Para que serve a resposta à acusação?

08/10/2015

 Por Klayton Augusto Martins Tópor e Taísa Lúcia Salvi - 08/10/2015

Ao longo da história, o Código de Processo Penal brasileiro vem sofrendo diversas alterações legislativas, e apesar dessas modificações, nosso vetusto Código ainda apresenta inúmeras inconsistências e incoerências na sistemática processual penal.

As últimas tentativas de alterações e modernizações do Código de Processo Penal resultaram em expectativas frustradas, haja vista que o resultado prático de sua aplicação, que depende da contribuição dos operadores do Direito, não alcançou o objetivo almejado.

Analisando-se uma das últimas reformas pontuais, onde profundas alterações foram sentidas na parte dos procedimentos do processo penal, mas que resultaram em uma grande problemática, foi a trazida pela Lei n. 11.719/08. Neste sentido, segundo Giacomolli, “resulta evidente a deformação ritualística do processo penal (degeneração das formas), gerada pelo legislador de 2008 e pela azáfama de pronta votação dos denominados “projetos setoriais”[1].

Logo após a entrada em vigor da referida Lei, surgiram problemas em relação a lógica dos atos processuais, no caos estabelecido nos artigos 394 a 536 do Código de Processo Penal. Daí surgiram indagações como, por exemplo, qual efetivamente é o momento do recebimento da denúncia (artigo 396 ou artigo 399 do Código de Processo Penal)?[2] Aplica-se subsidiariamente o rito comum aos procedimentos especiais (artigo 394, §2 do Código de Processo Penal)? Sim, mas o ordinário, o sumário ou o sumaríssimo, ou qualquer um deles? Há alguma diferença entre as hipóteses de rejeição da denúncia (artigo 395 do Código de Processo Penal) e as da absolvição sumária (artigo 397 do Código de Processo Penal)?

Por todas essas incoerências a jurisprudência teve que se posicionar e estabelecer um critério mínimo de interpretação que trouxesse segurança jurídica para os jurisdicionados. Assim, temos o atual o entendimento do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o recebimento da denúncia ocorre antes da apresentação da resposta à acusação, no momento definido no artigo 396 do Código de Processo Penal.[3] No que se refere ao §2º do artigo 394 do referido diploma legal, havendo procedimento especial no Código ou em Lei esparsa, afasta-se o comum. E, na ausência de previsão de rito especial, se aplica o procedimento de acordo com a pena aplicada, nos termos do artigo 394, §1º.[4]

Contudo, em relação às hipóteses de absolvição sumária e sua devida fundamentação, a jurisprudência, salvo outro juízo, não fez a melhor interpretação.

Isso porque, a maioria das decisões afirmam que não há necessidade de enfrentamento do mérito na decisão que não absolve sumariamente o acusado, bem como afirmam que não podem se manifestar sobre as causas de rejeição da denúncia (artigo 395 do CPP) nessa fase processual[5], a qual foi superada pelo recebimento da denúncia.

Quanto a não fundamentação da decisão que não absolve sumariamente, ao contrário do entendimento jurisprudencial, deve, sim, ser devidamente fundamentada, como reclama o artigo 93, inciso IX da Constituição Federal. Até mesmo porque, a resposta defensiva só irá assumir seu papel de garantia se o juiz considerar e analisar tudo o que for alegado e apresentado pelo acusado no interesse de sua defesa, o que, consequentemente, exige, para se fazer valer as garantias do acusado, que a decisão proferida pelo Juízo enfrente todas as postulações agitadas na resposta à acusação, por escrito, produzida pela defesa.

Como bem observam Casara e Melchior, “se é certo que nem todos os casos de valoração e motivação da decisão exigem o mesmo esforço, não é menos correto afirmar que em todos eles há de se fazer o necessário para que o acusado tenha claro quais foram às hipóteses de partida relativas ao fato principal e seus desdobramentos integrantes iniciais”[6].

Contudo, não raro, após apresentada a resposta à acusação arguindo preliminares e alegando tudo o que interesse a defesa do acusado, nos termos do art. 396-A do CPP, a decisão do julgador, confirmada pelos Tribunais, é contemplada com a seguinte frase genérica e abstrata: não é caso de absolvição sumária, pois não estão presentes as hipóteses do art. 397 do CPP.

A jurisprudência, uníssona, afirman que não sendo hipótese de absolvição sumária, essa decisão do juízo processante não demanda fundamentação complexa, sob pena de antecipação prematura de um juízo meritório que deve ser realizado naturalmente realizado ao término da instrução criminal.[7]

Ora, a defesa, seja ela prévia ou no curso da instrução, não pode se constituir em um exercício meramente formal - num simulacro -, mas há de ser realizada de forma substancial, material, ampla, como requer a garantia prevista no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal. Especialmente quando o seu escopo é justamente elidir o próprio curso da ação processual penal.

Neste fio, por força das alterações promovidas pela Lei n. 11.719/08, o rito comum ordinário criou uma nova barreira a ser superada para a sequência da ação processual penal, prevista nos artigos 396-A e 397 do Diploma em apreço, a qual, depois do recebimento da inicial acusatória, tem como objetivo a absolvição sumária do acusado.

Por isso, quando do recebimento da denúncia, o Magistrado deve ter como norte a análise dos pressupostos previstos no artigo 395 do CPP, isto é, deve verificar se a denúncia não é “manifestamente nula” (I), ou não “faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal” (II), ou, ainda, se não “faltar justa causa para o exercício da ação penal” (III); no segundo, a teor do artigo 397 do CPP, deve pronunciar-se sobre “a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato” (I), “a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade” (II), “que o fato narrado evidentemente não constitui crime (III), ou esteja “extinta a punibilidade do agente” (IV).

Como se vê, são diferentes os pressupostos de análise de cada instituto, tendo a mudança na Lei se constituído em claro aumento das garantias defensivas. E se a defesa não pode ser meramente formal, menos ainda pode sê-lo o exercício do poder de julgar.

É por essa razão que o Juiz, após a apresentação da defesa escrita, novamente analisará os autos, verificando, em uma segunda avaliação, mais profunda, a admissibilidade da inicial acusatória.[8] Em outras palavras, após a apresentação da defesa escrita, se nesta restar suscitada, por exemplo, inépcia da denúncia ou falta de justa causa para ação penal – hipóteses descritas no artigo 395 do CPP -, tem o direito de ter sua tese defensiva apreciada e acolhida ou rechaçada fundamentadamente.

Outrossim, devemos observar que o os incisos elencados no artigo 397 do CPP nada mais fazem que reproduzir duas condições da ação: prática de fato aparentemente criminosa e punibilidade. As quais são questões intimamente vinculadas ao mérito, ao elemento objetivo da pretensão acusatória, interessando a defesa, que, via de regra, são elencados depois, na resposta escrita, prevista no artigo 396-A do CPP.[9]

Por certo, é pouco provável que o magistrado tenha elementos para efetuar a análise de existência de causa de exclusão da ilicitude ou culpabilidade, mesmo que patente, quando do oferecimento da exordial acusatória, contudo, se as tiver, deve rejeitá-la. Em contrapartida, após a apresentação da defesa escrita, novos elementos podem ser trazidos aos autos, permitindo essa decisão. Além disto, por serem questões vinculadas ao mérito e que, portanto, geram coisa julgada material, a absolvição sumária é uma decisão adequada para esse fim [10]

Destarte, cumpre referir, que além das hipóteses elencadas no artigo 397 do CPP, na defesa escrita o acusado poderá alegar “tudo o que interesse à sua defesa”, conforme disposto no artigo 396 do CPP. Logo, temos que os incisos do artigo 397 do CPP, devem ser lidos como rol exemplificativo, e não taxativo, pois as teses defensivas podem ser as mais amplas possíveis já nesta fase inicial da ação penal.[11]


Notas e Referências:

[1] GIACOMOLLI, Nereu José. Reformas (?) do processo penal: considerações críticas. Editora Lumen Juirs: Rio de Janeiro, 2008, p. 59.

[2] Cumpre referir que o recebimento da exordial acusatória é marco interruptivo da prescrição, nos termos do artigo 117, inciso I, do Código Penal. Assim, dependendo da resposta que se atribua a questão o marco interruptivo dar-se-á antes ou depois da resposta à acusação.

[3] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quinta Turma. Recurso Ordinário em Habeas Corpus, n. 27571/SP. Relatora Ministra Laurita Vaz. Ementa: [...]"De acordo com a melhor doutrina, após a reforma legislativa operada pela Lei n.º 11.719/08, o momento adequado ao recebimento da denúncia é o imediato ao oferecimento da acusação e anterior à apresentação de resposta à acusação, nos termos do art. 396 do Código de Processo Penal, razão pela qual tem-se como este o marco interruptivo prescricional previsto no art. 117, inciso I, do Código Penal para efeitos de contagem do lapso temporal da prescrição da pretensão punitiva estatal." (HC 144.104/SP, 5.ª Turma, Rel. Min. JORGE MUSSI, DJe de 02/08/2010.) [...]. Julgado em 13/11/2012. DJe 23/11/2012.

[4] MENDONÇA. Andrey Borges de. Nova reforma do Código de processo penal: comentada artigo por artigo. São Paulo: Método, 2008, p .256.

[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RHC 060688. Relator Ministro Leopoldo de Arruda Raposo. “[...] Ademais, é cediço nesta Corte Superior de Justiça que "é prescindível o exaustivo e exauriente enfrentamento das teses defensivas por ocasião da resposta preliminar prevista no art. 397, do CPP, bastando, para tanto, ainda que de forma sucinta, a mínima referência aos argumentos expendidas pela defesa, evitando-se, por conseguinte, o prejulgamento da demanda" (RHC 56.166/BA, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 05/05/2015, DJe 15/05/2015), circunstância que afasta a plausibilidade jurídica do pedido. [...]”

[6] CASARA, Rubens R. R.; MELCHIOR, Antônio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro: dogmática e crítica. Vol. I: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 338.

[7] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Sexta Turma. Relator Ministro Rogério Schietti Cruz. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. ART. 302, PARÁGRAFO ÚNICO, II, DA LEI N. 9.503/1997. RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. REJEIÇÃO DA DEFESA PRELIMINAR. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. ILEGALIDADE. NÃO EXISTÊNCIA. RECURSO NÃO PROVIDO. 1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é firme em assinalar que "não sendo a hipótese de absolvição sumária do acusado, a decisão do Juízo processante que recebe a denúncia não demanda fundamentação complexa, sob pena de antecipação prematura de um juízo meritório que deve ser naturalmente realizado ao término da instrução criminal, em estrita observância aos princípios da ampla defesa e do contraditório" (AgRg no AREsp n. 440.087/SC, Rel. Ministra Laurita Vaz, 5ª T, DJe de 17/6/2014). 2. A decisão que rejeita a resposta à acusação, apresentada na fase do art. 396-A do Código de Processo Penal, consubstancia mero juízo de admissibilidade da imputação, em que se trabalha com verossimilhança e não com certeza. A motivação do ato decisório neste momento da persecução penal deve, portanto, ater-se à admissibilidade da imputação, de modo a evitar o prematuro julgamento do mérito. 3. Não ocorreu a apontada ilegalidade a ensejar o provimento deste recurso, pois o Juiz de primeiro grau fundamentou, minimamente, a admissibilidade da imputação, ao rejeitar a defesa preliminar, dizendo que, pela natureza meritória, deixava o exame das teses defensivas para momento posterior e oportuno. Embora a defesa tenha feito alusão à "falta de justa causa" e à "atipicidade subjetiva da conduta" - matérias então aventadas -, na verdade, postulou a absolvição sumária e aduziu razões que dizem respeito ao mérito da impetração (que demanda dilação probatória para a formação da convicção), o que foi afastado pelo magistrado. 4. Recurso não provido. RHC 42668. Julgado em 06/08/2015, DJe 26/08/2015

[8] Oshiro, Glaucio Ney Shiroma; O recebimento da denúncia ou queixa na Lei n. 11.719/2008, disponível em http://www1.jus.com.br/Doutrina/texto.asp?id=14687, consulta em 16 de agosto de 2010

[9] LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional, vol. I, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 390/392.

[10] LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional, vol. I, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 390/392.

[11] Neste sentido, vide decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. 1ª Câmara de Direito Criminal.  no julgamento do Habeas Corpus, n. 0143100-96.2012.8.26.0000. Relator Desembargador Márcio Bartoli.

CASARA, Rubens R. R.; MELCHIOR, Antônio Pedro. Teoria do processo penal brasileiro: dogmática e crítica. Vol. I: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

GIACOMOLLI, Nereu José. Reformas (?) do processo penal: considerações críticas. Editora Lumen Juirs: Rio de Janeiro, 2008.

LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional, vol. I, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

MENDONÇA. Andrey Borges de. Nova reforma do Código de processo penal: comentada artigo por artigo. São Paulo: Método, 2008.

Oshiro, Glaucio Ney Shiroma; O recebimento da denúncia ou queixa na Lei n. 11.719/2008, disponível em http://www1.jus.com.br/Doutrina/texto.asp?id=14687, consulta em 16 de agosto de 2010.


KlaytonKlayton Augusto Martins Tópor é Advogado Criminalista, Mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS (2014); Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Ritter dos Reis – UniRitter (2008); Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS (2006); Atualmente é Secretário-Geral da Associação dos Criminalista do Rio Grande do Sul – ACRIERGS; Foi Conselheiro da ACRIERGS (2006/2008); Membro da Comissão dos Jovens Advogados da OAB/RS, Porto Alegre; Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RS, Porto Alegre; Professor de Direito Processual Penal na Universidade Luterana do Brasil – ULBRA, Campus Guaíba/RS; Membro da Comissão dos Jovens Advogados da OAB/RS, Porto Alegre (2010/2012); Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RS, (2010/2012).


TaísaTaísa Lúcia Salvi é Advogada Criminalista, Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Faculdade IDC (2007); Graduada em Direito pelo Centro Universitário Ritter dos Reis – UniRitter (2004); Conselheira da Associação dos Criminalista do Rio Grande do Sul – ACRIERGS; Membro da Comissão dos Jovens Advogados da OAB/RS, Porto Alegre; Assessora Jurídica do Centro de Referência Especializado de Assistente Social – CREAS, na Comarca de Canoas/RS.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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