Painel de Bordo do CPC2015 #2: Análise das hipóteses de cabimento específicas do Recurso Extraordinário

30/03/2016

Por Belmiro Fernandes – 30/03/2016

Leia também as partes #1 e #3.

1. Introdução.

Na série Painel do Bordo do Novo CPC, apresentaremos os aspectos técnicos e mais relevantes quanto à aplicação de velhos e novos institutos. Nosso propósito não é – neste momento – o aprofundamento acadêmico e reflexivo sobre o conteúdo jurídico do código, mas sim de orientar os leitores (especialmente estudantes e profissionais da prática) sobre a melhor forma de manejo da técnica processual no novo código.

O tema de hoje é o cabimento específico do recurso extraordinário no CPC2015.

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2. Requisitos de admissibilidade específicos para o recurso extraordinário.

O recurso extraordinário é dirigido contra acórdãos e decisões que afrontem o texto constitucional.

Um traço relevante é perceber que tais decisões – diferentemente do que ocorre com o recurso especial -  não necessitam ser oriundas de tribunais, mas podem advir de outros órgãos de primeira instância. Assim, caberá contra turmas ou colégios recursais, no tocante a decisões proferidas em sede de juizados especiais[1].

Suas hipóteses de cabimento encontram-se dispostas no artigo 102, inciso III, da CF/88, em suas quatro alíneas, a saber:

2.1 Artigo 102, inciso III, alínea “a”: afronta direta a dispositivo constitucional.

O Supremo Tribunal Federal tem posição consolidada no sentido de que não pode ser qualquer violação ao seu texto que permite a interposição de recurso extraordinário. Assim, a violação deve ser direta, que não é reflexa. Em outras palavras, a matéria não pode ter sido objeto de norma infraconstitucional, pois se isto ocorrer seguramente não haverá hipótese de recurso extraordinário, mas, em princípio, de especial.

Este requisito é bastante desafiador, visto que exige a compreensão do texto constitucional de normas de aplicabilidade plena e que não tenham sido objeto de qualquer lei sobre o assunto.

À guisa de exemplo, teremos a discussão sobre requisitos discriminatórios na contratação de trabalhadores em razão de suas características físicas. O desafio é encontrar uma situação concreta e que não possua regulação legal específica. Assim, violações por discriminação de etnia/raça/cor, assim como de gênero encontraria guarida nas legislações próprias sobre o tema – respectivamente, Estatuto da Igualdade Racial e a Lei Maria da Penha – impedindo a interposição de recurso extraordinário, comprovada a repercussão geral da matéria, evidentemente.

Entretanto, outras formas de discriminação ainda não reguladas por lei, como por orientação sexual, transfobia[2] e origem regional, bem como as novas manifestações preconceituosas[3] encontrariam respaldo direto no texto constitucional, por força, a priori, do artigo 1º, inciso III (dignidade humana) e artigo 3º, inciso IV (proibição do incentivo e manutenção de qualquer discriminação, norma programática).

Um outro aspecto a ser verificado advém de o tema não encontrar, em todos os seus aspectos, regulação infraconstitucional, residindo parte de seus sentidos ainda originalmente no texto da Constituição. Isto ocorre em princípios como devido processo legal, legalidade e houve um grande debate quanto à proteção da coisa julgada.

Sobre esta última, de acordo com o contexto do Código de 1973, o STF vinha afirmando que, se for violada a coisa julgada, não caberia recurso extraordinário, em razão de o CPC (de 1973) tê-la regulado de maneira pormenorizada[4].

Nota-se, com isto, um clássico exemplo de jurisprudência defensiva. O STF então dizia que o tema era matéria do STJ. Por sua vez, o STJ também não aceitava porque a matéria é constitucional, deixando o recorrente em um hiato, prejudicando o acesso à justiça do recorrente.

Situações como esta foram combatidas pelos artigos 1.032[5] e 1.033[6] do CPC2015, pois se criou a fungibilidade entre o RE e o RESP. Diante de determinado caso, se o STJ, ao receber o RESP, vislumbrar que a violação alegada não é infraconstitucional, mas verdadeiramente constitucional, intimará o recorrente para emendar o recurso (redigindo, inclusive, a preliminar de repercussão geral, exigência do RE), dentro de 15 dias sendo então o mesmo encaminhado ao STF como RE.

Por outro lado, o artigo 1.033 vai o caminho oposto, mas neste caso pura e simplesmente enviando para o STJ, que terá de julgar aquele recurso como RESP.

Por fim, há de se perguntar: topograficamente, onde o recorrente poderá buscar as normas constitucionais para fundamentar o seu recurso?

Além, evidentemente, de pesquisar os 250 artigos da Constituição Federal de 1988, não se pode esquecer que faz parte integrante da mesma o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Ainda há matérias constantes neste diploma que não foram regulados propriamente pela legislação infraconstitucional, a exemplo dos temas de precatórios e também da indenização compensatória para rescisão do contrato de trabalho sem justa causa.

Porém, é importante perceber que a emenda constitucional nº 45/2004 oficialmente criou no Brasil o modelo de bloco de constitucionalidade, que acrescentou o § 3º ao artigo 5º da CF/88, no qual tratados de direitos humanos ratificados sob o rito especial equivalente ao das emendas passam a ter força de emenda constitucional.

Até o presente momento, apenas a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007 possuem este status, servindo de base para estudo de afronta direta no que a Lei Brasileira da Inclusão não tratou[7].

2.2 Artigo 102, III, “b”: Declaração de inconstitucionalidade de tratado ou lei federal.

Importa salientar que o controle de constitucionalidade no Brasil pode ser feito tanto na modalidade concentrada, quanto de forma difusa. A hipótese consagrada no dispositivo trata especificamente sobre a segunda modalidade.

Assim, quando houver o controle difuso, é possível que o Tribunal a quo declare a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal, seja pelo tribunal pleno, seja através do órgão especial. Logo, diante deste acórdão que julga inconstitucionalidade de lei federal, caberá o RE para STF.

Por força do dispositivo, também os tratados devidamente ratificados que forem eventualmente declarados inconstitucionais pelo tribunal local terão o mesmo cabimento na hipótese anterior, porque, via de regra, têm regramento de lei federal.

2.3 Artigo 102, III, alíneas “c” e “d”. Decisão recorrida julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face da Constituição.

Ambas são hipóteses de difícil ocorrência na prática, dados os precedentes do STF quanto ao tema.

Na primeira hipótese, trata-se de situação em que o RE será aplicado na hipótese em que o acórdão der validade a ato ou lei que esteja sendo contestada em face de governo local.

Por seu turno, a hipótese prevista na alínea “d”, esta teve sua redação alterada pela emenda constitucional nº 45/2004. Na redação originária, esta competência pertencia ao Superior Tribunal de Justiça. Por outro lado, verificou-se que na maioria das situações, por vezes o STJ acabava por restaurar o direito constitucional por via da partilha da competência dos artigos 21 a 24 da CF/88. Logo, ou a lei local regulou matéria que não poderia ou então invadiu competência federal[8].

3. A repercussão geral dos recursos extraordinários.

A EC nº 45/2004[9] introduziu ao artigo 102 da CF/88 o § 3º, determinando que, no recurso extraordinário, o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, para que o Tribunal examine a admissão do recurso.

É requisito de admissibilidade, com natureza de preliminar ao recurso. Quanto à técnica, o recorrente deve abrir um item especialmente dedicado, justificando que aquele caso possui repercussão geral. Por um quórum de 2/3, poderá o STF pode recusar a peça.

O artigo 1.035 do CPC15 diz o que é repercussão geral, in verbis:

Art. 1.035.  O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário quando a questão constitucional nele versada não tiver repercussão geral, nos termos deste artigo. 

§ 1o Para efeito de repercussão geral, será considerada a existência ou não de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do processo.

§ 2o O recorrente deverá demonstrar a existência de repercussão geral para apreciação exclusiva pelo Supremo Tribunal Federal.

§ 3o Haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar acórdão que:

I - contrarie súmula ou jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal;

II – (Revogado);   (Redação dada pela Lei nº 13.256, de 2016)   (Vigência)

III - tenha reconhecido a inconstitucionalidade de tratado ou de lei federal, nos termos do art. 97 da Constituição Federal.

É formado por dois aspectos: relevância e transcendência, marcados por uma típica indeterminação que deve ser integrada pelo aplicador.

A relevância encontra espaço no próprio § 1º do artigo 1.035, pois temas de natureza política, jurídica, econômico e social são, a priori, de repercussão geral. Como exemplos mais significativos, podem ser citadas as ações referentes aos expurgos inflacionários; questões fiscais e prescrição do FGTS, dentre outras.

Quanto à transcendência, esta poderá ser percebida, mais do que teorizada. Assim, ações coletivas terão necessariamente transcendência por afetarem direitos transindividuais. O mesmo se dará com questões repetitivas diversas, como planos econômicos, FGTS, direitos de servidor público, questões fiscais e tributárias; prescrição da execução fiscal; sócio com redirecionamento da execução; que deve constar na CDA, dentre outras. Ainda é possível que uma demanda individual não repetitiva encontre transcendência, como ocorreu no debate quanto à união homoafetiva, pois interessa a toda coletividade.

Propomos um critério pouco ortodoxo à guisa da clareza. Ser transcendente é o debate jurídico que interessa à sociedade, quando esta aguardar, ansiosamente, pela decisão do Supremo ao acompanhar a programação da TV Justiça. Se houver mobilização quanto ao tema, é porque a causa é de interesse nacional[10].

Finalmente, existem ainda os casos de repercussão geral presumida, que são aqueles em que o acórdão atacado ou contrarie súmula ou jurisprudência dominante do STF, ou ainda reconheça a inconstitucionalidade de lei ou tratado de lei federal. Quanto a este ponto, manteve-se a sistemática anterior.

Os aspectos processuais quanto à verificação da repercussão geral serão examinados em estudo próprio.

4. Considerações finais.

O recurso extraordinário, por possuir base constitucional, por obvio não poderia ter grandes alterações com a entrada em vigor do CPC2015.

Quanto aos aspectos processuais, porém, nota-se a incorporação de diversos entendimentos consolidados pela jurisprudência e propostas doutrinárias, a exemplo da fungibilidade recursal.

Seu requisito de repercussão geral foi harmonizado com o sistema de precedentes do Código, com o nítido propósito de ordenar o direito objetivo brasileiro.

Por outro lado, a jurisprudência defensiva perdeu espaço, especialmente com a já citada possibilidade de fungibilidade recursal entre o RESP e o RE.

No próximo estudo, abordaremos especificamente o que mudou quanto ao recurso especial e trataremos de aspectos procedimentais específicos de ambos recursos.


Notas e Referências:

[1] A súmula 640 do STF dispõe que “É cabível recurso extraordinário contra decisão proferida por Juiz de primeiro grau nas causas de alçada, ou por turma recursal de juizado especial cível e criminal”.

[2] Preconceito e discriminação contra travestis e transexuais, que é uma situação diversa da discriminação por orientação sexual

[3] Cita-se o exemplo da discriminação por excesso de peso corpóreo, apelida por “gordofobia”.

[4] STF, DJ 15.06.04, p. 46, AgRg no AI 449.830-SP, Rel. Min. Carlos Velloso.

[5] Art. 1.032.  Se o relator, no Superior Tribunal de Justiça, entender que o recurso especial versa sobre questão constitucional, deverá conceder prazo de 15 (quinze) dias para que o recorrente demonstre a existência de repercussão geral e se manifeste sobre a questão constitucional. Parágrafo único.  Cumprida a diligência de que trata o caput, o relator remeterá o recurso ao Supremo Tribunal Federal, que, em juízo de admissibilidade, poderá devolvê-lo ao Superior Tribunal de Justiça.

[6] Art. 1.033.  Se o Supremo Tribunal Federal considerar como reflexa a ofensa à Constituição afirmada no recurso extraordinário, por pressupor a revisão da interpretação de lei federal ou de tratado, remetê-lo-á ao Superior Tribunal de Justiça para julgamento como recurso especial.

[7] Lei n.º 13.146/2015.

[8] Embora as alíneas “c” e “d” tratem sobre confronto de leis, baseiam-se em parâmetros interpretativos sobre a Constituição Federal, pois sua base é a repartição de competências (BUENO, 2015, p. 650).

[9] Àquela época, o STF julgava uma média de 130 mil recursos por ano, antes da implementação da repercussão geral, o que apenas ocorreu em 2006. Arruda Alvim disse que por mais que o ministro fosse Pontes de Miranda ou Rui Barbosa, não daria conta.

[10] Há uma ideia equivocada de que a presença do Estado em um dos polos teria transcendência.É uma ideia copiada da Alemanha, onde o Estado cumpre a lei e, assim, litiga muito pouco. Se litiga muito pouco, é claro que quando ele se faz presente em um processo, a situação tem repercussão geral.Difere do Brasil, no qual 80% dos processos da Justiça Federal têm o Estado como parte.

BUENO, C. S. Manual de direito processual civil: inteiramente estruturado à luz do novo CPC. São Paulo: Saraiva, 2015.

COUTO, M. B. A repercussão geral da questão constitucional e seus reflexos no âmbito do recurso extraordinário no processo brasileiro. São Paulo: No prelo, 2009. Disponivel em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp106922.pdf>. Acesso em: 12 Março 2016.

MEDINA, J. M. G. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

NEVES, D. A. A. Manual de Direito Processual Civil - Volume Único. São Paulo: Método, 2015.

RECURSOS Especial e Extraordinário no Novo CPC. Direção: Coordenação Gilberto Bruschi e Darlan Barroso. Produção: Curso de Extensão sobre o Novo CPC - Teoria e Prática Prática. Intérpretes: Mônica Bonetti COUTO. [S.l.]: Damásio Educacional. 2015.


Belmiro Fernandes. Belmiro Fernandes é advogado, mestre em direito econômico pela Universidade Federal da Bahia, especialista em direito processual pena Faculdade Damásio de Jesus/DeVry, professor de direito processual civil da Universidade Salgado de Oliveira e da Estácio/BA e associado do escritório de advocacia MB Poças e Albuquerque Advogados e Associados..


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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