Ou bem eu, ou bem os outros?

20/05/2020

Certas vidas, certos riscos. O sujeito, em condições adversas, põe-se a transitar pela estrada interditada. O provável acidente acontece. Desacordado, perde o controle do frágil e secreto equilíbrio em que se vinha mantendo entre as duas famílias que constituíra.

No quarto do hospital, exposto ao debate travado entre pessoas envolvidas na sua vida, acaba tendo que assumir, justificar e, por fim, defender a sua “causa”. “Causa” um tanto comum, mas comumente não sabida, ou, “não sabida”, porque convém “não saber”.

Enquanto A Descida do Monte Morgan se desenrola como comédia, um tema existencial prende a plateia: é possível ser fiel a si e aos outros ao mesmo tempo? A vida é a busca livre da felicidade ou o cumprimento compulsório dos compromissos rituais da Sociedade?

A mim, a peça me disse que acabamos nos traindo e nos transtornando por darmos demasiada atenção aos moralismos dominantes. A maioria da crítica vê o enredo como uma discussão sobre o individualismo; eu prefiro vê-lo como um discurso sobre a individualidade.

Todos temos vontades, peculiares elas mesmas ou as maneiras de vivê-las. Gostaríamos de realizá-las, mas nos deparamos com fórmulas sociais postas, às vezes por nós mesmos, como condição para cumpri-las, e acabamos forçando nossa vida a caber numa delas.

Lyman, o marido multiplicado, não fugiu da fórmula mais comum de viver o amor: a condição matrimonial; casou-se, assim como as pessoas em geral se casam. Mas multiplicou-a, amando duas mulheres, constituindo duas famílias, fazendo filhos nos dois lares.

Gozava a vida, mas o seu modo de ser feliz, ademais de ser oficialmente inexistente, era interditado pelos costumes, então estava certo que um dia aconteceria um encontro com uma baita confusão. Aconteceu. Um acidente pediu famílias em correria ao ente querido.

Por conta sua, mas à sua revelia, o acidentado, com dois objetos de amor e objeto do amor de duas, provocou uma reunião de três com intervenção de cinco, a contar filhos, ou de sete, a se somar advogado e enfermeira. Portanto, uma discussão ampliada de relação.

O marido tem que se explicar a todos; ele o faz sobre coisas que sabia. Mas as mulheres, Theodora e Leah, não sabiam de nada; elas têm, assim, que se explicar a si mesmas: afinal, que tipo de existência levavam, para nem ao menos saber com quem estavam vivendo?

Como soía acontecer às mulheres, sucedia a ambas: as suas vidas próprias eram menos as próprias vidas e mais a vida do marido comum. As duas, de início, claudicam, mas depois se aprofundam no saber o que são: uma era mulher do lar; a outra, negociante.

A peça baseia-se em texto de Arthur Miller (dramaturgo, 1915-2005; entre outros, escreveu Morte de um Caixeiro Viajante); sua instigante biografia está na internet. Reparto algumas das tantas boas reflexões que me fazem declarar gosto pelo espetáculo: “O que é o principal?”

O principal é a felicidade? A felicidade se escondia sob o não saber. Não se sabia que alguém convivia com dois alguéns; esse dessaber fazia a felicidade geral. Sabê-lo não mudaria os fatos, apenas se os cotejaria com as circunstâncias, ou as regras sociais.

Constrangidos ou hipócritas, de fato, entregues demasiado às circunstâncias, não fazemos a conta do que é o fundamental em nossa existência. “Só queria dizer em voz alta.” Não pensamos em voz alta, ainda que declaremos admiração à sinceridade alheia.

“Qual será o seu futuro arrependimento?” Deixaríamos de fazer alguma coisa se soubéssemos no que daria? Não há garantias, não é? “Eu decidi enrolar.” Não é incomum decidirmos não decidir, o que, em muitas ocasiões, pode ser mesmo a melhor decisão.

“Por que continuamos juntos depois que descobrimos com quem estamos?” Alguém, mesmo tendo o nosso querer, já não nos vale muito, a nosso próprio sentir, entretanto permanecemos, apesar de desenganados, vencidos e desrespeitados, num caso de amor.

“Se eu for perdoado, terei que passar o resto da vida de joelhos.” Perdões convertem-se em créditos sempre exigíveis. Exigíveis, todavia impagáveis: já porque não podemos pagá-los, já porque não se quer recebê-los. Todo perdoado carrega uma dívida pesada e inacabável.

É “impossível ser fiel a si e aos outros ao mesmo tempo e ainda ser feliz.” De fato, ninguém servirá plenamente, nem às tantas exigências que nos são feitas pelos outros, nem muito menos às que nos são feitas por nós próprios, que ninguém se dá basta de se pedir mais.

Isso porém não significa: ou eu, ou os outros. É, apenas, não ser tributário de formas infelizes de viver; quem alcançar ser feliz deve de sê-lo, “e não se desculpar por isso.” Desculpar-se é “não ter coragem de optar, deixar coisas para trás, seguir com o que tem vontade”.

“Fazer o que se quer é falta de lucidez?” Penso que o herói da trama não se preocupou em infligir seu querer, buscando “violar a lei da hipocrisia”. Sustento que ele, ainda que à margem da própria vontade, premido pelas circunstâncias do acidente, tão só a revogou.

 

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