Padrasto tem que pagar pensão? Análise da filiação socioafetiva e o dever de alimentos

26/02/2016

Por Fernanda Sell de Souto Goulart Fernandes e Tainá Fernanda Pedrini - 26/02/2016

Queridos leitores, o texto desta semana tratará da (im)possibilidade de o padrasto (ou a madrasta) ser condenado ao pagamento de alimentos aos enteados. Assunto polêmico e que tem sido objeto de várias decisões dos Tribunais brasileiros.

Atualmente, não há mais que se falar em uma concepção una de família. Na verdade, família é determinada como uma instituição mutável conforme as transformações sociais, que se constitui por meio dos vínculos de afeto de seus integrantes e não apenas por liames sanguíneos. Assim, pode-se dizer que a família tem como objetivo a realização dos interesses afetivos e existenciais de seus membros, para que assim alcancem a felicidade recíproca.[1]

Em busca da satisfação pessoal famílias são construídas, destruídas e até reconstruídas. Diante deste caleidoscópio familiar surgem as “famílias mosaico”, ou seja, aquelas entidades familiares formadas pela pluralidade das relações parentais, em especial as fomentadas pelo divórcio, pela separação, pelo recasamento, seguidos das famílias não matrimoniais e das desuniões. Há autores que a denominam como família reconstituída, recomposta, ou, como preceitua a literatura jurídica argentina, famílias ensambladas.

Há quem defina também como pluriparental, a estrutura familiar composta depois do desfazimento de outra. Nesses casos, um novo casal se une, no qual ambos ou somente um deles têm filhos advindos de outra relação. O termo pluriparental se deve a multiplicidade de relações parentais, tendo em vista a posição do menor inserido neste seio, que muitas vezes acaba considerando também o padrasto ou a madrasta como pai ou mãe ou até mesmo, afasta-se do genitor biológico para então reconhecer esta nova pessoa como genitor afetivo.[2]

Importante frisar que o fato de haver família reconstituída, por si só, não gera a filiação afetiva entre o padrasto (ou madrasta) e os enteados. O relacionamento entre eles pode ser, tão somente, de carinho e afeto, e não de verdadeira filiação civil. A grande maioria das crianças e adolescentes que vivem em famílias reconstituídas continuam com o contato físico e afetivo com os pais biológicos, não gerando a figura da paternidade socioafetiva.

O que vamos discutir no texto de hoje são aquelas situações onde entre os menores e padrastos (ou madrastas) cria-se vínculo de filiação afetiva. Ambos visualizam a relação de paternidade civil entre eles. O que os une não é o sangue, mas o afeto e a intenção de serem pai e filho.

Em uma dessas situações, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina decidiu que o padrasto deveria garantir alimentos para a enteada. Isso porque considerou o vínculo afetivo paterno-filial adquirido entre as partes no decorrer da constância da união estável entre o padrasto e a genitora da menor. Ademais, além da forte dependência econômica, o Poder Judiciário ainda reconheceu os vínculos de parentesco por afinidade entre as partes. Decidiu:

ALIMENTOS À ENTEADA. POSSIBILIDADE. VÍNCULO SOCIOAFETIVO DEMONSTRADO. PARENTESCO POR AFINIDADE. FORTE DEPENDÊNCIA FINANCEIRA OBSERVADA. QUANTUM ARBITRADO COMPATÍVEL COM AS NECESSIDADES E AS POSSIBILIDADES DAS PARTES. Comprovado o vínculo socioafetivo e a forte dependência financeira entre padrasto e a menor, impõe-se a fixação de alimentos em prol do dever contido no art. 1.694 do Código Civil. Demonstrada a compatibilidade do montante arbitrado com a necessidade das Alimentadas e a possibilidade do Alimentante, em especial os sinais exteriores de riqueza em razão do elevado padrão de vida deste, não há que se falar em minoração da verba alimentar. DECISÃO MANTIDA. RECURSO IMPROVIDO. (TJSC, Agravo de Instrumento n. 2012.073740-3, de São José, rel. Des. João Batista Góes Ulysséa, j. 14-02-2013).

Pensando no melhor interesse da criança e do adolescente, tendo em vista sua prioridade absoluta, o respectivo Tribunal firmou este entendimento como forma de proteger a pessoa que se encontra nessa celeuma, preservando, assim, a construção dos liames de afeto, confiança e solidariedade nas relações familiares até ali constituídas.

A solidariedade, como princípio do direito de família, nada mais é do que o dever recíproco e fraterno entre os familiares. Há plena comunhão de vidas no casamento e na união estável, assim como, a obrigação de alimentar, na qual os integrantes da família são credores e devedores entre si.

O afeto não é fruto biológico. Conforme os ensinamentos de Maria Berenice Dias, a “filiação socioafetiva assenta-se no reconhecimento da posse de estado de filho: a crença da condição de filho fundada em laços de afeto. A posse de estado é a expressão mais exuberante do parentesco psicológico, da filiação afetiva”. [3]

Nos casos em que se configura a posse de estado de filho e seu consequente vínculo afetivo, os pais criam uma criança e a tratam como filha (o) por escolha própria, destinando todo o amor, ternura e cuidados próprios de uma relação paterno-filial, pois têm o nítido objetivo de felicidade.

Aliás, a jurisprudência vem se solidificando no sentido de que a paternidade pelo afeto prevalece frente à biológica; se houver conhecimento pelos pais de vínculo sanguíneo sobre a paternidade/maternidade e a existência da relação de afeto construída no tempo. Isso porque a doutrina, ao longo dos anos, construiu a ideia de que a maternidade e a paternidade biológica não prevalecem quando em conflito com aqueles que cuidam da criança com amor e participam de sua jornada.

O Enunciado 256 da III Jornada de Direito Civil disciplina, inclusive, a filiação socioafetiva como modalidade de parentesco civil, nos seguintes termos: “A posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil.”

Ademais, o TJSC considerou os vínculos de parentesco por afinidade entre as partes. Sendo assim, o dever de alimentos entre o padrasto e a enteada não se baseia somente no entendimento doutrinário e no vínculo de afeto, mas no vínculo natural-jurídico, estabelecido pelo ordenamento jurídico pátrio.

Nos ensinamentos de Maria Berenice Dias, o “vínculo de afinidade se estabelece também com relação aos filhos de um dos cônjuges ou companheiros. Assim, o filho de uma passa a ser filho por afinidade do seu cônjuge ou parceiro. Na ausência de melhor nome, costuma-se chamar de padrasto ou madrasta e enteado os parentes afins de primeiro grau em linha reta”. [4]

A exemplo do TJSC, vários Tribunais vem decidindo da mesma maneira. Em recentíssimo julgado, o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul entendeu:

AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO E DE RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA C/C ALIMENTOS E REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS – FIXAÇÃO DE ALIMENTOS PROVISÓRIOS – PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA – REQUISITOS DA ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA (ART. 273 DO CPC)– PREENCHIDOS – RECURSO DESPROVIDO. O direito à prestação dos alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes. Tal direito pode ser pleiteado pelos parentes, os cônjuges ou companheiros sempre que dele necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação. O parentesco civil é o estabelecido em razão da adoção, e também abrange o parentesco socioafetivo, o qual é baseado em relação de afeto gerada pela convivência entre as partes, consoante Enunciado nº 256 do Conselho da Justiça Federal. A existência de fortes indícios da parentalidade socioafetiva, colhidos por meio de documentos e relatórios psicossociais realizados nos autos, aliados à situação de vulnerabilidade social da parte agravada, autorizam a antecipação parcial dos efeitos da tutela para fixação dos alimentos provisórios. Assim, mantém-se a decisão agravada. O princípio da irrepetibilidade dos alimentos deve ser avaliado em conjunto com os demais princípios constitucionais, dentre eles o de maior relevo, que é a proteção da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da sociedade brasileira (art. 1º, III, CF). (TJ-MS - AGR: 14131633320158120000 MS 1413163-33.2015.8.12.0000, Relator: Des. Eduardo Machado Rocha, Data de Julgamento: 01/12/2015,  3ª Câmara Cível, Data de Publicação: 11/01/2016)

Com a dissolução do matrimônio ou da convivência, a filiação não desaparecerá, seja ela natural ou civil. Assim, solvida a relação, ainda existem os impedimentos matrimoniais, o direito de visitas e consequentemente a obrigação alimentar entre eles. Isso é o que a doutrina vem chamando de paternidade alimentar.

Portanto, acertada é a decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, tendo em vista que o genitor afetivo avocou a responsabilidade quando assumiu a posição de pai ou de mãe. Injusto seria, portanto, deixar o (a) menor à margem da duração do matrimônio ou da união estável que o genitor (a) afetivo mantém com a genitora (o) biológica (o). É necessário que o menor crie laços de afeto no decorrer de seu amadurecimento como ser humano e que estes liames perdurem.

Perdoem a cara amarrada, Perdoem a falta de abraço, Perdoem a falta de espaço, Os dias eram assim... 

Perdoem por tantos perigos, Perdoem a falta de abrigo, Perdoem a falta de amigos, Os dias eram assim... 

Perdoem a falta de folhas, Perdoem a falta de ar Perdoem a falta de escolha, Os dias eram assim... 

E quando passarem a limpo, E quando cortarem os laços, E quando soltarem os cintos, Façam a festa por mim... 

E quando lavarem a mágoa, E quando lavarem a alma E quando lavarem a água, Lavem os olhos por mim... 

Quando brotarem as flores, Quando crescerem as matas, Quando colherem os frutos, Digam o gosto pra mim... 

Digam o gosto pra mim...” 

Aos Nossos Filhos Elis Regina Composição: Ivan Lins/Vitor Martins


Notas e Referências: 

[1] No texto Caso ou compro uma bicicleta: Uma análise histórica dos fundamentos que levam ao casamento trato da evolução dos fundamentos da família. Hoje é o afeto, mas nem sempre foi assim. Ver em: http://emporiododireito.com.br/caso-ou-compro-uma-bicicleta-uma-analise-historica-dos-fundamentos-que-levam-ao-casamento-por-fernanda-sell-de-souto-goulart-fernandes/

[2] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 9.ed., 2013, p. 381.

[3] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. p. 357.

[4] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. p. 357.


Sem título-1 . Fernanda Sell de Souto Goulart Fernandes é graduada em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (2002) e Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (2005). Doutoranda pela Universidade do Vale do Itajaí. Atualmente é professora do Instituto Catarinense de Pós Graduação, advogada pela Ordem dos Advogados do Brasil de Santa Catarina e professora da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI.


Tainá Fernanda Pedrini. . Tainá Fernanda Pedrini é Acadêmica do curso de Direito da UNIVALI – Universidade do Vale do Itajaí. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Father and son // Foto de: Chunlin Yao // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/maodan122/3393258360 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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