Os Suspeitos

23/09/2015

Por Leonardo Isaac Yarochewsky - 23/09/2015

Atitude Suspeita

Sempre me intriga a notícia de que alguém foi preso “em atitude suspeita”. É uma frase cheia de significados. Existiriam atitudes inocentes e atitudes duvidosas diante da vida e das coisas e qualquer um de nós estaria sujeito a, distraidamente, assumir uma atitude que dá cadeia!

— Delegado, prendemos este cidadão em atitude suspeita.

— Suspeita.

— Compreendo. Bom trabalho, rapazes. E o que é que ele alega?

— Diz que não estava fazendo nada e protestou contra a prisão.

— Hmm. Suspeitíssimo. Se fosse inocente não teria medo de vir dar explicações.

— Mas eu não tenho o que explicar! Sou inocente!

— É o que todos dizem, meu caro. A sua situação é preta. Temos ordem de limpar a cidade de pessoas em atitudes suspeitas.

— Mas eu só estava esperando o ônibus!

— Ele fingia que estava esperando um ônibus, delegado. Foi o que despertou a nossa suspeita.

— Ah! Aposto que não havia nem uma parada de ônibus por perto. Como é que ele explicou isso?

— Havia uma parada sim, delegado. O que confirmou a nossa suspeita. Ele obviamente escolheu uma parada de ônibus para fingir que espera o ônibus sem despertar suspeita.

— E o cara-de-pau ainda se declara inocente! Quer dizer que passava ônibus, passava ônibus e ele ali fingindo que o próximo é que era o dele? A gente vê cada uma…

— Não senhor, delegado. No primeiro ônibus que apareceu ele ia subir, mas nós agarramos ele primeiro.

— Era o meu ônibus, o ônibus que eu pego todos os dias para ir pra casa! Sou inocente!

— É a segunda vez que o senhor se declara inocente, o que é muito suspeito. Se é mesmo inocente, por que insistir tanto que é?

— E se eu me declarar culpado, o senhor vai me considerar inocente?

—Claro que não. Nenhum inocente se declara culpado, mas todo culpado se declara inocente. Se o senhor é tão inocente assim, por que estava tentando fugir?

— Fugir, como?

— Fugir no ônibus. Quando foi preso.

— Mas eu não tentava fugir. Era o meu ônibus, o que eu tomo sempre!

— Ora, meu amigo. O senhor pensa que alguém aqui é criança? O senhor estava fingindo que esperava um ônibus, em atitude suspeita, quando suspeitou destes dois agentes da lei ao seu lado. Tentou fugir e…

— Foi isso mesmo. Isso mesmo! Tentei fugir deles.

— Ah, uma confissão!

— Porque eles estavam em atitude suspeita, como o delegado acaba de dizer.

— O quê? Pense bem no que o senhor está dizendo. O senhor acusa estes dois agentes da lei de estarem em atitude suspeita?

— Acuso. Estavam fingindo que esperavam um ônibus e na verdade estavam me vigiando. Suspeitei da atitude deles e tentei fugir!

— Delegado…

— Calem-se! A conversa agora é outra. Como é que vocês querem que o público nos respeite se nós também andamos por aí em atitude suspeita? Temos que dar o exemplo. O cidadão pode ir embora. Está solto. Quanto a vocês…

— Delegado, com todo o respeito, achamos que esta atitude, mandando soltar um suspeito que confessou estar em atitude suspeita é um pouco…

— Um pouco? Um pouco?

— Suspeita.

Luis Fernando Verissimo

No regime militar de exceção e ditatorial era rotineiro prender pessoas para “averiguação” ou simplesmente porque não portavam documentos de identidade ou qualquer outro que o valha. Cabia à polícia militar e até ao exército identificar e prender o “suspeito” ou aquele que estava em “atitude suspeita”.

Com o advento da Constituição da República de 1988 a prisão ficou restrita a duas hipóteses: i. flagrante delito; ii. por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente.

No mesmo sentido, o Código de Processo Penal (CPP), com a redação determinada pela Lei 12.403/201, proclama que: “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso de investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. (art. 283 do CPP).

Assim, toda e qualquer prisão que não seja em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade competente deve ser desde logo considerada ilegal e arbitrária. Destaca-se que as prisões em flagrante devem estar restritas às hipóteses legais previstas e com estrita observância dos princípios norteadores do processo penal democrático. Assim, de acordo com a CR a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre deve ser comunicada imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada (art. 5º, LXII da CR). Do mesmo modo, o preso deverá ser informado de seus direitos, inclusive o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado (art. 5º, LXIII da CR).

No que diz respeito às prisões cautelares e, portanto, provisórias, estão estas sujeitas à verificação da necessidade e proporcionalidade, além dos requisitos próprios de cada espécie e, mesmo assim, se não houver a possibilidade de sua substituição por outra medida cautelar menos gravosa. Salientando, também, que em razão do princípio constitucional da presunção de inocência as medidas cautelares pessoais não podem ter caráter de satisfatividade ou de antecipação da tutela penal antes do trânsito em julgado.

Portanto, em hipótese alguma, poderá ser admitida qualquer outra modalidade ou espécie de prisão que não as previstas na CR e no CPP. De tal modo, não há em nosso ordenamento jurídico a chamada prisão para “averiguação”, um resquício da ditadura militar.

Apesar de tudo, na cidade do Rio de Janeiro a Polícia Militar, sob o abrigo do secretário estadual de Segurança José Maria Beltrame, iniciou a apreensão de menores (crianças e adolescentes) dentro de ônibus que seguiam para orla da zona sul da capital carioca, sob o pretexto de que esses menores, nas palavras do próprio secretário, estariam em situação de “vulnerabilidade”, posto que são crianças e adolescentes que “viajam quilômetros até as praias sem dinheiro para se locomover, comer ou mesmo beber água, sem documentos e sem a companhia de responsáveis”.

O referido fato levou a Defensoria Pública a recorrer à Vara da Infância e da Juventude para obter no último dia 10, do juiz Pedro Henrique Alves, decisão determinando que a polícia somente pudesse conduzir adolescentes para delegacias em caso de flagrante de ato infracional.  A decisão do magistrado apenas faz valer o que proclama a Constituição da República e a Lei 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Ora, se para os maiores de 18 anos e imputáveis prevalecem as normas constitucionais e processuais penais no que se refere à prisão, com muito mais razão no caso em que se trata de menores de 18 anos e, portanto, inimputáveis.

Interessante observar que para o todo poderoso secretário de Segurança à apreensão dos menores é necessária, pois, segundo ele, estão esses menores em situação de vulnerabilidade. Mais uma razão, senhor secretário, para que estes menores (crianças e adolescentes) sejam protegidos pelo Estado e não aprisionados. Para muitos policiais, menores, pobres, sem camisa, sem dinheiro e vindo de tão longe para zona sul para irem à praia revelam “atitudes suspeitas” que justificam a apreensão desses menores potencialmente infratores.

Nos EUA, o então prefeito de Nova Iorque, Michael Bloomber, instituiu o programa conhecido como “stop and frisk" (pare e reviste), tática na qual a polícia pode parar, interrogar e revistar qualquer pessoa, em busca de armas etc. O sucessor de Bloomber, Bill de Blasio, cumprindo uma de suas promessas de campanha, reduziu o uso da política de "stop and frisk", marco da administração de seu antecessor.

O referido programa chegou a ser considerado inconstitucional por uma juiza Federal  por violar o direito das minorias ao visar, principalmente e sem justificativa, negros e latinos. A juíza havia pedido uma reforma do programa e o uso de câmeras nas abordagens. Segundo ela, das 4,4 milhões de revistas entre 2004 e 2012, 80% foram de negros ou hispânicos, obrigados a levantar os braços para serem revistados em público. Ainda, de acordo com a citada juíza 90% dos revistados são inocentes, constrangidos em vão. Contudo, a decisão inicial foi reformada por um tribunal de apelação. Posteriormente, o prefeito Blasio fez um acordo com entidades de defesa de direitos humanos para colocar câmeras e manter o programa.

Negros, hispânicos, muçulmanos, pobres, suburbanos, favelados, descamisados... Ora um, ora outro; ora lá, ora aqui... Muda-se o país, mas os “suspeitos” continuam os mesmos.

Belo Horizonte, Primavera de 2015.


Sem título-1 .

Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista e Professor de Direito Penal da PUC Minas.

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Imagem Ilustrativa do Post: Day 174 // Foto de: Okko Pyykkö // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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