica, mas por que não a colocamos em prática? Penso que chegou o momento em que devemos deixar de ver o outro contratante como um adversário, tendo como norte que em uma boa negociação, ambos são beneficiados, e não mais pensar nela como uma competição pela melhor posição na relação. O momento é único, e somente o tempo nos mostrará quais desfechos presenciaremos, mas certamente, tanto a sociedade como as relações contratuais não serão mais as mesmas, esperamos.

Meu Deus! Meu Deus!

Como tudo é esquisito hoje.

E ontem era tudo exatamente como de costume! Será que fui eu que mudei à noite?

Lewis Carroll

 

Notas e Referências

BETTI, Emílio. Teoria geral do negócio jurídico. Coimbra: Coimbra Editora, 1969.

BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. A atual teoria geral dos contratos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 811, 22 set. 2005.

CATALAN, Marcos et allDireito dos contratos. São Paulo: RT, 2008. v. 03.

CUNHA, Wladimir Alcibíades Marinho Falcão. Revisão judicial dos contratos: do código de defesa do consumidor ao código civil de 2002. São Paulo: Método, 2007.

FACHIN, Luiz Edson. O novo desenho jurídico do contrato – apresentação à obra de NALIN, Paulo. Do contrato – conceito pós-moderno: em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional.

GERCHMANN, Suzana; CATALAN, Marcos. Duzentos anos de historicidade na ressignificação da ideia de contrato. Revista de Direito do Consumidor, v. 90, p. 191-211, 2013.

GOMES, Orlando. Raízes históricas e sociológicas do Código Civil brasileiro. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

GOMES, Orlando. Contratos. 27. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno – em busca de sua formulação civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006.

TARTUCE, Flávio. Direito civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 9. ed. São Paulo: Método, 2014. v.3.

TARTUCE, Flávio. Função social dos contratos: do código de defesa do consumidor ao código civil de 2002. 2.ed. São Paulo: Método, 2007.

[1] GOMES, Orlando; atualizadores Edvaldo Brito; Reginalda Paranhos de Brito. Contratos. 27. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 5

[2] GOMES, Orlando. Raízes históricas e sociológicas do Código Civil brasileiro. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 45.

[3] BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. A atual teoria geral dos contratos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 811, 22 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7267. Acesso em: 8 maio 2020.

[4] CUNHA, Wladimir Alcibíades Marinho Falcão. Revisão judicial dos contratos: do código de defesa do consumidor ao código civil de 2002. São Paulo: Método, 2007.

[5] GERCHMANN, Suzana; CATALAN, Marcos. Duzentos anos de historicidade na ressignificação da ideia de contrato. Revista de Direito do Consumidor, v. 90, p. 191-211, 2013.

[6] FACHIN, Luiz Edson. O Novo Desenho Jurídico do Contrato – apresentação à obra de NALIN, Paulo. Do contrato – conceito pós-moderno: em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional. p. 17.

[7] Há quem não veja a função social como um limite, mas sim um contributo, motivo pelo qual esta não se faria presente em todas as relações contratuais.

[8] TARTUCE, Flávio. Função social dos contratos: do código de defesa do consumidor ao código civil de 2002. 2.ed. São Paulo: Método, 2007.

[9] GERCHMANN, Suzana; CATALAN, Marcos. Duzentos anos de historicidade na ressignificação da ideia de contrato. Revista de Direito do Consumidor, v. 90, p. 191-211, 2013. p. 205.

[10] NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno – em busca de sua formulação civil-constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006.

[11] CATALAN, Marcos et allDireito dos contratos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. v. 03. p. 40.

[12] BETTI, Emílio. Teoria geral do negócio jurídico. Coimbra: Coimbra Editora, 1969.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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