PARA UM PLANEJAMENTO URBANO PARTICIPATIVO É PRECISO SUPERAR A “GESTÃO DEMOCRÁTICA DAS CIDADES”

16/02/2018

Coordenador: Marcos Catalan

A “Gestão Democrática das Cidades” é consagrada na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto das Cidades de 2001 como a forma de participação democrática no planejamento urbano estratégico no Brasil. Portanto, é o aporte jurídico-legal para as práticas participativas na gestão das cidades, buscando o fortalecimento dos espaços públicos tendo em vista a promoção da redução das desigualdades urbanas. Entre esses instrumentos, estão, entre outros, o orçamento participativo e as audiências públicas.

Entretanto, mesmo que reconhecida como avanço e com seus méritos[i], seus limites esbarram na própria reprodução da cidade capitalista. De um lado pela forma política e de outro do fundamento da produção do espaço urbano na economia política:

O obstáculo causado pela forma política é aqui demonstrado pela visão de política de Jacques Ranciere, na concepção de uma ciência política baseada na estética da partilha do sensível – que é baseada num fomento ao dissenso/ desentendimento. Por isso, esse processo de subjetivação política é em si uma nova forma de pensar a política ao questionar o que é o falar, ouvir e o pensar, colocando a prova procedimentos previamente estabelecidos no que se entendia por comum, ou de uma comunidade. Posiciona a dimensão política no aspecto estético, justamente por expor as interações comunicativas, identificando que os processos políticos possuem uma base estética – revelando na estética mundos de dissenso entre mundos de pretenso consenso (ocultadas em uma política formal) -, em que é obrigatório resistir aos processos de partilha do sensível que estabeleçam hierarquias e desigualdades.[ii]

No urbanismo, o que vemos é uma partilha do sensível autoritária, que não consegue estabelecer formas de uma partilha democrática do sensível, justamente pela composição hierárquica e violenta da reprodução capitalista. Tendo em vista o aspecto da paisagem, o exemplo dessa partilha não democrática é a própria concepção de uma arquitetura do medo, que se reproduz como lógica de consumo, justamente por ser uma sensibilidade partilhada por todos (o medo da violência), sustentada por estruturas de seletividade e exclusão do outro.[iii]

O planejamento urbano calcado nas ferramentas jurídicas da “gestão democráticas das cidades” cria espaços para a legitimação das práticas urbanas, sendo posterior ao momento de reprodução da forma política autoritária de um sensível ideologicamente orientado pelo capitalismo, pois não radicaliza a democracia ao ponto de submeter o cidadão ao protagonismo – e da responsabilidade - do pensar a cidade. É preciso proporcionar espaços e círculos para o desentendimento, para a criação contestadora.

Ainda, sob o ponto de vista da economia política que constitui as condições materiais da produção do espaço, ocorrem agravamentos das desigualdades proporcionadas pelo atual momento de acumulação ampliada do capital, em que a classe capitalista dominante apreende a cidade como meio e poder, utilizando de políticas públicas para valorizar ou desvalorizar lugares.

É domínio da sociabilidade capitalista – forma mercadoria – exercido sobre a cidade, sendo a regra da forma espacial, correspondendo a dialética inerente a ela – nas dimensões econômica, política e social. Portanto, forma uma condição de formatação do espaço urbano igualmente autoritária tanto do ponto de vista da forma política como da economia política.[iv]

Por essas limitações impostas aos preceitos jurídicos do planejamento urbano calcado num ordenamento urbanístico, que a geógrafa Ana Fani Carlos aponta a necessidade de resgatar um princípio fundamental do pensamento de Henri Lefebvre, que é a necessidade de pensar um “novo mundo”, uma revolução da vida cotidiana (que contempla a economia política) e uma revolução da gestão (que confronta a forma política): 

Do espaço público (e do público), uma voz se espalha pelo mundo, focando a racionalidade da acumulação e da ação do Estado neoliberal e questionando o capitalismo como modelo civilizatório. Essa ação convoca à reflexão. Obriga-nos a repensar a realidade, compreender os conteúdos da crise urbana. Os gritos, que são insistentemente ignorados, sinalizam a necessidade de construção de um projeto capaz de pensar um “outro mundo”. [v] 

A superação da “gestão democrática das cidades” e, portanto, da forma jurídica, só ocorre por meio de um projeto de sociedade que rompa com o capitalismo, é necessidade para o planejamento urbano que busque o chamado “direito à cidade”[vi]. Teorias de um planejamento urbano “para as pessoas” como de Jan Gehl[vii] ou o protagonismo da concepção arquitetônica pensando por João Farias Rovati[viii], entre outras, para serem efetivas, precisam superar impasses da política e da economia capitalista, enaltecendo o potencial transformador do planejamento urbano como revolução dúplice (da vida cotidiana e da gestão).

 

[i] Conforme explanado pelo geógrafo Marcelo Lopes de Souza em: SOUZA, Marcelo Lopes de. Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento urbano e à gestão urbana. 11 ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 2016

[ii] Ver: RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: Política e Filosofia. Tradução: Angela Leite Lopes. São Paulo: Editora 34, 1996; e RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. 2 ed. Tradução: São Paulo: Editora 34, 2009.

[iii] Ver mais em: KNEBEL, Norberto Milton Paiva. Questão urbana, seletividade penal e arquitetura do medo: a gentrificação do Humaitá em Porto Alegre/RS. 2017. 237f. Dissertação (mestrado) – Universidade LaSalle (Programa de Pós-Graduação em Direito). Canoas, 2017. 

[iv] Ver CARLOS, Ana Fani Alessandri. A privação do urbano e o “direito à cidade” em Henri Lefebvre. In: CARLOS, Ana Fani Alessandri; ALVES, Glória; PADUA, Rafael Faleiros de. Justiça espacial e direito à cidade. São Paulo: Editora Contexto, 2017; e CARLOS, Ana Fani Alessandri. A condição espacial. 1. ed. São Paulo-SP: Contexto, 2015. 

[v] Ver: CARLOS, 2017, p. 59.

[vi] Ver: BONFIGLI, Fiammetta; KNEBEL, Norberto Milton Paiva. O Direito á Cidade enquanto prática jurídica no neoliberalismo. In: XXVI Congresso Nacional do Conpedi, 2017. São Luís – MA. Anais do GT Direito Urbanístico, Cidade e Alteridade. Florianópolis, 2017. Disponível em: https://www.conpedi.org.br/publicacoes/27ixgmd9/m4wql6h3

[vii] GEHL, Jan. Cidade para pessoas. São Paulo: Perspectiva, 2013.

[viii] Ver: ROVATI, João Farias. Urbanismo, concepção arquitetônica da cidade e protagonismo. Anais do III Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo: arquitetura, cidade e projeto: uma construção coletiva. São Paulo, 2014.

 

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