PACOTE ANTICRIME: A INCONSTITUCIONALIDADE DAS PROPOSTAS DE ALTERAÇÃO DO BANCO NACIONAL DE PERFIL GENÉTICO

18/07/2019

Coluna Espaço do Estudante

 

 

O anteprojeto denominado “anticrime”[1] propõe mudanças significativas no Banco Nacional de Perfil Genético (Lei n.12.654/2012 e Lei n. 12.037/2009).

Em suma, o anteprojeto propõe uma ampliação substancial do roll de pessoas sujeitas à identificação genética, passando a exigir que não apenas os condenados pela prática de crimes dolosos de natureza grave contra pessoa ou hediondos sejam submetidos à identificação genética, mas, sim, que todos os condenados por crimes dolosos, mesmo antes do trânsito em julgado, deverão ser submetidos obrigatoriamente à identificação do perfil genético – sem qualquer distinção se com, ou sem, grave ameaça ou violência.

A bem da verdade é que a antiga redação do dispositivo in comento já revelava-se maculada por diversas inconstitucionalidades, encontrando-se, inclusive, em debate no Supremo Tribunal Federal em razão da interposição do recurso extraordinário (RE) de n. 973.837, com repercussão geral reconhecida. Mesmo assim, sem qualquer compromisso com a instrumentalidade constitucional do processo penal[2], o anteprojeto propõe uma ampliação das possibilidades de interferências do Estado na esfera individual do cidadão, obliterando, deste modo, as custosas conquistas históricas dos direitos e garantias fundamentais do homem.

Acerca do tema, Grandinetti já destacava que a Lei n. 12.654/2012 é:

[...] desproporcional em sentido estrito porque permite um alto grau de lesividade de direitos fundamentais de condenados por algumas espécies de crimes praticados sem violência, sem que se possa recolher, da restrição, resultados positivos em prol da segurança pública[3].

É elementar que tenhamos em mente que a proposta do Ministro da Justiça – bem como a atual redação do dispositivo: i) viola os princípios constitucionais do estado de inocência[4] e da razoabilidade e proporcionalidade ao determinar que todos os condenados por crimes dolosos, antes do trânsito em julgado, sejam submetidos à identificação genética (art. 5º, LVII, da CF/88); ii) viola o princípio da especialidade da prova, haja vista que autoriza a utilização da prova genética em ações penais desvinculadas do processo originário onde se determinou a coleta do material, e, sobretudo; iii) viola o princípio constitucional do nemo tenetur se detegere, ou seja, o direito de não produzir provas contra si (art. 5º, LXIII, da CF/88).

Ora, não se pode tratar como culpado o réu que ainda possui direito de recurso, sob pena de vilipendiar a expressa previsão contida no art. 5º, LVII, da CF/88[5] (princípio do estado de inocência). Alinhamo-nos a Lopes Junior no que concerne à necessidade de incidência dos limites do principio da especialidade da prova, ou seja, “a prova genética somente poderá ser utilizada naquele caso penal e o material poderá ser utilizado até a prescrição (daquele crime). [...] o uso está relacionado a este crime e a disponibilidade temporalmente regulada pela prescrição”[6].

Viola, ainda, os princípios constitucionais da razoabilidade e proporcionalidade, visto que “nos moldes pretendidos, a sentença condenatória de primeiro grau (recorrível), v.g., por crime contra honra (calúnia, difamação e injúria), omissão de socorro, apropriação de coisa achada e introdução ou abandono de animais em propriedade alheia seria título apto à extração compulsória de DNA. Trata-se, portanto, de um alargamento, sem limites, do polêmico banco criminal genético”[7].

Ademais, é imperioso destacar que, à luz do princípio do nemo tenetur se detegere, “o sujeito passivo não pode sofrer nenhum prejuízo jurídico por omitir-se de colaborar em uma atividade probatória da acusação ou por exercer seu direito de silêncio quando do interrogatório. Sublinhe-se: do exercício do direito de silêncio não pode nascer nenhuma presunção de culpabilidade ou qualquer tipo de prejuízo jurídico para o imputado”[8].

Deste modo, sendo um preceito constitucional o direito de não se auto incriminar, como seria possível a utilização de material genético colhido de forma invasiva – sem autorização do agente – em posterior inquérito policial ou ação penal?[9]

É evidente que trata-se de prova nula.

Sobre o tema, Távora e Alencar destacam que “no contexto da ‘identificação criminal por meio de material genético’, [...] tal providência somente ‘pode ser utilizada para os fins exclusivos de identificação criminal. Nesse passo, não é possível que a autoridade policial, sabendo quem é o indivíduo que busca identificar, solicite a extração de seu material biológico para comparação com vestígios da cena do crime’, haja vista que o fito da legislação não deve ser ‘o recolhimento de prova de autoria do investigado, mas, sim, de prova de sua identidade’”.[10]

Mais absurda é a previsão contida no §4º da proposta de alteração do art. 9-A da Lei n. 12.654/2012, também manifestamente inconstitucional, a qual estabelece penalidade de falta grave na hipótese de recusa à realização da identificação genética; ora, se ninguém é obrigado a se auto incriminar, novamente indagamos: como seria possível estabelecer uma penalidade em razão do exercício de uma garantia constitucional?

Lopes Junior aponta para a necessidade de validação cientifica dos métodos de análise do DNA e a possibilidade de manipulação do DNA: a) No tocante a validação cientifica dos métodos de análise do DNA, é elementar que tenhamos em mente que “não raras vezes, as amostras são encontradas em superfícies não estéreis, podendo sofrer danos após o contato com a luz solar, micro-organismos e solventes. Isso pode levar a equívocos na interpretação”[11]; b) bem como deve ser levado em consideração a possibilidade de manipulação do DNA, “não apenas no sentido mais simples, de falhas na cadeia de custódia da prova, laudos falsos, enxerto de provas etc., mas também na possibilidade de fraudar o próprio DNA”[12]. O conhecido periódico The New York Times noticiou que:

[...] cientistas israelenses divulgam em artigo a possibilidade de introduzir, com certa facilidade, em uma amostra qualquer de sangue ou saliva, o código genético de qualquer pessoa a cujo perfil de DNA se tenha acesso – sem que seja sequer necessário possuir uma amostra de seu material genético. A notícia é bastante relevante no sentido de minar a infalibilidade com que são tratadas as evidências e provas baseadas em testes genéticos a partir dos procedimentos usuais de perícia forense. E, ainda, as novas possibilidades de fraude que se abrem com o recurso a esta técnica podem aumentar os riscos potenciais do manejamento de informação genética, com reflexos claros para a atual tendência à compilação de gigantescos bancos de dados genéticos.[13]

Além do mais, a respeito dos resultados práticos da adoção de Bancos Genéticos, Nicolitt sublinha que “nem mesmo do ponto de vista utilitarista a medida se justifica, pois no Reino Unido, onde há o maior banco de dados de DNA do mundo (UK ND-NAD), em menos de 1% dos casos há sucesso na obtenção do perfil genético relativamente aos crimes registrados, o que demonstra que a medida avilvante dos direitos fundamentais, além de cara, é de pouca eficiência, o que a torna desproporcional”[14].

 

Notas e Referências

[1] Sobre a denominação do pacote de medidas, Streck sublinha: “Minha prudência e meu ceticismo deixam-me em alerta já no título do Projeto. “Anticrime”. Pergunto: alguém, afinal, é a favor do crime? Que projeto legislativo não é “anticrime”? Mas, enfim, eis o nome da coisa”. In STRECK, Lenio Luiz. O “pacote anticrime” de Sergio Moro e o Martelo das Feiticeiros. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-fev-07/pacote-anticrime-sergio-moro-martelo-feiticeiros>. Acessado em 26/03/2019.

[2] “Somente a partir da consciência de que a Constituição deve efetivamente constituir (logo, consciência de que ela constitui a ação), é que se pode compreender que o fundamento legitimante da existência do processo penal democrático se dá por meio da sua instrumentalidade constitucional. Significa dizer que o processo penal contemporâneo somente se legitima à medida que se democratizar e for devidamente constituído a partir da Constituição”. In LOPES JUNIOR, Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica – 3. ed. – São Paulo, 2017. p. 30.

[3] CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Processo penal e Constituição: princípios constitucionais do processo penal – 6. ed. rev. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2014. p. 102.

[4]: “[...] a presunção de inocência funciona como regra de tratamento do acusado ao longo do processo, não permitindo que ele seja equiparado ao culpado. É manifestação clara deste último sentido da presunção de inocência a vedação de prisões processuais automáticas ou obrigatórias. A presunção de inocência não veda, porém, toda e qualquer prisão no curso do processo. Desde que se trate de uma prisão com natureza cautelar, fundada em um juízo concreto de sua necessidade, e não em meras presunções abstratas de fuga, periculosidade e outras do mesmo gênero, a prisão será compatível com a presunção de inocência”. In BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal – 3. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 58.

[5]  Art. 5º. (omissis):

[...]

LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

[...].

[6] LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal – 14. Ed. – São Paulo: Saraiva, 2017. p. 436-437.

[7] MACHADO, Leonardo Marcondes. Projeto "anticrime" e Banco Nacional de Perfil Genético: nem tudo que reluz é ouro. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2019-mar-05/academia-policia-banco-nacional-perfil-genetico-nem-tudo-reluz-ouro?fbclid=IwAR0iDt_0NuFyRnOwzxGxB1HmAh200JcWmJB9qLKj6HdoieBgq90nlFj5vD0#[1]>. Acessado em 26/03/2019.

[8] LOPES JUNIOR, Aury. Op. Cit. p. 104.

[9] Haja vista que a Lei n. 12/564/2012 passou a dar a seguinte redação para o §2º, do art. 9º-A, da Lei n. 7.210/84: “A autoridade policial, federal ou estadual, poderá requerer ao juiz competente, no caso de inquérito instaurado, o acesso ao banco de dados de identificação de perfil genético”.

[10] TÁVORA, Nestor apud NICOLITT e WEHRS. Comentário ao anteprojeto de lei anticrime / Rosmar Rodrigues Alencar – Salvador: Ed. Juspodivm, 2019. p. 101 - 102. (e-book).

[11] LOPES JUNIOR, Aury. Op. Cit. p. 440.

[12] LOPES JUNIOR, Aury. Op. Cit, p. 440.

[13] Noticia publicada em 17/08/2009 e traduzida por Aury Lopes Jr., disponível em: <https://www.nytimes.com/2009/08/18/science/18dna.html>. Acessado em 24/03/2019.

[14] NICOLITT, André. Manual de processo penal – 7. ed. – Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018. p. 768.

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