“Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem-número de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da “história universal”: mas também foi somente um minuto. Passados pouco fôlegos da natureza congelou-se o astro, e os animais inteligentes tiveram de morrer.”
(Nietzsche)[i]
A pandemia do coronavírus coloca no centro de debate a relação entre economia e vida. Inicialmente, trata-se de reconhecer por via negativa que economia e vida não se apresentam como dimensões dissociadas. Não se apresentam como instâncias independentes, incomunicáveis. Mas, trata-se de reconhecer por via positiva que economia e vida formam uma totalidade a partir da qual se apresentam as potencialidades, os paradoxos e os limites da ação humana na conformação do mundo.
Sob tais pressupostos, discursos e análises estatísticas que apontam para o excesso de zelo com os cuidados em torno da vida e, as consequentes perdas, ou mesmo ganhos econômicos acarretados por tais decisões governamentais e sociais são a expressão de uma visão de economia como um fim em si mesmo. Talvez até se possa afirmar que se apresentam como expressão de uma racionalidade econométrica instrumental, assentada sob perspectivas humanas e sociais que flertam com variáveis totalitárias, senão com tendência a práticas características do ideário fascista.
A etimologia da palavra economia remonta ao grego antigo “oikonomia”. Vocábulo composto: “oikos” = casa + “nomia” = leis, normas, regras, costumes, tradições. Ou seja, em suas origens etimológicas (oikonomia), a economia relaciona-se ao cuidado com a casa, a condução das relações de trabalho e produção entre as pessoas que habitam a casa em função da sobrevivência, da manutenção e até de reprodução da vida. A economia está a serviço da vida. Há uma economia da vida implicada em sua manutenção e reprodução. A vida demanda uma economia.
Mas, se no mundo antigo a (oikonomia) economia estava condicionada ao espaço das sombras, às relações de produção vinculadas à manutenção da casa e, por decorrência à vida, na modernidade a economia foi colocada no centro da praça pública. Foi elevada à condição de ciência capaz de interpretar e correlacionar os desejos, as vontades e as decisões humanas geradoras de demandas com os potenciais naturais e humanos de promover a oferta. Ou seja, a economia articula três variáveis analíticas na constituição de seu pretenso campo científico. É detentora de inventários de recursos naturais e humanos constantes, ou variáveis (intempéries) presentes num determinado território e, que demarcam sua capacidade produtiva. Articula especulativamente cenários geográficos, climáticos, demográficos e calcula o comportamento humano individual ou social, bem como sua capacidade de consumo diante da abundância ou da escassez de recursos. Promove processos de subjetivação de indivíduos e sociedades conformando comportamentos necessários a manutenção e desenvolvimento de certa dinâmica de produção, consumo e acumulação de capital.
Note-se que não há dicotomia entre economia e vida. Uma forma de vida[ii] enseja uma dinâmica econômica. Uma dinâmica econômica revela uma concepção de vida. Assim, uma análise do capitalismo que o toma como um sistema em si mesmo apresenta-se reduzido em sua condição de compressão e de ação. Eleva-o à condição de transcendência. Trata-se do discurso sobre o “Sistema”. Assim, compreender aspectos da economia (forma de vida) capitalista é reconhecer os dispositivos constitutivos do “Sistema” essa entidade transcendente, porém difusa. Assim, compreender a dimensão imanente do capitalismo permite reconhecer sua condição onipresente e onisciente sem recorrer a discursos metafísicos.
A pandemia do coronavírus incide sobre a dinâmica da vida e, portanto da economia global. Afirmam os economistas que os impactos econômicos globais remontam, senão ultrapassam os efeitos deletérios da “grande depressão” de 1929, nas primeiras décadas do século XX. Mas, afinal de que economia estamos falando? O que caracteriza a economia global e, que forma de vida ela enseja, produz e consome em sua manutenção? O desafio é reconhecer as variáveis globais da forma de vida capitalista, bem como especificidades regionais, nacionais e locais.
Desprovidos da pretensão de expressão de uma visão de totalidade é possível afirmar que o capitalismo em sua dimensão global, mas também local e individual, assenta-se na promoção diuturna do desejo de superação de limites e inconsistências individuais como garantia de alcance da felicidade, conformando uma forma de vida padronizada no consumo de objetos e mercadorias que suprem momentaneamente frustrações diante dos limites acesso a forma de vida ansiosamente desejada. Procura-se dissipar o mal-estar advindo de tal condição comprimindo o espaço e acelerando o tempo das relações humanas, do mundo humano num ininterrupto movimento de plena produção e de pleno consumo. Esta onipotência produtivista e consumista assenta-se sobre a diuturna e ininterrupta dinâmica de obtenção de créditos a serem consumidos pelos débitos contraídos sistematicamente. É sob estas condições vitais que se organiza a divisão internacional do trabalho e da produção de bens duráveis, de bens de consumo, de prestação de serviços.
Assim, determinadas regiões do planeta abrigam os centros de desenvolvimento científico e tecnológico. Atividades limpas. Desenvolvem e detém patentes tecnológicas que lhes permitem definir o valor da remuneração por meio da cobrança de royalties. Outras regiões abrigam parques industriais de produção em massa de produtos a baixos custos viabilizados a partir da exploração sistemática da mão-de-obra de seus trabalhadores, bem como de agressões sistemáticas ao meio ambiente. Outras regiões e, aqui encontramos o Brasil e, alguns tantos países latino-americanos são fornecedores de commodities a baixos custos no mercado internacional, bem como consumidores de tecnologias e produtos importados. E, há ainda regiões que na divisão internacional do trabalho e da produção são transformados em depósitos de lixo do mundo.
Estamos diante de uma economia que divide, senão subdivide o mundo entre países centrais e países periféricos. Neste contexto, presenciamos um paradoxo econômico imoral que se expressa na capacidade extraordinária de produção de bens e produtos e, por outro lado, no avanço da miséria, da fome, da violência das guerras civis, dos refugiados, dos despoluídos da terra, ou na perspectiva de Franz Fanon dos condenados da terra[iii]. A concentração da riqueza socialmente produzida na forma de fundos de investimentos, de fortunas pessoais e familiares globalmente é escandalosa.
A totalidade desta forma de vida, deste sistema mundo que denominamos como capitalismo é financiado majoritariamente pelo capital especulativo. A novidade do modo de produção e consumo da vida no contexto da globalização foi ter desmaterializado a riqueza produzida pelo trabalho humano, transformando-a em crédito. É a imaterialidade do crédito em seu frenético movimento global de acumulação (outrora era o capital produtivo, a fábrica que consumia o corpo e a vida do trabalhador a partir de processos de exploração e expropriação da mão-de-obra) que abandona o trabalho e o trabalhador a sua própria sorte. O crédito livre de fronteiras, de territórios e, desprovido das amarras com o trabalho se auto-produz. Especulação financeira. Promoção cotidiana de endividamento de indivíduos e de Estados. Produção de débito, condição sine que non para a concentração de crédito.
Neste contexto, há uma fratura entre política e poder. O poder financeiro global se sobrepõe ao poder político dos Estados, das nações, de povos e das comunidades. Paradoxalmente os mesmos Estados, que se encontram endividados com os fundos de capital especulativo, garantem as regras, os contratos e a forma de sua reprodução especulativa. Transformaram-se em agências garantidoras de contratos com economia financeira global. Estima-se que o estoque de capital (crédito) especulativo global ultrapassa a cifra de U$ 800.000.000.000,00 (oitocentos trilhões de dólares), ao passo que o PIB[iv] dos 200 países somados alcança a cifra de U$ 500.000.000.000,00 (quinhentos trilhões de dólares)[v]. Talvez, sob tais pressupostos talvez se possa compreender a ausência de projetos de desenvolvimento nacional, bem como as exigências de reformas econômicas, de ajuste fiscal, de congelamento dos investimentos em custeio e financiamento de serviços públicos como saúde e educação[vi] em países subalternos, subdesenvolvidos na dinâmica do capital global.
Talvez tal condição também nos permita compreender a ascensão de governos de ultra-direita com tonalidades fascistas e totalitárias em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil. Governos marcados pela ausência de propostas de políticas públicas, de fomento de um projeto de desenvolvimento em que a economia esteja assentada na potencialidade das formas-de-vida[vii] em suas singularidades locais e regionais. Porém, esses mesmos governos apresentam-se comprometidos com a conformação de Estados mínimos em âmbito social, e por reverso com um Estado máximo em suas estruturas coercitivas e punitivas em relação aos movimentos sociais, em relação a reivindicação de direitos individuais, civis e sociais. Enfim, governos comprometidos com a segurança da agenda especulativa dos grupos econômicos que os elegeram.
Assim, a pandemia do coronavírus não coloca em crise a economia global, apenas explicita seus paradoxos, suas distorções, suas violências, suas estratégias biopolíticas e necropolíticas perpetradas pelo capital financeiro global, pelos estados centrais sobre estados, países e povos periféricos. Evidencia a violência de Estado conduzido por governos que agem em permanente estado de exceção na manutenção de um modo de vida econômico autofágico, antropofágico. O capitalismo, esta forma de vida que se apresenta como uma religião, com seus dogmas inquestionáveis, exige cotidianamente que indivíduos e sociedades ofereçam suas vidas em sacrifício para manutenção da dinâmica do crédito e do débito. O capitalismo está nu!
Ou dito de outra forma, a pandemia do coronavírus é apenas mais uma oportunidade para o questionamento desta religião tirânica que consome cotidianamente a vida e que nomeamos de capitalismo. Evidentemente não será uma pandemia que irá destituir esta forma diuturna de produção e de consumo, assim como não foi suficiente a crise especulativa do mercado imobiliário de 2007/2008. No entanto, exigiu que o sistema fosse recomposto por meio de vultosas somas de dinheiro público. Mas, a pandemia pode contribuir para o avanço da compreensão de que este modelo econômico imputa custos excessivos à vida em sua totalidade. Ou ainda, dito de outro modo, se a crise especulativa de 2007/2008 não permitiu que se questionassem as fraturas e contradições humanas, sociais e ambientais do sistema, a pandemia se apresenta como oportunidade intransferível de questionamento.
Ou seja, a crítica à economia da forma-de-vida capitalista não se apresenta como sinalização, ou adesão tácita a outras formas de organização econômica. Prezado leitor, não seja ideologicamente rasteiro. Mas, permita-se o esforço intransferível de reconhecimento que resulta desta onipotência produtiva o consumo desenfreado do mundo. Evidentemente que não se trata de desconsiderar avanços científicos, tecnológicos, medicinais, entre outros promovidos por este modo de vida. Mas, de reconhecer seus excessos, seus efeitos colaterais, deletérios presentes na produção de montanhas de lixo, de disseminação de poluição generalizada, de miséria, de fome, de produção em massa e de incineração de cadáveres e, sobretudo, o comprometimento de continuidade da vida de bilhões de seres humanos espalhados pelo mundo afora.
“É a economia, estúpido!”[viii] É vida que para ser vivida dignamente necessita conformar-se numa forma-de-vida, numa economia da vida. Ou seja, se trata de reconhecer que outras formas de organizar, produzir e manter a vida são possíveis.
Notas e Referências
[i] NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-moral (1873). Tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultura, 1999 (Coleção os pensadores), p. 51.
[ii] “Forma de vida“ Trata-se de expressão que designa uma vida que foi separada de sua forma, é uma vida que está destituída de seu modo de viver a potência de sua singularidade. É uma vida capturada, disciplinada, controlada e vigiada pela miríade de dispositivos constitutivos da cosmovisão produtiva e de consumo em curso.
[iii] FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Tradução: José Laurênio de Melo. Rio de Janeiro, 1968.
[iv] Produto Interno Bruto é um indicador econômico que mede monetariamente toda a produção de país no exercício de 12 meses (um não) país ao longo de ano, portando dinheiro público.
[v] Para maiores aprofundamentos: DOWBOM, Ladislau. A ERA DO CAPITAL IMPRODUTIVO: Porque oito famílias tem mais riqueza do que a metade da população do mundo? São Paulo: Autonomia Literária, 2017.
[vi] EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 55, DE 20 DE SETEMBRO DE 2007 - http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc55.htm
[vii] “Uma vida, que não pode ser separada de sua forma, é uma vida para a qual, no seu modo de viver, está em jogo o próprio viver e, no seu viver, está em jogo antes de tudo o seu modo de viver (...) a vida humana – em que os modos singulares, atos e processos do viver nunca são simplesmente fatos, mas sempre e primeiramente possibilidades de vida, sempre e primeiramente potência.” AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim: notas sobre a política. Tradução Davi Pessoa Carneiro. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. Pp. 13/14.
[viii] Em 1991, o presidente dos Estados Unidos, George Bush, venceu a Guerra do Golfo e resgatou a autoestima dos americanos após a dolorosa derrota no Vietnã. Assim, era o favorito absoluto nas eleições de 1992 ao enfrentar o desconhecido governador de Arkansas, Bill Clinton. O marqueteiro de Clinton, James Carville, apostou que Bush não era invencível com o país em recessão e cunhou a frase que virou case de marketing eleitoral: “É a economia, estúpido!” Disponível em - https://www.institutomillenium.org.br/economia-estpido/
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