Por Luana de Carvalho Silva Gusso - 05/10/2016
Há pouco mais de um ano tornei-me mãe e passei a me deparar com a cantiga de noites mal dormidas. Para enfrentar as longas manhãs insones, recebo diariamente inúmeros conselhos do mundo de experiências maternais, incluindo um que - enfrentando todo o ceticismo de uma cientista - resolvi enfrentar: “bebê que não dorme a noite...só pode ser quebranto”. Assim, procurei uma benzedeira de confiança e lá fui eu, uma vez por mês – religiosamente – benzer meu filho contra o quebranto... e olha que ele volta calminho...
Para os desavisados, antes que se perguntem como tal desabafo pode se relacionar com o sistema penal, escrevo sobre uma insidiosa questão que atravessa o nosso nada sutil sistema penal: a criminalização de identidades culturais não majoritárias em nosso país.
Uma questão que não é propriamente uma novidade, pois na história de nossas tipificações penais encontramos vários exemplos de práticas culturais ou modos de fazer criminalizados. Como não recordar do crime de “jogar capoeira” previsto no artigo 402 do Código Penal de 1890, em que “Fazer nas ruas e praças publicas exercicios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; (...)” dava prisão de 02 a 06 meses? Ou ainda, o crime previsto no artigo 157, a Prática do Espiritismo, versando sobre “Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilegios, usar de talismans e cartomancias para despertar sentimentos de odio ou amor, inculcar cura de molestias curaveis ou incuraveis, emfim, para fascinar e subjugar a credulidade publica”, cuja pena, variava de 01 a 06 meses, mais multa.
E não se trata apenas de crimes “históricos”. Recentemente, uma aluna me procurou após uma aula sobre direitos culturais. Em seu relato, narrava sua preocupação com ações judiciais contra seu centro de crença e, também, espaço cultural – um terreiro de candomblé. A vizinhança reclama constantemente do barulho dos atabaques no horário noturno. Além das explicações exigidas sobre o sacrifício ou o maltrato a animais. Somando a isso podemos pensar nas dificuldades jurídicas tensionadas pelo infanticídio indígena ou o temor da segurança social provocado por práticas culturais como a Farra do Boi em Santa Catarina e, até em rodeios, que todos anos, levam centenas de pessoas as ruas e as “arenas”.
É por estas e outras que convidamos a uma reflexão sobre os processos de criminalização que incidem sobre uma determinada cultura ou identidade cultural. Um primeiro passo é compreender a complexidade da definição de cultura e, ainda, de uma identidade cultural. Seguindo a trilha de pesquisadores como Yúdice[1] e Hall, podemos entender a identidade cultural mediante a identificação que um indivíduo faz com uma determinada cultura. Um processo de identificação marcado pela tensão, pois constantemente somos confrontados por outras identidades culturais no jogo social. É nesse sentido que, segundo Hall, a universalidade da ideia de sujeito moderno é contrabalanceada pela fragmentariedade das visões de mundo contemporâneas, desestabilizando as velhas identidades totalizantes que sustentavam o mundo social. Assim, no lugar de um sujeito único temos a emergência de identidades culturais fragmentadas.[2] Entretanto, isso não significou uma maior tolerância em relação à diversidade das identidades culturais, pelo contrário, promoveu uma rivalidade entre as mesmas. As culturas que possuem maior força, os chamados “grupos étnicos dominantes”, como menciona Hall, podem impor seus valores, estatutos, estética ou moralidades às outras culturas o que, muitas vezes, justificaria um processo de criminalização.
A descrição do processo de criminalização imposto a certos sujeitos ou grupos é bem conhecida pelos estudos da sociologia do controle social, da criminologia e, também do direito penal. Um processo de seleção discriminatória, conceituada por vários nomes: estigmatização, etiquetamento, rotulação, satanização, outsider, direito penal do inimigo, etc. São velhos/novos conhecidos dos atores jurídicos que transitam pelo sistema penal. Para o outro, o estranho, o diferente, é mais fácil (e necessário) construir a ideia de criminoso. Entendemos e sentimos como algumas estratégias de poder (como o judiciário, a polícia, o Estado) transforma o outro, o estranho ou o diferente em um criminoso. Mas a criminalização de identidades culturais pode ser ainda mais perversa. Não se trata de criminalizar um sujeito ou uma ação no mundo, mas negativar, culpabilizar e, por fim, criminalizar o processo de identificação do sujeito na e pela cultura. A partir do reconhecimento jurídico de identidades culturais criminalizadas – que podem também ser patologizadas - todo o repertório de práticas e de modos de fazer passam a ser considerados suspeitos, policiados, vigiados, controlados e, até, responsabilizados criminalmente.
Escrevo este artigo a partir de uma provocação de uma aluna[3], iniciante do curso de Direito, sobre o tema exposto. Diante de sua incredulidade, provoquei-a escrever academicamente um breve texto sobre a questão ora ventilada. Partimos de uma questão até simples: - Mas benzer alguém pode ser crime? Bem.... pode sim, mas depende...
Para minha grata surpresa (eu ainda me orgulho com a potencialidade de nossos acadêmicos de Direito), o resultado foi o início de uma investigação sobre a tensão entre tipos penais quase sempre esquecidos em alguma aula de Direto Penal - Parte Especial, e uma análise da jurisprudência. Neste caso, o crime em questão é o curandeirismo. Partindo da leitura do Código Penal, entendemos o curandeirismo, previsto no artigo 284, como uma prática de diagnosticar e/ou prescrever, ministrar, aplicar qualquer substância, ou ainda, usar gestos, palavras ou qualquer outro meio. Trata-se de um crime cuja pena é detenção de seis a dois anos. Está lá previsto nos confins do Código Penal nos Crimes contra a Saúde Pública.
Vamos a nossa pesquisa: primeiro: o curandeirismo ganhou status de crime em 1890, no Código Penal da Primeira República. O mesmo Código conhecido pelo desembarque do positivismo metodológico em nosso país e pela relação aproximada com a Medicina – finalmente institucionalizada no Brasil no final do século XIX. Até então, praticar curandeirismo era um hábito nacional. Se torna crime ao confrontar uma nova ordem de conhecimento e de práticas instituídas, a Medicina Social (e aqui ouso a pensar na minha benzedeira...). Segundo: a confusão generalizada entre o curandeirismo, o charlatanismo e o estelionato... uma confusão ainda mais acentuada quando consultamos a jurisprudência sobre o tema. Então vamos lá: o curandeiro diagnostica, prescreve... porém acredita que tal procedimento (ou prática cultural) é válida e preenchida de significado segundo sua crença. O charlatanismo parte do pressuposto que o agente sabe que inculta uma promessa de cura vazia “secreta e infalível”, muitas vezes falsa. E se, o objetivo é ludibriar economicamente o desavisado crente, seria possível tipificar a conduta como estelionato. Lembrando que, em geral, é possível o concurso material em entre os crimes de curandeirismo/charlatanismo e de estelionato.
Daí, infelizmente, observamos que tratamento jurídico penal dado ao curandeiro seja facilmente associado ao estelionatário e que, no fim, podem ser considerados “todos charlatões!” Da benzedeira do bairro, passando pelo pajé dos confins da Amazônia, até o renomado pesquisador que descobriu a pílula do câncer. Delimitar penalmente o curandeirismo é uma sensível e árdua tarefa para o ator jurídico.
O curandeirismo é um típico exemplo da criminalização de práticas que representam identidades culturais diferentes e marginalizadas em relação às culturalmente dominantes. Suas práticas confrontam o saber-poder instituído pela Medicina e abrigados pelo Direito.
Mas, afinal, que mal faz ser “benzido” de vez em quando?
Eis a razão deste texto destacar uma “insidiosa” questão sobre tais processos de criminalização. Insidioso é um adjetivo de nossa língua que, de forma geral, (assumo a responsabilidade pela leitura dos dicionários...) significa enganador, traiçoeiro ou uma “ação” que é aparentemente benigna, mas revela-se grave e perigosa. Insidioso é o meio pelo qual o sistema penal mobiliza recursos legais, policiais e jurídicos para criminalizar identidades culturais diferentes, não dominantes e vulneráveis das constituídas majoritariamente, contribuindo para agravar a criminalização dos sujeitos identificados por ela.
Apesar da previsão constitucional do artigo 215 e do reconhecimento por tratados internacionais de defesa de direitos culturais[4], somos constantemente flagrados manuseando estratégias legais que negam a diferença, culpabilizam o estranho e criminalizam quem faz ou deixa de fazer práticas diferentes consideradas adequadas culturalmente.
Em um país como o Brasil, em que o discurso oficial balizado pela lei preza pela “cordialidade do povo”, pela tolerância sincrética da religião e pela negação dos conflitos raciais, este pequeno texto, por fim, busca tão somente provocar o leitor para perceber os insidiosos caminhos que promovem e sustentam a intolerância. Por isso, ao espantar o quebranto, muito cuidado: o sistema penal também pode pegar quem reza.
Notas e Referências:
[1] YÚDICE, Georg. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte: Editora UFMG. 2004.
[2] HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2014. p. 1.
[3] Este texto é dedicado a minha aluna Valéria Peretti Köpsel, graduanda do 2º semestre do Curso de Direito da Univille.
[4] “O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileira, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional” – Paragrafo 1º., Artigo 215 da Constituição Federal. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 02 jun.2016.
“A proteção e a promoção da diversidade das expressões culturais pressupõem o reconhecimento da igual dignidade e o respeito por todas as culturas, incluindo as das pessoas pertencentes a minorias e as dos povos indígenas.” Artigo 2º. Da Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais. BRASIL. Decreto n. 6.177, de 1o de agosto de 2007. Promulgação da Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, assinada em Paris, em 20 de outubro de 2005. Diário Oficial da União, Brasília. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6177.htm>. Acesso em: 03 jun.2016.
. Luana de Carvalho Silva Gusso é Professora Doutora em Direito do Estado pela UFPR. Com pós doutoramento em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra – Portugal. Professora do Curso de Mestrado em Patrimônio Cultural e Sociedade e do Curso de Direito, Univille – Universidade da Região de Joinville/SC. Advogada..
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