Para quem interessa a educação domiciliar? Entre o familismo e o menorismo

09/06/2022

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

Brasil, maio de 2022. A disputa acerca da “educação domiciliar” ou homeschooling entrou mais uma vez na seara do debate nacional, a partir da aprovação na Câmara dos Deputados, da Subemenda Substitutiva/22 do Projeto de Lei (PL) nº 3179/2012, de autoria do Deputado Lincoln Portela (PR/MG). Sua aprovação e encaminhamento ao Senado representou, para além de PL, uma forma de conceber a educação escolar e a própria noção dos direitos das crianças e dos adolescentes.

Debruçar-se sobre a proposta do PL da “Educação Domiciliar” e seu Relatório - assinado pela Deputada Luiza Caziani (PDS/PR), permite-nos conhecer como os/as parlamentares envolvidos/as e seus correligionários pensam a relação entre as famílias e as escolas, concebendo o domicílio, o lar, a casa, como espaço de educação regular, transferindo, assim, para os pais e aos responsáveis o direito de promover a educação regular das crianças e adolescentes.

Nas entrelinhas do discurso, o PL traz consigo o ideário familista, uma vez que a instituição social família passa a exercer uma função do Estado. Aprofundando-se sobre os estudos produzidos sobre o familismo, é possível afirmar que tal perspectiva é cultivada nas sociedades onde o conservadorismo religioso concebe à família um lugar central nas relações de poder, atingindo diferentes dimensões da vida cotidiana e das políticas de assistência social, saúde e por que não dizer da educação.

Os estudos de Wanderson Santos apontam que na perspectiva familista, a instituição família ocupa a atribuição social de prover o bem-estar social dos seus membros, “em vez de essa provisão ser oriunda do funcionamento de políticas públicas mantidas sob responsabilidade do Estado” (Santos, 2014, p. 26).   De modo doutrinador, as responsabilidades sociais passam a ser compartilhadas entre Estado e família, que se irmanam no sentido de transferências das responsabilidades sobre a vida das pessoas.   

A partir da proposta aprovada pela Câmara de Deputados, as famílias passam a ter o poder de autonomia para promover a educação regular, uma vez cadastrada nesta modalidade e acompanhada pelas escolas e pelos conselhos tutelares. Nesse sentido, a própria escola passa a assumir uma nova função de monitorar a educação domiciliar e a atuação dos chamados “educadores em educação domiciliar”. A proposta ainda traz para cena outra instituição, o conselho tutelar; que em parceria com a escola passariam a monitorar as famílias que aderirem à modalidade.

É neste processo que a proposta familista se associa com outra perspectiva: o menorismo, uma vez que passam a conceber a escola e o conselho tutelar como dispositivos disciplinadores e controladores desta “modalidade”. Os conselheiros/as tutelares, que emergem a partir da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente com as atribuições de “zelar” pelos direitos de meninos e meninas, tornar-se-iam agentes de vigilância, como exerciam os “agentes de menores”, no extinto Código de Menores (Miranda, 2014).

Percebo que esta proposta, para além de inconsistente, afronta diretamente o direito à educação escolar garantido pela Constituição Federal de 1988, materializado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), por isto o PL da “Educação Domiciliar” desperta a preocupação das pessoas e coletivos que defendem a educação escolar como direito humano inalienável das crianças e adolescentes.

É a partir desta base legal que a escola assume a função de contribuir para o a crescimento integral de meninos e meninas. É na escola que elas se desenvolvem nas dimensões do cognitivo, do físico-motor e do afetivo. Nela, meninos e meninas trocam experiencias, criam laços de amizade e fraternidade. Espaço físico e social, onde garotos e garotas produzem cultura e aprendem os conhecimentos produzidos por diferentes gerações. É na sala de aula, na hora do recreio ou nas atividades esportivas e recreativas, que as pessoas crescem nos planos individual e coletivo.

É na escola que se discute gênero, liberdade de expressão, respeito a pluralidade étnica e racial. É na escola que aprendemos a votar e discutir os diferentes processos eleitorais... É na escola que podemos aprender e a viver a democracia, a cidadania e os direitos humanos. É no conselho tutelar que se defende o direito à vaga nas escolas públicas, que se encaminham as denúncias de violência doméstica, dos abusos e exploração sexuais e os casos de exploração das crianças e adolescentes no mudo do trabalho adulto.

Este processo de descolarização se torna ainda mais danoso no país com tradição escravista e patriarcal, fortemente marcado pelas desigualdades sociais e educacionais como o nosso. Acredito que a recusa à educação domiciliar deve ser acompanhada da defesa da escola e do conselho tutelar como espaços de direitos humanos da proteção da vida e não como espaços de controle e punição. Da defesa dos profissionais da educação, das licenciaturas e de todos e todas que lutam pelo acesso, permanência e qualidade da escola pra as diferentes crianças e suas diferentes infâncias.

Desse modo, o PL da educação domiciliar nega o direito das crianças e dos adolescentes a ter acesso a este pluriverso da educação e ao mundo do ensino escolar. E como é bonito e fundamental o acesso a este mundo para a proteção plural e integral das crianças e dos adolescentes... Como dizia Hanna Arend, “é na escola que a criança faz a sua primeira entrada no mundo” e para além de sua função exclusivamente técnica, “a escola é antes a instituição que se interpõe entre o domínio privado do lar e o mundo, de forma a tornar possível a transição da família para o mundo”, e por fim afirma: “não é a família, mas o Estado, quer dizer, o mundo público, que impõe a escolaridade”. (Arend, 1956, p. 10)

Mas, para quem interessa este PL da “educação domiciliar”, aprovado em maio na Câmara dos Deputados? Para muitos, mas, principalmente, para as pessoas e os coletivos que acreditam na centralidade da família tradicional como proprietária dos corpos e mentes das crianças e adolescentes e que acreditam nos profissionais de educação e nos/as conselheiros/as tutelares como agentes de controle e punição. Esses possuem seus representantes ocupando cargos nas gestões públicas, na iniciativa privada (que almejam garantir novos mercados educacionais) e, sem falar no próprio parlamento, que buscam produzir projetos de leis – mesmo que inconstitucionais -, para garantir o apoio de setores conservadores.

O familismo alinhado ao menorismo fundamentam ideologicamente a proposta da educação domiciliar, que materializa a negação do reconhecimento das crianças e dos adolescentes como sujeitos de direitos e afirmação de uma cultura historicamente construída que insiste em concebê-los como objetos dos interesses dos adultos. A educação domiciliar, ao reproduzir o ideário familista e menorista, objetifica os meninos e meninas, negando-lhes a condição de sujeitos de direitos.

 

Notas e Referências

ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. Tradução Mauro W. Barbosa. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.

MIRANDA, Humberto da Silva. Nos tempos das Febems: memórias de infâncias perdidas (Pernambuco/1964–1985). 2014. 348 f. Tese. (Doutorado em História)– Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2014.

SANTOS, Wederson.  Os esquecidos: familismo e assistência pública na inimputabilidade por doença e deficiência mental no Brasil. Tese (doutorado) – Universidade de Brasília, Departamento de Sociologia, 2014.

 

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