Otimismo “do mercado” durante a pandemia: mais um sacrifício dos países marginais em detrimento do padrão de consumo dos países centrais no capitalismo financeirizado global  

21/06/2020

Coluna Stasis / Coordenadores Luiz Eduardo Cani e Sandro Luiz Bazzanella

O início da quarentena foi marcado por quedas nas bolsas de valores ao redor do globo. Um fenômeno aparentemente non sense ocorreu com o valor do dólar em relação às moedas dos países chamados de “subdesenvolvidos” e de “emergentes” – ainda que alguns destes, há um tempo, encontrem-se em situação submergente –, a cotação do dólar turismo atingiu R$ 6,63[i], em um período no qual os EUA já eram o principal epicentro do coronavírus no mundo.

Contudo, algo mudou nos últimos dias. Notícias recentes da bolsa de valores brasileira dão conta da “animação do mercado” por aqui. A bolsa de valores brasileira e o real tiveram as maiores altas nos últimos dias[ii]. Mas esse fenômeno também parece non sense, pois o Brasil se tornou o segundo país com mais infectados e mais mortos pelo coronavírus[iii].

Compreender o que está em jogo no sobe e desce das bolsas é imprescindível para que o non sense faça sentido. Quando nos referimos a dois fenômenos que parecem non sense deixamos claro que tratamos de mera aparência. Há muito sentido em ambos e, mais do que isso, há uma articulação – isto é, um encontro na diferença, uma ligação entre duas coisas distintas.

Dois fatores contribuem para a alta do valor do dólar – mas outros existem. Interessam-nos esses dois.

O primeiro é a posição central dos EUA na economia global que não é novidade. O PIB estadunidense é o maior do mundo. Grande parte da produção daquele país advém da indústria bélica[iv]. Aí o interesse incessante dos EUA pelas guerras e a participação frequente nos confrontos internacionais e nacionais – sempre a pretexto de “pacificar”. A riqueza acumulada e as possibilidades de consumo com essa riqueza é suficiente para colocar a maioria dos países em posição subserviente ao Tio Sam.

O segundo é a vinculação das moedas para definir o valor. Até 1971, o valor das moedas era atrelado ao valor do ouro (padrão-ouro), mas, para isso, era necessário utilizar uma moeda de referência para a conversão do ouro (moeda fiduciária). Entre 1870 e 1914, a moeda fiduciária foi a libra esterlina. Com a Primeira Guerra Mundial, a posição central do Reino Unido foi abalada, gerando divergência sobre a moeda fiduciária para o padrão-ouro. Esse problema foi solucionado apenas em julho de 1944, quando o gerenciamento econômico internacional foi estabelecido no Acordo Bretten Woods, em que o dólar foi eleito como moeda fiduciária. Em 15 de agosto de 1971, após a baixa nas reservas de dólar (menos de 10 bilhões) e os pedidos de resgate do ouro por parte de outros países, Richard Nixon rompeu o acordo firmado em Bretten Woods ao se recusar a converter o dólar em ouro. Desde então, o dólar se tornou uma moeda fiduciária sem lastro – ou, talvez, lastreada em si mesma[v].

Já a “alta” na bolsa de valores brasileira se deve a outro fator que se encontra com a “alta do dólar”: o sacrifício dos países marginalizados para prover recursos aos países centrais no capitalismo financeirizado global – e, sobretudo, aos conglomerados econômicos internacionais, com acionistas em todos os cantos do planeta.

Ainda que, entre ambos fenômenos exista uma tensão que oscila, de modo a que a alta de um pareça implicar na baixa do outro, como uma queda de braços, se o dólar foi convertido em moeda fiduciária de si mesma, nem sempre essa tensão está presente e tampouco há uma proporção entre altas e baixas.

Isso porque os países centrais no capitalismo globalizado há muito se utilizam dos baixos valores da matéria prima bruta, da mão de obra e dos valores ínfimos de indenizações em acidentes do trabalho, danos aos consumidores e outros danos inerentes ao chamado “risco da atividade econômica”, imputados e ocorridos nos países subdesenvolvidos e/ou subalternos. Dito de outro modo, para que um estadunidense adquira um aparelho eletrônico de última geração por algumas centenas de dólares – valor ínfimo para o padrão de renda de um estadunidense de classe média –, é necessário que a matéria prima bruta seja comercializada por países com moedas desvalorizadas, bem como os processos de produção e distribuição desses aparelhos sejam remunerados a baixo custo. Além disso, temos a mais valia (diferença entre o valor obtido na produção e o valor retribuído pelo trabalho dos funcionários).

A expropriação é a chave de leitura para compreender esse segundo fenômeno. Enquanto os países centrais no capitalismo estão com a circulação econômica restringida para prevenir a população contra o coronavírus, alguns países marginais continuam a trabalhar para produzir riquezas e fornecer as condições necessárias a manutenção do padrão de consumo das sociedades desenvolvidas. A posição central é obtida pelos países preferidos pelos detentores de grandes riquezas para fins residenciais, mas, hoje, decorre exclusivamente disso. A centralidade econômica já não é dos países, mas dos conglomerados multinacionais que monopolizam determinados segmentos econômicos, cujas ações são comercializadas nas bolsas de valores e as atividades econômicas são desempenhadas a partir da predação de países subdesenvolvidos.

A isso devemos somar o processo de financeirização: especulação nas bolsas de valores, venda de títulos de dívidas, comercialização de ações de empresas etc. Em outros termos, a volatilidade do capital (que pode ser deslocado pelas fronteiras a partir de operações feitas pela internet, de modo a ser evadido de um país para outro em poucos segundos) permite que um estadunidense envie o dinheiro para o Brasil, adquirindo ações de empresas nacionais, ao saber que essas empresas continuarão a operar. A produção “animará o mercado”, incrementando o valor das ações dessas empresas, mesmo que a produção não corresponda às expectativas “do mercado”.

Resultado disso tudo é a alta da bolsa de valores brasileira e a retomada do valor do real perante as demais moedas. Mas uma retomada ilusória e apenas parcial. Não se pode ignorar que o dólar continua a valer muito mais que o real. Tanto pelos dois fatores apontados para o primeiro fenômeno (alta do dólar), quanto porque parte da riqueza decorrente da especulação na bolsa de valores brasileira retorna para os EUA e é utilizada para consumo lá em vez de no Brasil. Assim que o lockdown for finalmente realizado aqui – ou que as taxas de infecção pelo novo coronavírus devastem a população brasileira – teremos o fenômeno inverso: a queda da bolsa de valores brasileira e do valor do real. Os ganhos obtidos no período de bonança não ficarão no Brasil, mas os prejuízos sim. “Socialização dos prejuízos e privatização dos lucros” é a fórmula do sucesso neoliberal – mas apenas para os detentores de grandes fortunas – que é também a fórmula do fracasso dos países marginalizados na dinâmica econômica capitalista neoliberal. Sintomática da subserviência do Brasil é a restrição da circulação de brasileiros em alguns países, iniciada pela proibição dos EUA[vi] e agora discutida também na União Europeia[vii]. Os brasileiros não são bem-vindos naqueles países, mas os produtos e serviços produzidos/fornecidos ao custo de milhares (talvez o custo ultrapasse a casa do milhão), são imprescindíveis.

Tudo isso não significa mais do que algo que qualquer pessoa brasileira, pertencente às classes desfavorecidas, sempre soube: as pessoas que vivem em condições precárias são sacrificadas diuturnamente para garantir a qualidade de vida (melhor seria chamar de privilégios de vida) dos mais abastados. É a perpetuação da herança da dinâmica entre a casa grande e a senzala, descrita na música Xibom bombom, do grupo As meninas: “É que o de cima sobe. E o de baixo desce.” Claro que existem exceções em cada país: as elites que se beneficiam dessa dinâmica de desvalorização cambial e exploração de recursos, indivíduos e territórios. Mas a exceção só explica a regra, como perceberam Walter Benjamin e Giorgio Agamben.

Sob tais perspectivas analíticas, a pandemia do coronavírus (Covid-19) escancara a insustentabilidade da dinâmica do Império (Negri e Hardt) do capital financeirizado ancorado nos países centrais, bem como em seus paraísos fiscais, sobre as economias, as riquezas naturais e as populações dos países periféricos e, subservientes a esta lógica. Ou, dito de outra forma, a pandemia demonstra de forma clarividente a dinâmica  neocolonial   implementada pela globalização econômica sob a égide do discurso neoliberal, de liberdade de mercado, de segurança jurídica aos investigadores, de redução do Estado à condição mínima diante das responsabilidades sociais, de privatização, de redução de direitos sociais, trabalhistas, ambientais, entre tantas outras variáveis deste discurso.

Ainda nesta direção, a pandemia demonstrou a ausência de solidariedade e de disposição internacional entre os próprios países centrais em compartilhar insumos hospitalares entre si, inclusive com ações autoritárias e grotescas dos EUA monopolizando por certo período a compra de máscaras e respiradores da China. Situação similar ocorre neste momento em relação a uma possível vacina ao Covid-19, demonstrando mais uma vez que a vida de populações pertencentes aos países centrais possui maior “valor”, que as populações de países subalternos.

Sob tais pressupostos, é possível compreender algumas das atitudes negacionistas em relação à pandemia, do capitão que está a muito tempo na reserva, e está à frente do executivo da república brasileira. Sua estratégia necropolítica frente à pandemia, de convencer os brasileiros de que se tratava de uma “gripezinha”, de que alguns iriam de fato morrer, mas que está todo mundo bem, pois um dia todos terão que morrer “e daí?”, vincula-se às exigências da economia financeirizada, do capital flutuante global em manter ativa a extração de mais valia desta nação verde-amarela subalterna. E talvez esta condição de capataz do capital financeiro internacional e nacional faz com que, apesar das barbaridades e das afrontas cotidianas à sociedade brasileira, aos poderes legislativo e executivo, este (des)governo se mantenha no poder.

O fato determinante e que, talvez, contribua para que se possa compreender definitivamente a necessidade de paralisar a máquina econômica-política e jurídica internacional e nacional, rotulada de globalização, que opera sob pressupostos financeirizados do Império, mantendo e aprofundando as desigualdades internacionais e nacionais circunscritas no interior dos países. Afinal, os “serviços essenciais”, necessários à manutenção da voracidade do capital global, são operados pelos corpos do lumpemproletariado[viii]. São os corpos destes trabalhadores que podem ser lançados na virulência do contágio, consumidos pelo vírus, cuja morte é de baixo custo, dispensa cuidados médicos suficientes, até mesmo a disponibilidade de respiradores e podem ser substituídos a baixíssimo custo pelo exército de reserva, cuja fila se estende de norte a sul do planeta, ou, no caso brasileiro, do Oiapoque ao Chuí.

 

Notas e Referências

[i] REDAÇÃO. Dólar turismo chega a R$ 6,63 em SP; euro vai a R$ 7,05, e libra, a R$ 8,09. UOL Economia, São Paulo, 14 maio 2020. Disponível em: <https://economia.uol.com.br/cotacoes/noticias/redacao/2020/05/14/dolar-turismo-libra-euro.htm>. Acesso em: 14 jan. 2020.

[ii] “O cenário de maior otimismo fez com que diversas casas de análise revisassem recentemente suas projeções para o Ibovespa para cima. Desde o final da semana passada, Goldman Sachs, Bank of America e XP Investimentos traçaram novos cenários, mais positivos, para o principal índice da bolsa brasileira no fim do ano.” RIZÉRIO, Lara. Bolsa brasileira e real têm as maiores altas do mundo em 30 dias: faz sentido?. InfoMoney, 11 jun. 2020. Disponível em: <https://www.infomoney.com.br/mercados/pib-em-baixa-ibovespa-e-projecoes-para-a-bolsa-em-alta-o-que-explica-essa-aparente-contradicao-no-mercado/>. Acesso: 14 jan. 2020.

[iii] SANDERS, Arthur. Brasil ultrapassa Reino Unido e é segundo país com mais mortes por covid-19. UOL, São Paulo, 12 jun. 2020. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/06/12/coronavirus-ministerio-da-saude-covid-19-brasil-casos-mortes-12-junho.htm>. Acesso em: 14 jan. 2020.

[iv] A indústria armamentista dos Estados Unidos vive um novo auge, refletido no aumento de cerca de 25% nas vendas de material militar, um crescimento ocasionado devido à escalada de conflitos no mundo e também pela política do presidente do país, Donald Trump, de fomentar a economia americana: SALIDO, Rafael. Vendas da indústria armamentista dos EUA disparam no 1º governo Trump. UOL Economia, 13 jan. 2018. Disponível em: <https://economia.uol.com.br/noticias/efe/2018/01/13/vendas-da-industria-armamentista-dos-eua-disparam-no-1-do-governo-trump.htm>. Acesso em: 14 jun. 2020.

[v] Sobre: DATHEIN, Ricardo. Sistema monetário internacional e globalização financeira nos sessenta anos de Bretten Woods. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, Rio de Janeiro, n. 16, pp. 51-73, 2005.

[vi] REDAÇÃO. EUA anunciam proibição de entrada de viajantes vindos do Brasil por causa de coronavírus. G1, 24 maio 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/05/24/eua-anunciam-proibicao-de-entrada-de-viajantes-vindos-do-brasil-por-causa-de-coronavirus.ghtml>. Acesso em: 14 jun. 2020.

[vii] PINTO, Ana Estela de Sousa. Europa vai barrar a entrada de brasileiros enquanto pandemia não estiver controlada. Folha, 11 jun. 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/06/europa-vai-barrar-a-entrada-de-brasileiros-enquanto-pandemia-nao-estiver-controlada.shtml>. Acesso em: 14 jun. 2020; MIRANDA, Giuliana. Portugal vai barrar brasileiros se UE determinar, diz primeiro-ministro. Folha, 15 jun. 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/06/portugal-vai-barrar-brasileiros-se-ue-determinar-diz-primeiro-ministro.shtml>. Acesso em: 15 jun. 2020.

[viii] “Sob o pretexto da instituição de uma sociedade beneficente, o lumpemproletariado parisiense foi organizado em seções secretas, sendo cada uma delas liderada por um agente bonapartista e tendo no topo um general bonapartista. Roués [rufiões] decadentes com meios de subsistência duvidosos e de origem duvidosa, rebentos arruinados e aventurescos da burguesia eram  ladeados por vagabundos, soldados exonerados, ex-presidiários, escravos fugidos das galeras, gatunos, trapaceiros, lazzaroni [lazarones], batedores de carteira, prestidigitadores, jogadores, maquereaux [cafetões], donos de bordel, carregadores, literatos, tocadores de realejo, trapeiros, amoladores de tesouras, funileiros, mendigos, em suma, toda essa massa indefinida, desestruturada e jogada de um lado para outro, que os franceses denominam la bohème [a boemia]; com esses elementos, que lhe eram afins, Bonaparte formou a base da Sociedade 10 de Dezembro.” MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 91.

 

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