Por Nycia Nadine Negrão Nassif - 23/07/2015
Quando escuto certas expressões que me remetem a coisas “envelhecidas”, “fora de moda”, “cheirando a mofo” ou a naftalina, lembro de imediato de um antigo e enorme baú que fez parte da minha infância. Dele saíam coisas incríveis, fantasias, roupas de festas, colares, chapéus, lenços e milhares de outras coisas guardadas pela minha mãe durante anos e que nas mãos de três crianças, eu e meus irmãos, transformavam-se em personagens diversos, reais e imaginários, do bem e do mal, bonitos e feios, animais e pessoas, homens e mulheres, adultos e crianças.
Experiências jamais esquecidas, vividas intensamente que me ajudaram a ser o que sou. Na visão maniqueísta de uma criança, percebia o mundo dividido entre o bem e o mal, onde o bem sempre vencia, onde as pessoas no fim das histórias viviam felizes para sempre. Assim, pude ser Chapeuzinho vermelho, fada, bruxa, a Bela adormecida, o Lobo mau, um dos três porquinhos, Branca de neve, Pinóquio, entre tantos outros.
Pois bem, como toda história que se preze, começarei a minha assim: “Era uma vez”... Num grupo de pessoas que trabalham direta ou indiretamente com segurança pública, reunidos para discutir Direitos Humanos surge do fundo do baú a seguinte frase: “Direitos humanos é só para proteger bandidos”. Ou, em outras versões como: “e os direitos humanos da vítima?”, “os direitos humanos da família da vítima”? “Direitos humanos, são para humanos direitos”. Pimpirilimpimpim... será mais de uma de minhas histórias infantis? Serão personagens fictícios ou reais? Fecho os olhos momentaneamente, torcendo para que seja mais de uma das nossas interpretações de fundo de quintal, que ao abrir os olhos tudo se torne real! Aiaiaiaiai!! Agora me embananei de vez...será mesmo melhor torcer para ser real? A realidade às vezes dói e nesse caso dói sempre.
Adulta, tive a oportunidade de escolher uma profissão que pudesse ver o outro como igual e que ao vê-lo como igual, oportunizo a ele me ver também como igual, ainda que muitos a minha volta insistam que eles são diferentes. Onde está a diferença?
Hoje não sou mais Chapeuzinho vermelho e Lobo mau nem pensar! Não quero mais brincar disso. Muito chato ser vítima o tempo todo, fragilzinha correndo por uma floresta, fugindo de um lobo muito louco que a todo custo e sem motivo quer me pegar, engolindo até a pobre da vovozinha que não tem nada a ver com isso. Lobo mau também cansa, já pensou ficar correndo atrás de uma guriazinha, que veste uma antiquada capa vermelha? A não ser que ele seja gremista e a persiga por ser colorada, caso contrário, qual seria o motivo? Fome não era, engoliu a vovó de uma vez só.
Cá com meus botões, penso que a bandeira dos Direitos Humanos não deveria ser motivo de ressentimento ou revolta e sim o motivo pelo qual, o profissional de segurança pública deveria exercer a sua função de proteção da sociedade. Se os Direitos são humanos, não são para todos? Seja ele quem for, a qual família pertença, de que cor seja sua pele, sua opção sexual, profissão ou religião, rica ou pobre, vítima ou réu.
Garantias fundamentais não são benefícios, são direitos. O Brasil é um Estado democrático de direito. Não vivemos em “Gotham City”, Coringa e o Charada não são nossos inimigos e nossa polícia não tem nenhum parentesco com Batman, que por sinal, não sabe nada de Direito humanos. Será que a SENASP não pensou em organizar uma Jornada formativa de Direitos Humanos por lá?
Temos conhecimento que o profissional da área de segurança pública possui informações sobre Direitos Humanos, que sabe o que é um Estado democrático de direitos, mas que, no entanto, muitos ainda não percebem como esse discurso pode e deve ser integrado, articulado com sua prática. Faz-se necessário um outro olhar, para uma visão vesga e embaçada. Talvez isso aconteça por não se dar conta do caráter educativo e pedagógico de sua atuação profissional para a construção de uma sociedade democrática e justa. E isso, faz com que seja necessário buscar a construção de ações que venham transformar a cultura da repressão, tão arraigada na sociedade e no meio policial, repensar a formação, os treinamentos e as técnicas de emprego da força policial, visando à valorização do profissional em segurança pública para que ele se perceba também como sujeito de direito e de proteção.
Nem Batman e Coringa...nem Chapeuzinho vermelho e Lobo mau...deixemos todos guardados dentro do baú. Passamos da idade de fantasiar, caíamos na real, acreditemos que mundo ideal não existe, mas que um mundo melhor é possível e que nós, profissionais de segurança pública possamos nos orgulhar de fazer parte desta construção de maneira honrada, digna e reconhecida pela sociedade em que vivemos.
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Nycia Nadine Negrão Nassif é Psicóloga/TSP da SUSEPE/RS desde de 2005, atualmente Diretora do Patronato Lima Drummond (Casa prisional Semiaberto e Aberto).
.Imagem Ilustrativa do Post: Dragon*Con 2013: JLA vs Avengers Shoot // Foto de: Pat Loika // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/patloika/9673723799/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode
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