Pandemia, aumento do consumo de pornografia e a objetificação das transidentidades

16/10/2020

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

Em março deste ano, quando começamos o isolamento social, a maior plataforma de filmes adultos anunciou a liberação, por um mês, do acesso premium gratuitamente às suas usuárias e usuários, como forma de estimular que as pessoas ficassem em casa. De lá para cá, a plataforma constatou o aumento em 39,2% no consumo de seus vídeos no Brasil[i]. Essa crescente foi percebida também por um canal de televisão paga, que identificou 31% a mais de visualizações, e pela mais conhecida produtora do gênero no Brasil, que viu seus acessos crescerem em 50% [ii].

De um lado, percebemos que o consumo de pornografia tem se colocado como uma alternativa para a manutenção da atividade sexual de pessoas em quarentena. De outro, é preciso questionar: que pornografia é essa que estamos assistindo? Qual é o impacto da indústria na produção de subjetividades? Que efeitos este aumento no consumo de filmes pornográficos, durante o isolamento social, pode produzir?

Já não é novidade que reflexões sobre o impacto da pornografia, especialmente sobre corpos e vidas de mulheres, vêm sendo propostas por setores dos movimentos feministas, pela academia e pelas próprias produtoras e usuárias do conteúdo. Encontramos, nesses debates, pessoas que defendem a proibição de filmes adultos por estereotiparem mulheres, as tratarem com violência, e, assim, produzirem efeitos sobre como são e como devem ser as práticas sexuais e as próprias feminilidades[iii][iv]. Há, ainda, quem entenda que a proibição não é a melhor saída[v][vi], que há, nas práticas eróticas, potência de transgressão às dinâmicas de gênero [vii][viii], que a pornografia não produz automaticamente o que é ser mulher – pelo contrário, produz uma alegoria e que, como tal, é irrealizável[ix] – e que é possível fazer pornografia sem objetificar as mulheres. O pornô feminista[x] e o pós-pornô[xi][xii] surgem nesse movimento, disputando os discursos sobre desejo e práticas sexuais e propondo estéticas, performances e narrativas outras para as produções eróticas e pornográficas, priorizando o prazer também das mulheres e tornando-as protagonistas dos seus desejos, e não meros objetos.

Mas de quais mulheres estamos falando quando refletimos sobre os impactos do consumo de pornografia? São apenas as mulheres cisgêneras, cuja identidade de gênero se conforma ao sexo biológico[xiii], ou também estamos nos preocupando com as mulheres trans e travestis, ainda mais violentadas e estereotipadas (não só) nas produções pornográficas?

No ano passado, segundo os dados sobre consumo de pornografia produzidos pela plataforma Pornhub, na comparação com outros países, brasileiros e brasileiras veem 98% a mais de pornografia transgênera[xiv]. “Transgênero” é a categoria guarda-chuva utilizada, especialmente na língua inglesa (transgender) para designar todas aquelas pessoas que não se identificam com o gênero que lhes foi atribuído no nascimento, como é o caso das travestis e trans. Apesar de não ser o termo usado pelos movimentos sociais brasileiros, por gerar o apagamento das especificidades de cada uma das identidades, o compreendemos e podemos traduzi-lo para a nossa realidade. Somos, então, os líderes mundiais de consumo de pornô envolvendo travestis e trans. Este dado vem sendo constatado desde 2016 por diversas plataformas de vídeos adultos[xv].

Ao mesmo tempo em que a procura por vídeos pornográficos envolvendo essas sujeitas é alta no Brasil, somos, há uma década, o país que mais as mata. Para se ter uma ideia, a expectativa de vida de travestis e trans é de apenas 35 anos de idade no Brasil, enquanto que a da população brasileira, em geral, é de 74,9 anos. A maioria dos assassinatos de pessoas trans e travestis se dá nas ruas e está ligada aos cenários de prostituição, atividade desempenhada por grande parte dessa população, em razão dos processos de exclusão escolar, que dificultam a sua inserção no mercado formal de trabalho[xvi].

 Mas o que estes dados, vistos juntos, querem nos dizer? Me parece que eles demonstram como há, em nossa sociedade, um lugar bem delimitado de onde essas existências são permitidas e de que forma são aceitas. Quando as travestis e as mulheres trans estão nas telas de smartfones, televisões, computadores e tablets, servindo como objetos de desejo, curiosidade e fascinação, ocupam um espaço seguro, delimitado para as fantasias. É como se travestis e trans fossem reduzidas à sexualidade pelos olhares objetificantes de nossa sociedade. Como se seus corpos fossem desprovidos de racionalidade e fossem dotados apenas de instinto, de sexo e de impulso, num movimento que lhes transforma num padrão de negatividade e de não humanidade, servindo apenas para satisfazer os desejos mais secretos de pessoas que fetichizam seus corpos, mas matam suas existências.

Há todo um interesse e um desejo por estes corpos que extrapolam a cis-heteronorma, ou seja a ideia de que o normal é ser heterossexual e cisgênero, e, ao mesmo tempo, há toda uma necessidade de mantê-los ali, neste lugar delimitado do que se construiu como possível para o “outro”, para o “anormal”, para o “monstruoso”, para o “não humano”. Como diz a transativista Yolanda Arceno[xvii], “Tudo sobre nós ronda em volta da noção de que nossos corpos existem para sexo. Isso tanto é verdade que somos vistas como obscenas quando estamos em público.” Ao saírem deste lugar da hiperssexualização e da fetichização, travestis e pessoas trans rompem a barreira do eu e do outro, do normal e do anormal, do humano e do não humano e bagunçam os limites que as normas de gênero e de sexualidade construíram para elas.

Quando elas saem dos filmes pornôs e ocupam as ruas, as escolas, as universidades, os postos de trabalho, os cargos políticos, o prazer dá lugar ao horror. Horror de ser igual a elas, horror do apagamento das fronteiras do normal e do anormal, do eu e do outro. Horror de perceber que as normas de gênero e de sexualidade são instáveis e que podem ser vivenciadas de formas diversas. Horror de bagunçar as certezas sobre o que é ser homem e o que é ser mulher e de, então, não saber mais o que se é. Horror de romper com os binarismos que organizam a sociedade e permitem ocupar a face “normal” da mesma moeda que constitui essas sujeitas como abjetas. Horror de se tornar também abjeto. Horror de ter desejo por elas e de admirar sua liberdade em constituir suas existências apesar dos padrões socialmente vigentes. Horror que produz violência, que faz morte, que elimina o que não se quer ver e o que (não) se quer ser. Horror que não é produzido pelo pornô, mas quando se escapa dele. Apenas horror.

 

Notas e Referências

[i] PORNHUB. Coronavirus update – May 26. 26 mai. 2020. Disponível em: https://www.pornhub.com/insights/coronavirus-update-may-26. Acesso em 27 set. 2020.

[ii] FOLHA DE SÃO PAULO. Sites e canais pornôs têm aumento de até 50% no consumo de seu produtos durante quarentena. 25 mar. 2020. Disponível em: https://f5.folha.uol.com.br/televisao/2020/03/sites-e-canais-de-filme-porno-registram-grande-aumento-de-visitantes-durante-quarentena.shtml. Acesso em 27 set. 2020.

[iii] MACKINNON, Catharine. Only Words. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1993.

[iv] DWORKIN, Andrea. Pornography: Men Possessing Women, G. P. Putnams Sons, EUA, 1981.

[v] GREGORI, Maria Filomena. Relações de violência e erotismo. Cadernos Pagu, n. 20, p. 87-120, 2000.

[vi] RUBIN, Gayle. Thinking Sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality. In: VANCE, Carole (ed). Pleasure and Danger: Exploring female sexuality. New York Routledge, 1984.

[vii] VANCE, Carole. Pleasure and danger: toward a politcs of sexuality. In: Vance, Carole. (ed.). Pleasure and Danger: exploring female sexuality. New York Routledge, 1984.

[viii] DÍAZ-BENÍTEZ, Maria Elvira. Nas redes do sexo: bastidores do pornô brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

[ix] BUTLER, Judith. Excitable Speech: a politics of the performative. Nova Iorque: Boutledge, 1997.

[x] LUST, Erika. Porno para mujeres. España, Melusina, 2008.

[xi] LLOPIS, María. El posporno era eso. Barcelona, Melusina, 2011.

[xii] PRECIADO, Beatriz. Testo Yonqui. Madrid, Espasa, 2008.

[xiii] JESUS, Jaqueline Gomes de; ALVES, Hailey. Feminismo transgênero e movimentos de mulheres transexuais. Cronos, Natal, v. 11, n. 2, p. 8-19, 2010.

[xiv] PORNHUB. The 2019 Year in Review. 11 dez. 2019. Disponível em: https://www.pornhub.com/insights/2019-year-in-review#countries. Acesso em 27 set. 2020.

[xv] BENEVIDES, Bruna. Brasil lidera consumo de pornografia trans no mundo (e de assassinatos). Híbrida. 11 mai. 2020. Disponível em: https://revistahibrida.com.br/2020/05/11/o-paradoxo-do-brasil-no-consumo-de-pornografia-e-assassinatos-trans/. Acesso em 25 ago. 2020.

[xvi] BENEVIDES, Bruna, NOGUEIRA, Sayonara Naider Bonfim. Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2019. São Paulo: Expressão Popular, ANTRA, IBTE, 2020. Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2020/01/dossic3aa-dos-assassinatos-e-da-violc3aancia-contra-pessoas-trans-em-2019.pdf. Acesso em 28 set. 2020.

[xvii] ARCENO, Yolanda. A Hipersexualização Da Mulher Trans: Entre O Radfem E O Conservadorismo. Transfeminismo. 21 set. 2019. Disponível em: https://transfeminismo.com/a-hipersexualizacao-da-mulher-trans-entre-o-radfem-e-o-conservadorismo/. Acesso em 28 set. 2020.

 

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