Por Jorge Coutinho Paschoal – 19/05/2016
No processo penal, o tratamento e a teorização quanto aos fatos jurídicos em sentido estrito (decorrentes do caso fortuito e/ou da força maior) podem ter uma profícua aplicação prática, sobretudo naquelas hipóteses em que, durante a realização de um meio de investigação de prova (interceptação telefônica, busca e apreensão), se obtém outra prova, seja com relação a uma terceira pessoa, seja em relação a outro crime.
Trata-se do que a doutrina denomina por encontros fortuitos, ou casuais, dentro do processo penal. Uma parte dos estudiosos questiona a validade desses encontros, sob o argumento de que seriam encontros espúrios. No ponto, não há razão para não se admiti-los ou para não se validá-los, seja do ponto de vista técnico, seja da própria justiça em si, desde que satisfeitos, obviamente, certos regramentos e balizas.
O fato jurídico em sentido estrito, especialmente o pautado em um acontecimento imprevisível, isto é, um evento fortuito, do ponto de vista jurídico, a rigor, apenas existe ou não: ou seja, é lição básica em Direito que não se discute de sua (in) validade e/ou (in) eficácia jurídica, conforme teorização sedimentada em âmbito de Teoria Geral do Direito em sentido amplo. Embora, por óbvio, o processo penal ostente suas particularidades, sendo que nem tudo pode ser aplicado nesta seara, não é pecado admitir em seu âmago construções de Teoria Geral do Direito.
Seria chocante, por exemplo, ante a descoberta fortuita da premeditação de um crime ou de um assassinato, cuja ciência se teve em razão de uma interceptação telefônica para apurar outro fato, que a autoridade nada pudesse fazer para evitar o delito.
Ainda que a maioria das pessoas concorde que a autoridade deva fazer algo para evitar o evento morte, uma boa parte dos doutrinadores se questiona se a prova poderia ser utilizada para a persecução penal. Pergunta-se: por que não se poderia fazer uso dessa prova (ou desse elemento, sem se tratando de fase preliminar) para processar e punir o crime?[1] Afinal, situações análogas ocorrem todos os dias, sem a culpa dos agentes estatais, como a situação consubstanciada na diligência da autoridade que, ao cumprir uma ordem judicial de busca e apreensão, encontra drogas ilícitas, armas (uso restrito) ou, eventualmente, até fotos de crianças com alguma conotação sexual, o que pode servir para investigar um suposto crime.
Na doutrina, vem prevalecendo o entendimento moderado de que, para a validade da descoberta casual, é ao menos necessária a conexão/continência entre os supostos crimes (entre o originariamente investigado e o fortuitamente descoberto), sendo que, em regra, todos estes eventos devem estar catalogados no rol de crimes previstos e que são admitidos para o meio investigativo específico[2].
É certo que, em coerência com a Teoria Geral do Direito e com a Teoria dos Fatos Jurídicos, há séculos consagrada, não haveria que se fazer essa restrição quanto à validade/eficácia dos encontros fortuitos, como entende parte da doutrina[3]. Afinal, pela Teoria Geral, não se questiona da validade do fortuito. Assim, tendo ocorrido um fato jurídico em sentido estrito, em bom rigor, ele é, automática e inteiramente, válido e eficaz. Embora sedutor o argumento, mais recentemente a posição intermediária, que admite a validade dos encontros casuais no processo penal, desde que balizada com regramentos, tem nos parecido mais ponderada, devendo ser aceita.
Não se pense, contudo, que, diante da admissão dos encontros fortuitos/casuais no processo penal, nunca seja possível questionar a sua validade.
Deverá ser perquirido se, anteriormente, o meio então empregado foi válido e legítimo (sobretudo em termos de regularidade no modo de execução tomado pela autoridade) e eficaz. Deverá ser verificado se a autoridade não agiu com abuso ou mesmo má-fé[4].
Por exemplo, deverá ser analisado se ela não pediu uma intercepção telefônica para apurar um fato sabidamente inexistente, só para fazer uma devassa nas ligações do sujeito ou mesmo se, durante uma busca e apreensão, o agente não se aproveitou da oportunidade para vasculhar, sem necessidade, toda a casa do sujeito[5].
Deverá também ser avaliado se não foram “plantadas” provas (o que não é algo difícil de ocorrer, frise-se), pois, nesses casos, evidentemente, não terá havido um encontro fortuito, mas sim um encontro forjado, tratando-se, em realidade, de um crime cometido pela autoridade.
A invalidade originária do meio de investigação utilizado contaminará a validade de todos os demais elementos encontrados (o que se aplica também ao elemento fortuito obtido, que acaba sendo invalidado por derivação).
Portanto, os encontros fortuitos, ou casuais, dentro do processo penal, têm validade e eficácia ínsitas à sua qualificação jurídica como fatos jurídicos processuais em sentido estrito, desde que sejam observadas certas balizas e satisfeitos alguns regramentos. Serão, de todo modo, totalmente imprestáveis, caso estejam afetados pela invalidade do ato anterior (originário).
Notas e Referências:
[1] Alguns Autores, apesar de não concordarem que se poderia conferir validade a todo e qualquer tipo de encontro fortuito de prova, pretendem dar uma solução intermediária para determinados casos, afirmando que, em vez de valorar o elemento encontrado como prova, ele deveria ser valorado como um indício. Nesse sentido: “em sendo a interceptação decorrente de ordem judicial e, através dela, for descoberto, por exemplo, um homicídio (fora da cadeia de fatos e autores investigados), não parece que esta prova, de pronto, possa ser inquinada como ilícita. Nesse caso, é evidente que o autor desse homicídio não poderá ser processado com base nessa prova. Será ela, tão-somente, conformador de um indício (fumus boni iuris) para, por exemplo, fundamentar um (novo) pedido de interceptação que diga respeito a esse fato” (STRECK, Lenio Luiz. As interceptações telefônicas e os direitos fundamentais: constituição, cidadania, violência: a lei 9.296/96 e seus reflexos penais e processuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 125/126). Pensamos que ou se confere eficácia jurídica à prova, ou não (ou tudo ou nada), não sendo possível se creditar “meia eficácia” para se transfigurar uma prova em um “indício” (conceitos distintos), com perda desnecessária de tempo e de recursos.
[2] Na doutrina: AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Provas ilícitas: interceptações telefônicas, ambientais e gravações clandestinas. São Paulo: RT, 2010, p. 230-231; GOMES, Luiz Flávio. “Interceptação telefônica e encontro fortuito de outros fatos”. Boletim do IBCCrim, São Paulo,ano 5, n.51, fev/1997, p. 06; GRECO FILHO, Vicente. Interceptação telefônica: considerações sobre a lei n. 9.296, de 24 de julho de 1996. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 33-37; SANTORO, Antonio & SANTOS, Rodolfo. “A validade dos conhecimentos fortuitos obtidos nas interceptações telefônicas”. Boletim do IBCCrim, São Paulo, ano 17, n. 210, maio/2010, p. 16; STRECK, Lenio Luiz. As interceptações telefônicas e os direitos fundamentais, p. 124. No ponto, embora a doutrina pondere que esses critérios sejam necessários para que não haja abuso ou devassa, entende-se que no encontro fortuito de prova jamais é possível falar em devassa. Uma coisa é a medida ser deferida, genericamente, para autorizar a investigação de todo e qualquer crime; outra é, no meio de uma investigação regular e totalmente válida, a autoridade encontrar, fortuitamente, ou casualmente, elementos que apontem para a prática de outros delitos ou por outros autores. A autoridade, nessa situação, simplesmente não pode fingir que nada está acontecendo, sob pena, inclusive, de responder ela própria por eventual crime.
[3] Thiago André Pierobom de Ávila entende que “não há arbitrariedade os conhecimentos fortuitos em interceptações telefônicas, sejam eles relativos a crimes não conexos, terceiros interlocutores ou referidos, sendo admissível sua utilização como prova em relação aos outros fatos, contra terceiros não mencionados na autorização judicial inicial...” (ÁVILA, Thiago André Pierobom de. Provas ilícitas e proporcionalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 227)
[4] “Obviamente, se comprovada a má-fé policial, não deve ser admissível a prova por desvio de finalidade, tal como reconhecido no precedente estadunidense Franks v. Delaware (1978)” (ÁVILA, Thiago André Pierobom de. Provas ilícitas e proporcionalidade, p.221-222). Na verdade, acrescenta-se: se houver má-fé, não terá sido um fortuito o encontro.
[5] “Se há uma busca abusiva em locais não discriminados na autorização, ou se a busca prossegue mesmo após a apreensão do objeto para o qual havia autorização, sem que haja qualquer legitimação de intervenção indiciária para essa outra busca, a situação configura a ilicitude de prova. Nesse caso, há uma prova ilícita por derivação (a apreensão do objeto deriva de um abuso na busca domiciliar), devendo a questão ser eventualmente reanalisada às provas ilícitas por derivação (especialmente a descoberta inevitável)” (ÁVILA, Thiago André Pierobom de. Provas ilícitas e proporcionalidade, p.221-228).
. . Jorge Coutinho Paschoal é Advogado e Mestre em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP). . .
Imagem Ilustrativa do Post: Passers Buy // Foto de: Dan Taylor // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/dantaylorphotography/8272614287
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode
O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.