Os ridículos embargos auriculares

28/12/2016

Por Amilton Bueno de Carvalho – 28/12/2016

Devemos falar apenas do que não podemos calar; e falar somente daquilo que ‘superamos’ – todo o resto é tagarelice, “literatura”, falta de disciplina” (Nietzsche, A Gaia Ciência, prólogo, 1, pg. 7, Cia. Das Letras, 2008, “Humano, Demasiado Humano, II”). 

O tema proposto pelo Alexandre Moraes da Rosa tem ocupado meu olhar faz muito tempo – bem mais de duas décadas. E me é recorrente.

Para mim, é uma das mais escandalosas disfunções do sistema – patologia alarmante que mantemos, conscientemente ou não, embora sejamos “democratas”, “dignos”, “sérios”, “honestos”, “de vanguarda”.

Indo ao ponto: fonte inesgotável de corrupção (principalmente daquela escondida: a corrupção afetiva) que é agudizadora da prepotência judicante e de insuportável rebaixamento da dignidade da advocacia, perpetuadora de sua subserviência.

E sobre isso quero falar já que não posso calar.

Imagino o grau de desconforto que alcança o advogado (evidente que estou falando daquele digno e não do repelente bajulador) que se obriga marcar hora, viajar, ficar numa fila de espera – quando tem sorte de ser recebido e não pelo assessor – e é atendido muitas vezes com profunda má vontade ou estupidez.

Imagino o magistrado – principalmente em cortes – que tem de ficar o dia inteiro atendendo advogados (no seu interesse legítimo de ser ouvido), num espetáculo moroso e inócuo, quanto o volume de trabalho é insuportável.

E por que e para que tudo isso?

Primeiro, seguindo o que Nietzsche falou lá em cima, reparto com vocês como superei isso, para que tudo não vire “tagarelice”. Mas, alerto, isso diz apenas comigo, com meu atuar, e nada mais – o filósofo André Baggio ensina: “o exemplo não prova nada além do próprio exemplo” –, nada metafísico aqui!

Trabalhando no gabinete (sim, amigos, ali é local de trabalho onde se deve comparecer) e me avisavam que advogado queria falar comigo. O papo de sempre: “bom dia, boa tarde, queira sentar, às suas ordens”. O ilustre advogado dizia sempre: “gostaria de falar sobre o processo tal”.

Sistematicamente eu dizia: “doutor se o senhor escreveu o que quer falar, não se preocupe que eu vou ler com atenção e se o senhor não escreveu não vou levar em conta porque agride todos os princípios processuais, ou seja, uma perda de tempo”. Resultado: “boa tarde, bom trabalho”. Sentia-me ofendido ao imaginar que alguém pudesse pensar que eu não fosse ler os processos.

Mas antes de tudo registro: raras vezes, raríssimas vezes, advogados vinham falar comigo sobre processos, algo assim como uma vez por ano e quase sempre por profissionais de fora do Estado.

O meu sentimento é que os advogados procuram os magistrados (normalmente apto a gerar mal-estar) com dupla finalidade:  que se julgue rápido e que se leia suas petições. Não querem nada mais do que isso. E como sempre li as petições e como sempre e sempre e sempre tive meu trabalho rigorosamente em dia, tanto que em momento de correição pelo CNJ encontraram apenas um processo no meu gabinete, não tinham motivo para falar comigo sobre processos.

Talvez aqui um ousado convite para magistrados “se livrarem” dos pedidos auriculares: apreciar as petições e julgar com rapidez (o tempo processual para mim e para o professor da USP Benedito Cerezo não é o razoável, mas o suportável para a parte, o que está muito além da mera razoabilidade porque estou falando do processos criminais). Acho que assim todos seremos “felizes”.

Mas, e aqui o que me interessa: penso que o costume dos ditos embargos auriculares (vejam, já tem até nome: “vou despachar com o magistrado”) é gerador de patologia insuportável:

Um -  é costume que desmoraliza o profissional digno, como antes referi. Humilha porque se vai pedir “favor” a quem tem o dever de decidir e de decidir logo. Não há racionalidade que sustente esse momento insuportável – claro que sei que muitas vezes é o que se tem de fazer:  tentar que o burocrata leia o que se escreveu e que julgue rápido, tudo porque a liberdade de uma pessoa está na berlinda, com toda a dor da espera que não alcança o burocrata: como regra, ele não suporta empatia.

Dois – tal costume agudiza a prepotência e a arrogância do burocrata. Ora, se um se humilha, logo o outro pensa se encontrar acima dele. E o advogado precisa, seu cliente está sofrendo, ele necessita de resposta. Nesse quadro, o burocrata se sente teificado e quanto mais, digamos, importante é o profissional, mais a prepotência se faz presente, e, não estou sendo contraditório, quanto menos importante o profissional (e logo, seu cliente), mais o burocrata se sente no direito de humilhar.

Três- é fonte insuportável de eventual corrupção: não há publicidade, não há fiscalização da parte contrária, tudo se faz no segredo. O que ali se passa ninguém sabe, ninguém vê, ninguém pode ver.  Os convites para “atividades” menos nobres são muito possíveis, mesmo porque não há ninguém para testemunhar o que ali se passou, repito. Não, não, não estou dizendo que juízes e advogados são corruptos (em mais de 30 anos de magistratura, ninguém, absolutamente ninguém, sequer tentou me corromper), mas sim que os atos do poder não podem ocorrer às escondidas, a publicidade é condição da democracia!

Notem: não estou falando tão-só da corrupção financeira, mas também, e muito também, da corrupção afetiva, aquela que trata de proximidade entre “irmãos”, daquela revestida de “sensualidade”, de fofocas, da troca de favores, de vinganças – tudo até ao infinito de possibilidades asquerosas.

Quarto – Isso é tão cruel que já se está criando nova “profissão”: o execrável lobista – aquela pessoa que se especializa em aproximar parte e julgador, sob o nome de advocacia superior: aquele amiguinho do poder, o bajulador profissional, o asqueroso indivíduo que presta “favores” – um pulha! E o terrível termina por envolver magistrados dignos em suas promessas até para se sustentar no “mercado”!

O que fazer deve ser a pergunta que o eventual leitor provavelmente esteja se fazendo, enfim seu cliente -  e por extensão o advogado que incorpora as dores dele - está a sofrer agressivo suplício gótico.

Por certo não sei a resposta (alguém saberia?), mesmo porque penso que tudo se dará por construção coletiva (não há criação isolada) daqueles que lutam pela radicalização da dignidade tanto da magistratura quanto da advocacia. A não-clareza disso faz com que alguns reduzidos intelectualmente busquem superar o drama judicial com a criminalização da advocacia, da magistratura e do ministério público, inclusive com geniais soluções como a adoção de crimes de responsabilidade.

Mas, o certo é que só poderemos encontrar soluções superadoras quando perdermos a ilusão do que agora se apresenta como resposta. É a insatisfação do e com o agora, com o que-se-passa e o desejo sincero e criativo de superá-lo: o não-ao-que-agora-ocorre. Na suma:  escandalizar-se com os embargos de orelha.

Enquanto estivermos passivos, contentes, amorfos, coniventes, jamais encontraremos respostas – para superar, necessário é o asco ao que está posto e a criatividade dos que ambicionam a construção de um amanhã repleto de dignidade e destruidor do ontem castrador.

Aliás, Nietzsche falou sobre isso: “Pensamento básico: precisamos tomar o futuro como padrão determinante para todas as nossas avaliações – e não procurar atrás de nós as leis da nossa ação! (Fragmentos do Espólio, verão-outono 1884, p. 180, ed. UNB).

Necessitamos, portanto, levantar hipóteses, que ao receber luzes das novas possibilidades criativas, possam gerar o novo superador.

Heidegger, ao estudar Nietzsche, ensina: “A possibilidade questionadora e a ser transpassada de maneira questionadora é enquanto possibilidade mais poderosa do que qualquer coisa real e factual. O possível gera outras possibilidades, um possível provoca como tal necessariamente o aparecimento de outras possibilidades ao seu lado. O possível de um pensamento transpõe para o interior de possibilidades de pensá-lo dessa ou dessa maneira, de nos mantermos nele dessa maneira ou de outra” (Martin Heidegger, in “Nietzsche”, primeiro volume, p.-304, Forense Universitária, 2010).

Então,

(a) no que diz com a morosidade o alarme se dá basicamente quanto se cuida de réus presos, embora se saiba que toda e qualquer demora no processo-crime é escandalosa: como viver sob a ponta de adaga processual sobre a cabeça?

Penso que aqui não se pode transigir: tenha-se a coragem (muito se repete que a advocacia criminal não é para covardes e de outro lado Rui Barbosa dizia que “não há salvação para o juiz covarde”) de peticionar firme e insistentemente que se aprecie os pedidos, que se promova a instrução, que se julgue, ao ponto de não se dar descanso ao burocrata renitente, ao ponto de se lhe impor constrangimento.

Ainda há, e deve ser utilizado, o remédio da correição parcial ou de representação junto à Corregedoria (dirão, “mas não resolve”; direi, resolve porque constrange o coator e também constrange o agente administrativo). Ainda há remédio de reclamação ao CNJ. Mais, a denúncia pública, via meios de comunicação, com a indicação direta do nome do coator (dizer que a morosidade é do judiciário é nada dizer: se diz sim quando o nome do burocrata é apontado).

E tudo isso pode ser feito em relação ao segundo grau, ao terceiro grau e à corte maior: pedir que julgue (melhor dito: impor que se julgue), representar contra o agente, denunciar perante a sociedade! Aliás, isso terá maior efeito do que eventual crime de responsabilidade hábil a proteção do corpo pela classe que julgará e servirá para perseguir os criativos e não-bajuladores das cortes superiores, os dóceis ao poder.

Ainda se poderá pensar em mandado de segurança contra o Estado para que se mande julgar imediatamente sob pena de pagamento de multa indenizatória.

Mas, acima de tudo, penso que as entidades de classe poderiam (e deveriam) tomar essas medidas para proteger o cidadão individualizado e seu advogado. Assim, a OAB, principalmente, deveria buscar proteger aqueles que têm seus direitos sonegados pela morosidade dos processos crimes – é a defesa das garantias dos cidadãos. Por outro lado, as entidades de juízes e de promotores, que mereçam esse status, poderiam, também, na proteção dos direitos do cidadão (para isso é que deveriam existir), tomar medidas contra as tais “maçãs fétidas” que causam constrangimento à grande maioria dos profissionais dignos.

e,

(b) mas o caos – aí a espetacular disfunção do sistema processual penal – está no segundo fundamento dos ditos embargos auriculares: como impor que o burocrata de plantão leia o conteúdo defensivo?

Sabe-se ou se imagina que pode ocorrer (ocorre?) que determinado cidadão seja julgado em todos os graus – desde o singular o supremo – sem que juiz algum tenha prolatado decisão: o acusado é condenado por sentença transitada em julgado e sem o olhar de algum magistrado máxime se ele é um dos tantos esgualepados. Trágico, ridículo, doentio, na suma, delicadamente: cafajestice processual!

Na verdade, podemos forçar que as decisões ocorram (e sempre deverão ocorrer mesmo que isso leve anos com acusados presos), mas não encontro no plano teórico – ajudem-me os que encontrarem – instrumento que obrigue o magistrado a ler as alegações (ou a prova). Notem que estou falando simplesmente em ler, não ouso sequer ir adiante: que leia com atenção, com boa vontade, querendo crer que o acusado possa ter razão (presumir sua inocência). Nem estou ousando sonhar que o magistrado “suporte” ouvir verdades para além das verdades que ele tem estancadas no seu imaginário, que não suporta outra além dessas; nem ouso que ele tenha condições intelectuais de entender a dimensão do que se coloca em debate...

Parece, então, que muitas vezes os tais embargos de orelha devem ser dirigidos ao efetivo leitor que não é aquele com as garantias da magistratura e que se sujeitou a concurso, mas sim alguém, muitas vezes, selecionado entre amiguinhos – e idiota normalmente tem idiotas como amigos! E estamos a conversar, querido eventual leitor, sobre processos criminais!

Falarão alguns que o “excesso de trabalho” impossibilita a análise de todos os feitos e em toda sua extensão (sabemos que análise da prova exige olhar único e não pode ser terceirizada). Ora, dane-se o excesso de trabalho: estamos falando de gente a ser condenada à morte! Ou se assuma que juízes não são necessários! Criem-se varas e vagas criminais!

Talvez, aqui já não é mais sonho, mas talvez delírio, tenhamos que trabalhar em noutro campo: o da ética - ajudar os magistrados a serem magistrados!

Aqui reside, desde meu olhar, talvez o maior argumento abolicionista: não há como salvar a decisão criminal, mas isso é conversa para outro momento.

Penso que, assim, poderemos superar os medievais embargos de ouvido, fonte de elitismo, compadrio, corrupção, arrogância, proteção indevida e basicamente excluidora dos pobres porquanto desse espetáculo a Defensoria, felizmente, é alijada: ousa proteger os esgualepados.

Finalmente, há exceções, evidente que há, por certo exceções sempre estarão presentes, sempre existirão, até penso, honestamente, que a grande maioria não se enquadra no que estou tratando, mas o que quero não-silenciar é o mal que gera – pode gerar, pode criar fantasias – essa coisa repelente que se resolveu chamar de embargos auriculares: fruto do cochicho, do escondido, da não-democracia!

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Zona sul de Porto Alegre, véspera do natal de 2016!


amilton-bueno-de-carvalhoAmilton Bueno de Carvalho é Doutor Honoris Causa pela Faculdade de Ciências Sociais de Florianópolis (CESUSC). Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Membro do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, da Associação dos Juízes para a Democracia e do Conselho Científico do Instituto Latinoamericano de Altos Estudos Colômbia. Professor Visitante em cursos de pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal. Autor e co-autor de diversos livros.


Imagem Ilustrativa do Post: The Whisper // Foto de: Brian Smithson // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/smithser/3735204251

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/2.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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