Para entender os inquisidores contemporâneos e suas escrituras sagradas – Por Jader Marques

18/07/2016

Com a promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, o Brasil deu por encerrado, de forma definitiva, o período ditatorial iniciado em 1º de abril de 1964. Com o apelido de Constituição Cidadã, a nova carta política instaura um novo Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias.

Em 1988, portanto, escrevemos nossa carta de princípios para uma nova interpretação (criação) do futuro.[1] A proposta de um estado democrático de direito baseado na proteção dos direitos e garantias individuais abriu espaço para uma nova concepção de persecução penal, com o direito de não ser preso ou processado, senão pela autoridade competente, com o direito de silêncio, com o direito a um advogado, à ampla defesa e ao contraditório, enfim, depois de anos de repressão, de tortura, de prisões ilegais, de homicídios oficiais, o estado brasileiro planificou, por sua Constituição, o desenvolvimento de um processo penal de cunho acusatório, com todos os consectários envolvidos.[2]

Nesse ponto, permito-me fazer um corte, para trazer o questionamento feito por Leonardo Boff no prefácio intitulado “Inquisição: um espírito que continua a existir”, apresentado na tradução feita por Maria José Lopes da Silva (em 1993) para a edição lançada pela Fundação Universidade de Brasília do Manual dos Inquisidores, de Nicolau Eymerich:[3]

“Ao se terminar a leitura do Manual dos Inquisidores, a primeira reação é de perplexidade e de espanto: como é possível tanta desumanidade dentro do cristianismo e em nome do cristianismo? Os sonhos originais da proposta cristã são de ilimitada generosidade: Deus é pai com características de mãe; todos são filhos e filhas de Deus; o Verbo ilumina cada pessoa que vem a este mundo; a redenção resgata toda a humanidade; e o arco-íris da benevolência divina cobre todas as cabeças e o universo inteiro. Como se passa deste sonho para o pesadelo da Inquisição?”

Boff adverte: quem quiser entender o Manual, deverá imbuir-se da mentalidade e da visão das coisas que é própria do discurso totalitário e intolerante produzido e habitado pela Igreja no seio da Inquisição. Só assim, tudo adquire lógica e coerência. Uma vez aceito e compreendido o sistema de ideias que mobiliza os protagonistas daquele movimento, o discurso passa a fluir de forma férrea e coerente. É a chamada verdade intra-sistêmica.

Antes do início da Inquisição, em 1232, com Frederico II, os portadores de pensamento divergente eram punidos apenas com a excomunhão. Quando o cristianismo tornou-se a religião oficial, essa questão (quer era um problema meramente eclesial) passou a ter contornos políticos sérios, ou seja, tornou-se um problema do Império, já que o catolicismo era o principal fator determinante da coesão política. Com isso, os representantes das novas doutrinas que representassem risco ao poder político vigente eram tidos por hereges e passaram a ser perseguidos, excomungados, tiveram seus bens confiscados e foram condenados à morte.

De volta ao começo. Importante compreender essa lógica que confere coerência sistêmica apenas interna ao discurso da inquisição, porque ela é a chave para a percepção de como algumas práticas judiciais contemporâneas, embora ilegais, arbitrárias, inconstitucionais, estão sendo toleradas e admitidas, inclusive, como necessárias, adequadas, razoáveis pelos tribunais e por importantes atores da cena jurídica brasileira.

Vivemos tempos difíceis. Apoiados no sólido argumento do combate à corrupção[4], alguns membros da Polícia, do Ministério Público e do Poder Judiciário estão chancelando a destruição da frágil doutrina de proteção das garantias individuais que foi construída com enormes dificuldades ao longo desses mais de vinte e cinco anos da promulgação da Carta de Outubro, num país que não consegue fazer valer a própria Constituição, academicamente imobilizado e fragilizado, diante de uma cultura manualesca de subserviência da produção jurídico-literária aos julgados dos tribunais, onde o direito é aquilo que dizem os desembargadores e ministros, enfim, há um processo de desmantelamento do pouco que se conseguiu construir em termos de doutrina constitucional de proteção de garantias no Brasil.

Usar, abusivamente, do recurso à prisão preventiva e promover a intimidação das pessoas ligadas ao acusado, também com a ameaça de prisão, tudo como forma de tortura psicológica capaz de forçar o herege a assinar o fatídico termo de confissão e delação premiada. Manter escutas ambientais e telefônicas também sobre pessoas não investigadas, pessoas com foro privilegiado e, inclusive, advogados, permitindo, posteriormente, o vazamento seletivo de áudios para divulgação massiva pela imprensa, como forma de angariar o reconhecimento da sociedade em relação ao trabalho investigativo e como modo de fazer recair toda a censura possível sobre os investigados. Conduzir coercitivamente investigados ou pessoas a eles ligadas para prestarem depoimento, mesmo que se não tenham negado a comparecer, tudo acontecendo de forma espetacular(izada), depois de meses de organização, como forma de dificultar ao máximo a possibilidade do exercício do direito de defesa.

Em todos esses casos, vale questionar quais são as chances de um advogado orientar adequadamente seu cliente e deste exercer o seu direito de defesa ao contraditório de forma minimamente satisfatória? Depois de meses de prisão ilegal (decretada ao arrepio dos requisitos legais), como pode um advogado orientar o acusado a não dizer o que lhe pedem as autoridades? Diante da ameaça de prisão contra familiares, como orientar o acusado a silenciar para defender-se em melhores condições no curso da ação penal? Acordado às seis horas da manhã por policiais federais com mandado de condução coercitiva, nova modalidade de prisão, como pode o advogado orientar seu cliente a depor, quando ninguém tem conhecimento do teor da investigação?

A lógica da necessidade de combater a corrupção faz com que as garantias sejam consideradas anacronismos da legislação processual penal brasileira, a serem deixadas de lado ou imediatamente reformadas, em nome da limpeza, da assepsia, da faxina indispensável à moralização das relações entre os setores público e privado. Os propósitos, portanto, são os melhores possíveis. Porém, o fato de o inquisidor medieval ou o torturador militar latino-americano ou o guarda do campo de concentração na Alemanha Nazista estarem todos motivados nas melhores das intenções, segundo sua lógica, não torna suas ações boas, porque violam a noção mais comezinha de preservação da dignidade da pessoa humana. Todo o sistema sacrificialista, apoiado na necessidade de produção contínua de mais vítimas para manutenção do status vigente, só pode servir de justificativa para quem professa, internamente, a mesma ideologia.

Nesta minha reflexão de estreia aqui no Empório do Direito, voltando a Boff, permito-me apenas deixar no ar a pergunta: como passamos do sonho da defesa das garantias diante da nova Constituição Cidadã para esse pesadelo de retorno à inquisição, em tempos de guerra à corrupção? Como?


Notas e Referências:

[1] Por todos: FERRAJOLI, Luigi; STRECK, Lenio Luiz; TRINDADE, André Karam. Garantismo, (neo)constitucionalismo e hermenêutica: diálogos com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

[2] LOPES JR., Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 2. ed.. São Paulo: Saraiva,

2016.

[3] EYMERICH, Nicolau. Directorium Inquisitorum: Manual dos Inquisidores: Escrito por Nicolau Eymerich em 1376, revisto e ampliado por Francisco de La Peña em 1578. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, Brasilia: Fundação Universidade de Brasília, 1993.

[4] Sobre o assunto, Alexandre Morais da Rosa: http://emporiododireito.com.br/para-entender-a-logica-do-juiz-moro-na-lava-jato-por-alexandre-morais-da-rosa-2/


 

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