Para além das penas: subjetividade em foco!

28/03/2016

Por Andreu Luz - 28/03/2016

Pobre se vai, sem muita direção, o corpo perturbado do homem solitário e descontente. Carregava em si um perfil mais que andrógeno, era aquele que buscava montar-se dentro de si e acabou por perder-se dentro da amplitude que se transformara. O corpo, o homem, agora a mulher, sem precedentes, sem ressentimentos, sem dolorosas paixões.

“Tá lá o corpo estendido no chão...”. De frente para o crime, cuja referência encontra-se na composição de João Bosco, os acordes dos anjos, arautos da anunciação, informa outra situação, isto é, a cena não é mais composta do corpo estendido no chão, mas sim do corpo dependurado na forca. Em linhas iniciais pode-se concluir: o preço da condenação do considerado infrator, recai, durante muitos anos, sobre o corpo da pessoa do condenado. Desta forma, associando-se às sábias lições de David Le Breton, podemos concluir que “o corpo também é escravizado de qualquer valor” (Le Breton 1990).

Portanto, aduzem de suma importância as informações introdutórias sobre a concepção criminal de punição pelas infrações cometidas. Impera na nossa legislação, bem como nas doutrinas e jurisprudências pátrias, a certeza de que a pena não recairá além da pessoa do condenado, bem como que não se é mais permitido às penas capitais, isto é, aquelas penas alheias às privativas de liberdade, ou melhor, as que vão além da punição substancial (privação de liberdade e pena de multa).

Destaca-se que, no caso apresentado em tela, as medidas socioeducativas não devem ser vistas como pena, haja vista a sua estrutura social e orgânica de políticas criminais. Nesta esteira teórica, perfaz de interesse pertinente, as reflexões do período da história cuja pena aplicada ao homem era aquela que recaia sobre o corpo. A maximização do corpo como propriedade a ser violada pelo homem sustentou-se durante muito tempo, ou seja, o sistema punitivo consagrado no período medieval cujas penas corporais eram aplicadas em face do descumprimento de normas e padrões positivados na sociedade européia e, consequentemente nos demais continentes, perdurou durante décadas e séculos.

Entretanto, sem nenhuma ressalva a este ponto, dentro de uma análise racional dos fatos, bem como da manutenção da vida em sociedade, hilário seria a corrente que pregasse a existência de uma sociedade que já tivesse extirpado dos seus costumes as penas capitais.

Sob a égide de um viés mais materialista (corporal) a pena recai para além das barreiras “substanciais” da infração. Vão além, permanecem recaindo sobre o corpo de milhares de homens e mulheres, negros, pobres, travestis, enfim, de todos aqueles que compreendem a parcela “monstruosa” da sociedade. Assevera Foucault,

O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos. Se a justiça ainda tiver que manipular e tocar o corpo dos justiçáveis, tal se fará à distância, propriamente, segundo regras rígidas e visando a um objetivo bem mais “elevado”. Por efeito dessa nova retenção, um exército inteiro de técnicos veio substituir o carrasco, anatomista imediato do sofrimento: os guardas, os médicos, os capelães, os psiquiatras, os psicólogos, os educadores; por sua simples presença ao lado do condenado, eles cantam à justiça o louvor de que ela precisa: eles lhe garantem que o corpo e a dor não são os objetos últimos de sua ação punitiva.[1]

Partindo desta reflexão faz-se surgir duas correntes racionais de concepção da pena, quais sejam: as penas corporais subjetivas próprias e as penas corporais subjetivas impróprias.

No tocante às penas corporais subjetivas impróprias, encontra-se a meditação plausível das constantes penas aplicadas pelo Estado, de forma arbitrária, por meio dos seus agentes (poder judiciário, executivo e legislativo), que, quando do exercício da função pública, penaliza o sujeito, implicando-lhe a ruptura corporal, ou, como na maioria das vezes, a perda da vida por meios e ações fundadas única e exclusivamente no ser: dois amigos de cor de pele negra vindo de uma tarde de sol em uma praia da capital baiana são abordados por dois policiais e surpreendidos com execução (cruel) de uma pena capital (arbitrária) a eles imposta pelo motivo do “ser” negro.

O corpo da Travesti que, após incisiva manifestação de liberdade, acaba por sofrer agressões contrárias à sua dignidade sexual e, consequentemente, levada à morte pelas razões do “ser” travesti.

Ser negro. Ser mulher. Ser gay. Ser travesti. Em Salvador, nos indos mais contemporâneos, data-se do ano de 2015, uma Chacina no bairro do Cabula onde morreram dez homens (negros, pobres, periféricos), mediante execução sumária e sem precedentes, pela razão do “ser”.

Destaca-se também a Chacina da Candelária (noite de 23 de julho de 1993), próximo à igreja da Candelária na cidade do Rio de Janeiro, fazendo como vitimas pessoas entre 11 e 19 anos.

Não há que se falar dos constantes casos de violência contra a mulher, como a própria Maria da Penha, Estamira, Maria da Silva, Conceição dos Santos, dentre outras, cuja noite ofusca (ainda mais) os semblantes de sofrimento.

Por sua vez, as penas subjetivas próprias, são aquelas levadas às barras do Judiciário, por meio do exercício da jurisdição e a submissão a um “Devido Processo Legal”, cuja execução se dar de forma desumana nas penitenciárias do nosso Estado.

Castigar é o mais intenso sentimento de alegria do homem. Em sua origem o homem sente-se completo e prazeroso quando castiga, com penas cruéis, o outro. Nietzsche nos contempla:

Durante o mais largo período da história humana, não se castigou porque se responsabilizava o delinqüente por seu ato, ou seja, não pelo pressuposto de que apenas o culpado devia ser castigado - e sim como ainda hoje os pais castigam seus filhos, por raiva devida a um dano sofrido, raiva que se desafoga em quem o causou; mas mantida em certos limites, e modificada pela idéia de que qualquer dano encontra seu equivalente e pode ser realmente compensa do, mesmo que seja com a dor do seu causador. De onde retira sua força esta idéia antiqüíssima, profundamente arraigada, agora talvez inerradicável, a idéia da equivalência entre dano e dor? Já revelei: na relação contratual entre credor e devedor, que é tão velha quanto à existência de "pessoas jurídicas", e que por sua vez remete às formas básicas de compra, venda comércio, troca e tráfico[2].

Neste mesmo sentido salienta Foucault:

O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos. Se a justiça ainda tiver que manipular e tocar o corpo dos justiçáveis, tal se fará à distância, propriamente, segundo regras rígidas e visando a um objetivo bem mais “elevado”. Por efeito dessa nova retenção, um exército inteiro de técnicos veio substituir o carrasco, anatomista imediato do sofrimento: os guardas, os médicos, os capelães, os psiquiatras, os psicólogos, os educadores; por sua simples presença ao lado do condenado, eles cantam à justiça o louvor de que ela precisa: eles lhe garantem que o corpo e a dor não são os objetos últimos de sua ação punitiva.[3]

O homem retorna à selvageria no momento que impõe uma sanção em face do inadimplemento do contrato social pactuado, ou seja, a crueldade está evidente no momento da censura do descumprimento do pacto, logo, chega-se à conclusão que o homem selvagem jaz existir mesmo com o aparecimento do contrato social.

Congregada à crueldade está o prazer em exercê-la, em outros termos, encontra-se no homem o prazer e a satisfação em promover o sofrimento do autor do dano (infrator) como meio de exultação dos direitos da vítima, face o crédito existente entre o Estado e o Cidadão.

Destarte, no auge da pós modernidade, que nos dizeres de Bauman consagra a fluidez das instituições, pode-se ultimar: lutemos para além das penas humanas. Lutemos por um processo penal digno. Lutemos pela extirpação das penas capitais subjetivas impróprias. Pena do corpo. Pena da alma. Não há humanidade nas penas aplicadas no nosso sistema judiciário.


Notas e Referências:  

[1] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: a origem da prisão. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

[2] NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. Tradução de Antônio Carlos Braga. 3ª. ed. São Paulo: Editora Escala, 2009.

[3] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: a origem da prisão. São Paulo: Edições Loyola, 2002.                               

BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2. d. revista e ampliada. São Paulo: Celso Ribeiro Bastos Editor, 1999.

BAUMAN, Zygmunt. Legisladores e Interpretes: Sobre Modernidade, Pós Modernidade e Intelectuais. Tradução de Renato Aguiar 1ª. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

BARROSO, LUIS ROBERTO. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 3. São Paulo: Saraiva,2001.

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COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação Constitucional. Rio Grande do Sul: Sergio Antonio Fabris, 1997.

ECO, Umberto. Obra Aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2012.

FOUCAULT, Michel. A ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: a origem da prisão. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. Tradução de Antônio Carlos Braga. 3ª. ed. São Paulo: Editora Escala, 2009.

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. Trad. PauloCésar de Souza. São Paulo. Companhia das Letras.1998.

SCHOPENHAUER, Arthur. Dores do Mundo. Rio de Janeiro: EDIPRO, 2013.


Andreu Sacramento Luz. Andreu Sacramento Luz  é Bacharelando em Direito pela Faculdade Ruy Barbosa. Pesquisador. Membro do Grupo de Pesquisa: Fractais Transdisciplinares do Direito. Monitor das disciplinas de Direito Civil Parte Geral e Direito Civil Obrigações da Faculdade Ruy Barbosa. E-mail: andreuluz.adv@gmail.com. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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