Por Emrich Sá - 09/01/2016
Escrevo inspirado no último artigo aqui no Empório do colega Luccas Tartuce. Ao lê-lo, senti a alegria de quem vê luzes na escuridão jurídica que (ainda) vivemos. Mas experimentei paradoxalmente incômodo, porque é preciso certos cuidados no caminho sugerido, afinal tu és responsável por aquilo que cativas, diria o pequeno príncipe. Por um genuíno imperativo categórico, não poderia me omitir em dizer algumas (poucas) palavras que constituem antes uma crítica construtiva do que uma narcísica contestação.
Os Papagaios do Direito e a Sociedade dos Poetas Mortos é louvável na constatação de uma epidemia endêmica em terra brasilis: estamos com dificuldade em formar pessoas capazes de pensar, o que pressupõe aptidão para criticar os standards jurídicos, quando necessário.
O Direito deve urgente, sim, ser visto enquanto uma ciência que possui um fundo lógico, uma “ratio”, a qual para ser compreendida reclama mais do que (só) memorização, exigindo uma atitude sincera de reflexão e espírito multidisciplinar. Em outras palavras: o discente deve se esforçar ativamente para compreender os paradigmas filosóficos que estão por detrás das leis, para com sólida formação hermenêutica entender o porquê da norma jurídica. Buscar os clássicos. E, claro, literatura, muita literatura, aconselha sempre Lênio Streck.
Há, também, dificuldades por parte de alguns professores, já que parte deles não conhecem os alicerces sob os quais ergueu-se o edifício jurídico, logo reproduzem tão somente o que está na “lei seca”. Ensinam princípios sem conhecer o princípio. Existe, igualmente, as imposição da sociedade de consumo, em que se busca digerir com menos esforço possível as lições jurídicas. O professor, neste caso, muitas vezes precisa do parco salário ou se promover mesmo, não lhe restando senão entrar no “sistema”. Temos, ainda, as faculdades-comércio estruturadas para formar pessoas para prestar o exame da ordem e concursos. Daí toda a “literatura facilitada”. Isso é grave. Gravíssimo. Esses desafios na formação jurídica podem ser todos inferidos do texto do meu conterrâneo Lucas Tartuce, ainda que não dito de forma expressa.
O mal-estar, com efeito, emerge nos meios pelos quais percorre o autor para dizer isso. Se eu o entendi minimamente, vi, ademais, um perigoso elogio ao estilo light de viver pós-moderno, em que se tem verdadeira aversão a grandes esforços. A filosofia contemporânea retrata bem a decadência desse modo de viver.
Primeiramente, e aproveitando o ensejo para fazer votos para 2016: eu queria muito, muito mesmo, que os alunos levassem muitos livros para as faculdade de Direito. Mochilas abarrotadas. Deixassem de gastar o salário de estagiário com as festas do “find” para investir em livros, caso a faculdade não possua boa biblioteca, na medida em que sabemos que não são poucas e nem todos possuem uma estrutura financeira por trás. Fossem para a aula de espírito livre e, sem querer pedir demais, com leitura prévia.
Para as aulas de filosofia, lessem diuturnamente quem muito dominou a matéria: os gregos, o bom e velho Marx – para melhor dar sentido ao Estado de bem estar social e aos direitos sociais -, Adorno, Wittgenstein, Heidegger e, mais recentemente, Sloterdijk. Perdoe-me o leitor não citar todos os grandes, porque foram tantos extraordinários que uma vida inteira dedicada aos estudos parece pouco para contemplar suas pérolas em forma de livro.
Que ficassem horas e horas em Platão e Aristóteles, para um conhecimento mínimo da filosofia grega e, portanto, do ocidente. De bandeja, por exemplo, o aluno ganharia sutileza na análise dos problemas da vida e beberia da fonte da democracia e da verdadeira cidadania, tendo condições, assim, de apreender a plenitude de sentido do artigo 1º, II e parágrafo único, da Constituição Federal. Estudassem Processo Penal desde Joaquim Ignácio de Ramalho e Pimenta Bueno, do século XIX, passando por João Mendes de Almeida Jr, Câmara Leal, Eduardo Espínola Filho, Jose Frederico Marques, Hélio Tornaghi chegando, enfim, a Tourinho Filho. Com essa base, estar-se-ia preparado para entender a doutrina atual e enfrentar os problema jurídicos. E por aí vai...
Se alguém consegue fazer a leitura de ao menos um século de pensamento com algumas poucas horas de estudo, sem incontáveis horas-bunda na cadeira e dolorida renúncia, reconheço de fato minha total falência enquanto leitor.
Nem com grande esforço imagético consigo vislumbrar que um desses grandes, de gênio singular, escreveram seus livros sem anos da vida entre meditação e leitura. Sem finais de semana “perdidos” confrontando obras, exercendo juízo crítico, para, após cansativo trabalho, tomar posição.
A leitura dos grandes é indispensável, como já alertara Isac Newton: “se vi mais longe, foi por estar de pé sobre ombros de gigantes”. Se para os próprios grandes o trabalho para forjarem algum pensamento novo foi enorme, imagina para nós, simples e diminutos mortais. Sejamos honestos com nós mesmos, não há pensamento criativo sem trabalho hercúleo. Einstein, de vida muito regrada, aliás, foi franco ao dizer que a teoria da relatividade foi 99% transpiração e 1% inspiração. E isso não anula de forma alguma “fazer novos amigos, ler poesia, amar e contestar”, como supõe Luccas Tartuce. Ao contrário, contribui e muito fazer da vida poesia. Não significa, do mesmo modo, que não possa deleitar-me às vezes com alguns bons porres. Estes podem até colaborar com a criatividade, que o diga o beberrão Charles Bukowski.
E deve-se acrescentar que o amplo estudo dos clássicos não significa necessariamente ser preparação para o sucesso, como comenta Luccas sobre os que se privam pelo estudo, mas deve expressar um desejo sobrenatural de contribuir para a evolução da humanidade, como demonstra Olavo de Carvalho nas suas aulas e escritos sobre o verdadeiro intelectual.
Essa ligação fria entre sucesso e estudo é extremamente perigosa, porque pode prostituir o pensamento, tornando-o (mais) mercantilizado, reduzindo-o a números de produtividade, que associam ao falado sucesso. Quem conhece um departamento de pesquisa sabe as consequência do que quero dizer.
Não há nada, nada mais urgente, neste país, do que criar uma geração de estudantes à altura das responsabilidades da inteligência. Ao dizer isso, estou consciente de pedir urgência para uma tarefa que, por sua natureza, é de longuíssimo prazo. A vida intelectual não se improvisa: ela resulta da confluência feliz de inumeráveis trajetos existenciais pessoais numa nova linguagem comum laboriosamente construída com materiais absorvidos, a duras penas, de tradições milenares. Quando a urgência imperiosa vem amarrada à demora invencível, o espírito humano é testado até o máximo da sua resistência. Nada mais difícil do que aliar a intensidade do esforço contínuo à longa espera de resultados incertos. Contra o desespero em tais circunstâncias, o único remédio está na fórmula de Goethe: “É urgente ter paciência.”
Para findar, devemos ter cuidado com o que dizemos e escrevemos, principalmente em uma sociedade que tem a síndrome de manada e que se empolga muito fácil com a boa retórica. Daqui a pouco, Carpe Dien pode virar, verdadeiramente, um lema para a vida e não teremos tão fácil alunos que se privam em prol de uma vida de estudos. E um país não pode sobreviver muito tempo sem alguma vida intelectual.
. Emrich Sá é Analista Judiciário do TRT-SC, lotado em Blumenau. Pós-graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho. Ex-assessor do Ministério Público do Estado de Goiás (6º PJ de Rio Verde-GO).
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