PAIS & FILHOS

10/12/2018

 

Dom Casmurro, o clássico de Machado de Assis (1839-1908) publicado em 1899, é uma das mais criativas e belas narrativas da literatura brasileira, quiçá, do mundo. A seguir, citarei um trecho desta magistral obra. Nele, o protagonista Bentinho, registra suas impressões acerca de seu filho, Ezequiel, que se parece cada dia mais com o amigo de seu pai, Escobar, razão por que Bentinho passa a questionar sua paternidade e, consequentemente, a fidelidade de sua esposa, Capitu, bem como a lealdade do seu amigo de longa data. Vamos a ele:

Ezequiel vivia agora mais fora da minha vista; mas a volta dele, ao fim das semanas, ou pelo descostume em que eu ficava, ou porque o tempo fosse andando e completando a semelhança, era a volta de Escobar mais vivo e ruidoso. Até a voz, dentro de pouco, já me parecia a mesma. Aos sábados, buscava não jantar em casa e só entrar quando ele estivesse dormindo; mas não escapava ao domingo, no gabinete, quando eu me achava entre jornais e autos. Ezequiel entrava turbulento, expansivo, cheio de riso e de amor, porque o demo do pequeno cada vez morria mais por mim. Eu, a falar verdade, sentia agora uma aversão que mal podia disfarçar, tanto a ela como aos outros. Não podendo encobrir inteiramente esta disposição moral, cuidava de me não fazer encontradiço com ele, ou só o menos que pudesse; ora tinha trabalho que me obrigava a fechar o gabinete, ora saía ao domingo para ir passear pela cidade e arrabaldes o meu mal secreto. (ASSIS, 1978, p. 140).

Bentinho e sua paixão por Capitu, a menina dos olhos de ressaca, é um dos episódios mais conhecidos da literatura brasileira e o fato de com ela ter casado, deixa ainda mais patente a todos nós, a sua condição de noivo apaixonado.

Ao ler este livro clássico que reproduz com seus personagens a profundidade psicológica e a complexidade da alma humana, não posso deixar de mencionar que no mesmo ano de publicação desta obra, Freud escrevera sua própria obra-prima: A interpretação dos sonhos, a qual  publicou no ano seguinte. Mais do que a semelhante data, o tema da traição, certamente já consagrado numa outra obra gigantesca – o Otelo, de Shakespeare – remete ao sonho, realidade psíquica da qual ninguém pode fugir e que, escandalosamente, Freud insiste em afirmar como sendo a realização de desejos, que, também nos traem e que, por sua vez, nos remetem ao sujeito do inconsciente. No entanto, é o sujeito de direitos a que iremos nos referir doravante.

De volta ao excerto precitado, vale indagar: será que Bentinho poderia pedir a anulação do registro civil da criança, caso restasse comprovado que ele jamais fora o pai biológico dela? Será que a criança tem direito a conhecer sua origem genética e buscar a verdade sobre seu vínculo parental? Como o Direito de Família trata essa questão hoje? E, a outro giro, será que a nulidade do registro desconsidera o melhor interesse da criança ou, ao revés, o promove e o dignifica? Eis o que queremos analisar.

A Constituição Federal de 1988 propiciou uma verdadeira valorização dos institutos do direito de família, iluminando-os pela sua principiologia, deixando ao intérprete a tarefa de zelar pela sua correta aplicação. Nela, o caput do artigo 227 reconhece o direito da criança ao respeito, à dignidade e a convivência familiar e comunitária, além de determinar que tal direito deve ser assegurado pela família e pelo Estado com absoluta prioridade.

A dignidade da criança e o respeito são direitos de que é titular – não há negar!-  foram aviltados se a ela for negado o direito de conhecer sua origem e identidade biológica, sendo certo que ela não pode ser vítima de qualquer discriminação relativa à filiação (Art. 227,§6º,CRFB/88; art. 17, Lei 8.069/90).

O genitor, por sua vez, tem todo o direito de conhecer seu filho e re-conhecer-se nele, vê-lo desenvolver-se como uma continuação de si, herdeiro de seu patrimônio genético e merecedor de seu afeto e de seus cuidados paternais. Também a sua dignidade, cujo conteúdo mínimo tem como um de seus elementos, o valor intrínseco da pessoa humana, da qual decorre, entre outros direitos, o direito à integridade moral ou psíquica, incluindo-se nesse domínio, a honra e a imagem (BARROSO, 2018).

Barroso (2018, p. 289) sustenta que a dignidade humana é fundamento e objetivo do constitucionalismo democrático e que esta “tem natureza jurídica de princípio constitucional”. Mas também observa que o conceito tem sido invocado “para a decisão de questões triviais, com inconveniente banalização de seu sentido”.

No entanto, o eminente jurista destaca o papel da autonomia como sendo o elemento ético da dignidade e por isso: “Decisões sobre religião, vida afetiva, trabalho e outras opções personalíssimas não podem ser subtraídas do indivíduo sem violar a sua dignidade” (BARROSO, 2018, p. 292).

Com efeito, tanto a criança quanto o seu pai registral poderão sofrer profundamente diversos danos, enquanto suas semelhanças e diferenças biotípicas se protraem no tempo.

Que não basta ter um genitor para ter igualmente um pai, é fato que encontra consenso na melhor doutrina e jurisprudência sobre a matéria. Todavia, ressalte-se que a primazia do afeto está consagrado na CRFB/88 sobre a verdade biológica[i], mas não contra ela!

Por outro lado, se entre pessoas que não são parentes consanguíneos é possível construir verdadeiros laços de amor, é ainda mais provável que a transmissão de caracteres genéticos, contribuem sobremaneira para estreitar ainda mais as relações socioafetivas entre membros de uma mesma família.

O Código Civil de 10 de janeiro de 2002 determina em seu art. 1.601 que cabe ao marido o direito de contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher, sendo tal ação imprescritível, ao passo que o artigo 1.604 do mesmo Código, dispõe que “ninguém pode vin­dicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro” (grifei).

Ferreira e Pamplona (2018, p. 217) sustentam que: 

Em uma sociedade cada vez mais inconstante e fragmentada, cabe ao intérprete buscar respostas nos próprios fatos sociais, além dos princípios e valores constitucionais, doutrina e jurisprudência, a fim de garantir um sistema aberto, pautado em um verdadeiro diálogo das fontes e, capaz de proteger todas as famílias e seus integrantes. Nesse sentido, a análise dos efeitos jurídicos da afetividade deverá se pautar pelo caso concreto, pois não cabe a um Direito de Família em constante transformação ditar soluções herméticas com a pretensão de serem definitivas.

Nessa perspectiva, podemos afirmar que o Direito brasileiro, ao proteger tanto a criança quanto o adulto que a registrou, certamente assegura o protesto pela produção de todos os meios de prova em direito admitidos necessários a reafirmar o verdadeiro amor que, para subsistir, não pode se dá em detrimento nem do pai que foi traído e enganado, nem da criança que nada fez para perder o afeto e os cuidados do único pai que conhecera; ou desmerecer o afeto de seu genitor e de sua família biológica.

A ausência de vínculo biológico entre o marido e o menor pode ser comprovada de maneira fidedigna mediante exame de DNA; além deste, faz-se necessário prova robusta de que o marido foi induzido a erro, ao registrar como seu o filho de outrem, enquanto a mãe não só lhe omitia a verdade como alimentava todos os genuínos cuidados e preocupações que, diligentemente, devotava à pobre criança, tão inocente quanto ele. Por esta razão, é possível, ainda, que o marido postule a condenação ao pagamento de indenização por danos morais por parte da mãe, a qual tem o dever de informar, antes do registro, sobre dúvida ou certeza quanto ao verdadeiro genitor da criança[ii].

A desvinculação jurídica entre ambos não desfaz os fortes laços do amor verdadeiro, antes os confirma ao mesmo tempo em que desfavorece e desestimula a má-fé e a mentira, sob qualquer pretexto.

Através de uma ação negatória de paternidade c/c anulatória de registro de nascimento, o marido pode pedir seja decretada a nulidade do registro de nascimento do menor quanto à sua paternidade bem como a alteração do nome da criança que não mais terá o seu sobrenome.

 

Notas e Referências

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. 8ª ed. São Paulo: Ática, 1978.

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os Conceitos Fundamentais e a Construção do Novo Modelo. 7ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

FERREIRA, Keila Pacheco; PAMPLONA, Naiara Guimarães. “Balizas à Desconstituição da Paternidade: Uma leitura da afetividade a partir dos Fundamentos Constitucionais que permeiam o Direito de Família” (Pp. 201-222). In: FERREIRA, Keila Pacheco; BORGES, Júlia Tavares; MARTINS, Rafael Lara. Direito privado nos 30 anos da constituição: experiências e desafios no âmbito das relações privadas na sociedade brasileira. Col. Coleção Experiência Jurídica nos 30 anos da Constituição Brasileira. Vol. 6. ESA/OAB-GO e PPGDP-UFG.  Florianópolis: Editora Tirant, 2018.

[i] Aproveito para observar que a Sagrada Família, não raro, é citada como símbolo de anuência ao princípio da socioafetividade, já que José não era o pai biológico do menino Jesus e, mesmo assim, o amou e o educou como pai zeloso; A passagem bíblica também revela o fato não menos verdadeiro de que Maria era sua mãe biológica e também o amava. Portanto, não há antagonismo entre afeto e verdade!

[ii] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO. Apelação n°0057625-38.2012.8.26.0562, 12ª Vara Cível, Relator Luís Mário Galbetti, j.18.02.2016).

 

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