Por Priscilla Placha Sá - 10/04/2015
A história-ficcional (críticas sobre o fato de que o filme foi divulgado como história real num golpe de publicidade) contada no filme Sleepers - A Vingança Adormercida[1] parece evocar à primeira vista certo “drama clichê” em torno da perspectiva da vingança protagonizada por “gentes” injustiçadas em casos “excepcionais” pelo sistema de justiça criminal, ainda que pelo sistema penal juvenil ou de punição para crianças e adolescentes.
Talvez um espectador menos atento se deixasse levar até mesmo por considerações a respeito da necessidade de fazer valer ditos populares e até mesmo filosóficos como “educai os meninos e não será necessário punir os homens”. Talvez a “vingança” que Sleepers faça evidenciar seja aquela que é – como é, em muitos casos – a vingança protagonizada pelo Estado contra determinados grupos ou pessoas por ser quem são: uma violência contra pessoas e não, como se quer fazer crer, contra atos praticados por pessoas.
Particularmente, o que Sleepers pode evocar é o lugar-instituição (panóptica ou total) que é o “Reformatório Wilkinson”: lugar de guardas cruéis, de dias longos, de privações, de abusos, de medos, de violências. E quantas violências: sobre o corpo e sobre a alma de meninos; meninos frágeis não apenas em sua compleição física (em muitos casos), mas fragilizados pela condição em que são colocados. De sujeitos a objetos. Alguns nunca foram sujeitos senão sujeitados a uma lei do domínio, da força e do poder. Se o filme em si narra uma história-ficcional o lugar-instituição ocupa a condição do real.
Os “Reformatórios Wilkinson” existem ainda aos montes no Brasil, representados pelas instituições de aprisionamento (quem dera se fosse para medidas sócio-educativas ou protetivas) de crianças e adolescentes; párias sociais para quem a pátria nunca foi mãe e sim a madrasta mais cruel idealizada pelos únicos desenhos infantis que, em verdade, assistiram sem tela alguma de cinema.
Nós temos os nossos “Reformatórios Wilkinson” e as nossas películas que nos contam casos-reais de como tratamos nossas crianças e adolescentes. Vamos a elas:
I) a história-real de Pixote – A lei do mais fraco[2], onde o “brilhantismo” dos pequenos “atores” era tão notável porque representavam a sua própria vida. Pixote e os demais meninos são colocados em certa ocasião num ônibus para serem arremessados numa ribanceira, não sem antes cachorros famintos serem atiçados para dentro do ônibus para morder, para comer e para matar. Ah, se não fossem as prostitutas a salvá-los, as carolas os teriam deixado perecer, pois que eram marginais. Depois, Pixote (em outro filme: Quem matou Pixote[3]) volta à cena. Cena de sua vida-real porque – mesmo com o sucesso do primeiro filme – e com todo o empenho, inclusive de Ziraldo para lhe arranjar um emprego, faltava-lhe um dado essencial para ser ator: saber ler. Nada de emprego, vida-nua na rua, assalto, morto pela polícia “em confronto armado” (!?).
II) as histórias-reais de Juízo – A lei do maior sobre o menor[4] em que são contadas diversas histórias de meninos e meninas, sem eira, nem beira. Gente sem nenhum olhar e sem nenhum registro perante o Estado, a não ser o registro criminal. Tragédias em sequencia, institucionalizando pequenas pessoas que já viraram gente grande, antes mesmo de crescer. Pequenos furtos, “mulas” do tráfico , para um troco aqui e outro ali; comprar um doce; um tênis. Assim como as filhas e os filhos da gente.
III) nas histórias-reais de Em nome da razão – uma história sobre os porões da loucura[5] aparece um dado que apenas piora a situação de meninos-e-meninas que é o fato de serem tidos como loucos e loucas. Pior: loucura e pobreza; ou loucura, pobreza e pertencendo à “negritude”. O manicômio de Barbacena, no qual se passa essa história de muitas vidas, produziu (entre 1930-1980) muitas mortes, aproximadamente 60.000, como nos conta Daniela Arbex em Holocausto Brasileiro[6]. Do trágico é ver como se escolhia quem ia morrer: colocando ao lado do prato de comida uma banana podre. Eis o sinal.
E a gente podia contar de outros lugares, que falam de histórias-ficção (ou nem tanto), tal e qual em Como nascem os Anjos[7] onde o menino negro, favelado, tem o apelido de Japa e é amigo de Branquinha, uma adolescente de 13 anos que quer ser a “dona-do-morro” Santa Marta, e já é “casada” com um traficante de quase 40 anos, que é portador de sofrimento mental.
Há também a literatura a nos contar essas histórias-reais, histórias de sonho, sonhos iguais aos que gente-pequena deve ter. Estão ali contadas nas narrativas literárias como Capitães de Areia, de Jorge Amado, ou em O Ateneu, de Raul Pompéia, ou na narrativa-denúncia, de Marisa Feffermann, em Vidas Arriscadas sobre os sonhos de meninos e meninas que talvez nem os Reformatórios Wilkinson queiram:
Diz um:
Cadê o meu presente, o meu abraço, a bicicleta que eu sonhei não vem, com laço não tem dono, nem alegria, é dia das crianças, mas não para a periferia. Queria fugir daqui, é impossível, não queria ver lágrimas, é difícil, meus exemplos de vitória estão todos na esquina de Tempra, de Golf vendendo cocaína, bem melhor do que a minha mãe no pé da cruz (Jovem 6).
Conta outro:
Ah, nós se divertimos, um bolo de dinheiro no bolso, ia para tudo que é lugar, fomos até para o Guarujá, lá para o aquário, não tem o aquário lá? Vixi, se divertimo, vi coisa que nunca tinha visto na minha vida lá dentro, o maior barato, divertimo bem. Roubamos moto, moto zero na praia para fazer um rolê. As gatinha tudo, nossa, eu acho que é sonho, os cara, vixi, vamos curtir, quando for a noite nós, é um sonho, a noite acaba tudo, ganhamos dinheiro, ganhamos bastante coisa (Jovem 1).[8]
O fenômeno da institucionalização, particularmente das crianças e dos adolescentes, tem contornos muito implicados na própria história colonial, cujo modelo patriarcal estruturado em casamentos arranjados tirava os filhos “mestiços” das escravas usadas pelos homens brancos e colocava-os aos cuidados das freiras, ou das santas casas de misericórdia que recebiam os filhos-tirados de moças de família que precisavam de um bom casamento ou mesmo as “rodas dos expostos”, onde se depositavam na calada da noite os filhos tidos como expúrios ou indesejados ou proibidos.
Os “Reformatórios Wilkinson já” tiveram e têm muitas unidades por aqui.
Mas o Código de Menores, especialmente, durante o período da Ditadura Militar, permitiu uma massiva institucionalização de meninos e meninas pobres sob o argumento da “situação de risco” (aquele que causava risco para terceiros, para a sociedade ou para si mesmo). Teria dito um penalista, em uma visita a um desses “Reformatórios Wilkinson”: tem cara de presídio, tem cheiro de presídio e presídio parece ser. Estavam em cena os “Reformatórios Wilkinson” com a paradoxal denominação de FEBEM (Fundação Estadual de Bem-estar do Menor) e de FUNABEM (Fundação Nacional de Bem-estar do Menor).
A própria denominação “menor” imbricada em denotação pejorativa faz com que se presuma já uma potência do “maior” em face do “menor”; como se diria em Pixote do “mais forte” em relação ao “mais fraco.
Vera Malaguti Batista[9] chega a narrar os tipos de perguntas que se fazia a adolescentes (meninos e meninas) que se pretendia institucionalizar pelo tal “risco”. Aos meninos se indagava: jogavam capoeira ou falavam palavras de baixo calão; às meninas: trabalhavam como damas de companhia ou faziam serviços domésticos.
Mas já na Ditadura Militar havia uma “solução final” para esses meninos e essas meninas: os grupos de extermínio; solução que transpôs a Constituição de 1988, e chegou até os nossos dias. A Comissão Parlamentar de Inquéritos instalada no início da década de 90 apurou que somente no Rio de Janeiro havia mais de 180 grupos de extermínio que matavam “meninos de rua”. A Chacina da Candelária é só um exemplo emblemático das “políticas públicas” que ironicamente deixaram os “Reformatórios Wilkinson” em segundo plano.
Os resultados dessa política de extermínio, podem ser vistos pelos dados indicados por Julio Jacobo Waiselfisz no “Mapa da Violência 2012 – Crianças e Adolescentes do Brasil”[10] ao tratar do índice alarmante de homicídios – “um verdadeiro calcanhar de Aquilles nos Direitos Humanos”[11] – praticado contra crianças e adolescentes, considerando a faixa entre 0 e 19 anos de idade. Tornou-se a principal causa morte desse grupo populacional[12]. Mas registra sua preocupação com a subnotificação dos casos.[13] Esse “Mapa”, em especial, revelou uma questão emblemática: uma violência estrutural que faz com que a primeira causa de morte nessa faixa etária seja a de causas externas, somando mais de 53%, onde 22,5% é composta por homicídios. O próximo grupo de causas de morte inclui os tumores e as neoplasias que sequer chegam a 8%.[14]
No ranking mundial (os dados mais atualizados são os de 2009, usados na pesquisa), na faixa geral da população jovem, o Brasil está em 4o lugar, com 13 mortes em 100.000 crianças e adolescentes (antecedido por El Salvador, Venezuela e Trinidad e Tobago)[15]. Na faixa entre 10 e 14 anos de idade, mantém no 4o lugar, com 3,4 mortes por 100.000 crianças e adolescentes na mesma faixa. Nas mortes de crianças com até 9 anos, os pais aparecem como os principais causadores, nas dos adolescentes entre 15 e 19 – onde o número de homicídios chega à elevada cifra de 44,2 – os autores, em regra, são desconhecidos.[16] Isso suscita a possibilidade de que tais mortes sejam decorrência de conflitos na rua, execuções sumárias de milícias e dos grupos criminosos, até mesmo fruto de confrontos com a polícia.
Nessa categoria, o Paraná está no 15o. lugar em número de homicídios, Curitiba no 8o. lugar.[17] Dentre os 100 municípios no Brasil com as maiores taxas de homicídio de crianças e adolescentes e cuja população tem 20 mil ou mais crianças e adolescentes, 13 estão no Paraná.
Talvez a percepção míope, quem sabe propiciada pela linguagem sutil ou mesmo doce do Estatuto da Criança e do Adolescente que fala em ato infracional e não em crime; em medida socioeducativa e não em pena tenha feito com que muitos acreditassem e até fizessem coro numa percepção de senso comum de que “o ECA não dá nada”. Mas ainda se coloca centenas de adolescentes nos “Reformatórios Wilkinson”, lugares que produzem as mesmas violências pelas quais Michael, John, Tommy e Shakes passaram; violência física, moral, sexual; privação de comida, de sentido, de dignidade.
Emblemático é que, como se viu, os “Reformatórios Wilkinson” não parecem reais o suficiente para o trato desses pequenos e dessas pequenas, que convivem com a opressão e com o completo acinzentamento desde cedo; chamados desde Lombroso de “delinquentes disfarçados”. É só ver o discurso de ódio planificado por muitos em tempo de PEC 171/93.
Em meio ao trágico debate sobre a redução da maioridade, uma mãe falou, no Complexo do Alemão: “Não precisamos reduzir a maioridade penal, aqui nossos filhos já nasceram sentenciados”.[18] Pode se convocar os cemitérios como o seu lugar-de- destino (desprezando até mesmo os “Reformatórios Wilkinson”). Não é difícil que as violências encurtem esse trajeto, com balas perdidas (ou seriam certeiras?). Apenas, é claro, o trágico caminho de algumas crianças e de alguns adolescentes.
Notas e Referências:
[1] Sleepers – A vingança Adormecida. Direção: Barry Levinson. Estados Unidos da América. 1996. Drama. VHS (152 min). Colorido.
[2] Pixote, a lei do mais fraco. Direção: Héctor Babenco. Brasil. 1981. Drama. VHS (125 min). Colorido.
[3] Quem matou Pixote? Direção: José Joffily. Brasil. 1996. Drama. VHS (117 min). Colorido.
[4] Juízo – A lei do maior contra o menor. Direção: Maria Augusta Ramos. Brasil. 2007. Documentário. DVD (90 min). Colorido.
[5] Em nome da razão – um filme sobre os porões da loucura. Direção: Helvécio Ratton. Brasil. 1979. Documentário. VHS (24 min). Preto e branco.
[6] ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro. Vida, Genocídio e 60 Mil Mortes no Maior Hospício do Brasil. São Paulo: Geração, 2013.
[7] Como nascem os anjos. Direção: Murilo Salles. Brasil. 1997. Drama. VHS (100 min). Colorido.
[8] FEFFERMANN, Marisa. Vidas arriscadas: o cotidiano dos jovens trabalhadores do tráfico. Petrópolis, RJ: Ed, Vozes, 2006, p. 328.
[9] BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis – drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
[10] Disponível em <http://www.mapadaviolencia.org.br/mapa2012_crianca.php>. Acesso em: 05 mai. 2013.
[11] Disponível em <http://www.mapadaviolencia.org.br/mapa2012_crianca.php>. Acesso em: 05 mai. 2013, p. 47.
[12] Disponível em <http://www.mapadaviolencia.org.br/mapa2012_crianca.php>. Acesso em: 05 mai. 2013, p. 17.
[13] Disponível em <http://www.mapadaviolencia.org.br/mapa2012_crianca.php>. Acesso em: 05 mai. 2013, p. 5.
[14] Disponível em <http://www.mapadaviolencia.org.br/mapa2012_crianca.php>. Acesso em: 05 mai. 2013, p. 8.
[15] Disponível em <http://www.mapadaviolencia.org.br/mapa2012_crianca.php>. Acesso em: 05 mai. 2013, p. 58.
[16] Disponível em <http://www.mapadaviolencia.org.br/mapa2012_crianca.php>. Acesso em: 05 mai. 2013, p. 67.
[17] Disponível em <http://www.mapadaviolencia.org.br/mapa2012_crianca.php>. Acesso em: 05 mai. 2013, p. 53; 56.
[18] Cf. post em: https://pt-br.facebook.com/CriminologiaCautelar.
Priscilla Placha Sá é Professora Adjunta de Direito Penal da PUCPR e da UFPR. Doutora em Direito do Estado pela UFPR. Vice-Chefe de Departamento de Direito Penal e Processual Penal da UFPR. Advogada criminal. Presidente da Comissão da Advocacia Criminal da OAB/PR.
Imagem Ilustrativa do Post: You Talkin' To Me?// Foto de: Dalibor Tomic // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/dalibort82/15470694135 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode