Por Luiz Ferri de Barros - 22/09/2015
Os Psicóticos e os Normais
Apontamentos sistematicamente aleatórios
Conferência no Seminário Internacional Cristianismo - Filosofia, Educação e Arte - II. Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, em 2002.
I
Cabendo-me a honra e a responsabilidade de proferir a primeira conferência específica sobre situações-limite neste Seminário Internacional sobre Ética e Situações-Limite, creio que seria leviano adentrar apressadamente o tema, tal como de forma distraída, sem propiciar a cada um de nós a possibilidade de perceber a complexidade, ambivalência e precariedade dos conceitos subjacentes a essas questões.
Igualmente leviano seria nutrir qualquer pretensão de abarcar, em breves palavras, o universo conceitual infinito de noções éticas, sociais, antropológicas, políticas, econômicas, jurídicas, médicas, psicológicas e de tantas outras ordens que podem ser avocadas ao tratar das questões relacionadas a “situações sociais-limite” ou “situações pessoais-limite”, como se queira entender o tema.
Navegando nem tanto ao mar, nem tanto à terra, pretendo apenas, nesta exposição, dado o fato de que meu tema se relaciona à área de saúde (saúde mental), iniciar pela discussão, simplificada, de uma grande e complexa questão ainda hoje irresolvida e constantemente esquecida na prática cotidiana dos que atuam nessa área: a questão do normal e do patológico.
Essa pode ser considerada a questão inicial, básica e fundadora não apenas da área de saúde mental como da própria medicina. Trata-se também de questão universal pois, explícita ou implicitamente, é essa consideração que instrui os critérios para se definir, em qualquer área da atividade humana, o que é normal, o que não é – e, dentre o que não é normal, o que é patológico (anti-natural e indesejável). É a partir de tal julgamento que se dão os esforços em busca de “consertar” (normalizar) o que é considerado socialmente, ou pessoalmente, indesejável.
II
Discorrer sobre psicóticos e normais implica antes definir normalidade e patologia. Definir o que é o normal e diferenciá-lo do patológico é assunto de inerente complexidade, sob qualquer ângulo de aproximação, cujo entendimento se torna ainda mais difícil porque muitos dos termos usualmente utilizados em tais definições carecem de sentido universal no que se refere a seu uso e aceitação.
De uns tempos para cá, adicionalmente, a ideologia do “politicamente correto”, ao tentar banir o uso de certos termos consagrados, substituindo-os por neologismos de sentido metafórico, tem contribuído ainda mais para construções vocabulares voláteis e crescentemente imprecisas, como é o caso, por exemplo, dos que se referem aos portadores de doenças mentais como sendo pessoas “portadoras de sofrimento psíquico” ou aos deficientes físicos como sendo pessoas “portadoras de necessidades especiais”, expressões que mais atrapalham o enfrentamento das questões, ao tampar o sol com a peneira e desvendam, ao invés de disfarçar, os preconceitos dos que as utilizam. Tais expressões antes são testemunho da cegueira dos ideólogos que as forjaram do que servem a caracterizar o que pretendem denominar.
Para os que queiram examinar as definições de normalidade e patologia em profundidade, pode-se indicar como marco de início a leitura de Georges Canguilhem, médico e filósofo. A partir de sua tese de doutorado em medicina de 1943, O Normal e o Patológico, e de seus escritos de maturidade da década de 1960, a obra de Can-guilhem continua a granjear-lhe o posto de mais reputado clássico sobre o assunto.
III
Em primeira instância, aquilo que é patológico se define em contraposição à normalidade (o que é patológico não é normal, em primeira definição). Essa aparente obviedade, sob certo aspecto tautológica, e por muitos aceita como explanação conclusiva para caracterização do estado de patologia, apenas serve para demonstrar que sem que se defina o que é o normal não se pode cogitar de saber o que venha a ser o patológico, salvo por juízo de valor. Definir o que é o normal, entretanto, não esgotará o problema, porque ainda será necessário considerar tudo aquilo que não sendo normal embora, não se caracterizará como patológico (consideração que novamente introduzirá a necessidade de uso de juízos de valor). Fugir do padrão de normalidade, portanto, é condição necessária porém não suficiente para caracterizar o estado de patologia, nessa primeira forma de definição.
IV
A normalidade, entendida como padrão, em quaisquer áreas, inclusive na medicina naquilo que se refere às questões de saúde, pode-se definir primeiramente, em analogia ao ponto de vista matemático, não como sendo representada pela média (rigorosamente, não existe o “homem médio”), e sim pela moda ou mediana. Em outras palavras, o que define determinados padrões como sendo os considerados normais é a prevalência (freqüência) de sua ocorrência em determinadas populações, situando-se em eqüidistância dos casos extremos. Nesse sentido, a idéia de normal remete a um juízo de realidade, de função descritiva e ordem não valorativa. A partir deste entendimento inicial, pode-se afirmar, independentemente de juízo de valor, por exemplo, que o homossexualismo não é um padrão de comportamento normal, estatisticamente considerado. (A questão a respeito de se o homossexualismo configu-ra-se como patológico, sob o ponto de vista social, ou mesmo psiquiátrico, será ilus-trativa dos juízos de valor que se incorporam a essas naturezas de definições, indepen-dentemente de considerações estatísticas. Em décadas passadas, não muito distantes, o homossexualismo constava dos manuais de diagnósticos psiquiátricos como disfunção de comportamento sexual de ordem patológica. Sua exclusão de tal categoria reflete novo entendimento social da questão, de ordem valorativa, e não se relaciona com eventuais diferenciações estatísticas relativas à prevalência do fenômeno).
A própria definição de normalidade a partir da freqüência de determinados fatos, ou condições, observados em certas populações, já introduz o conceito de que aquilo que é normal em dadas sociedades pode ser entendido de forma diferente em outras, a partir de diferenças culturais, o que se acentuará a partir do momento em que a idéia de norma seja entendida como juízo de valor. Vale aqui aproveitar a oportunidade para registrar que as doenças mentais, entre as quais encontraremos as psicoses, são consideradas, genericamente, doenças biopsicossociais. Existe hoje, na esfera da antropologia médica e na psiquiatria, contínuo, senão intenso, debate entre a “psiquiatria transcultural”, buscando critérios de ordem culturalista, em contraposição à assim chamada “etnopsiquiatria tradicional”, que advoga serem as categorias diagnósticas ocidentais livres culturalmente e, portanto, universalmente aplicáveis.
V
O critério estatístico não é o único e nem é soberano para definição da patologia. Aquilo que se encontre fora da faixa de normalidade, fora da moda ou mediana, nem por isto é patológico. O que não é normal, não é necessariamente patológico; pode ser meramente a-normal: pouco freqüente ou menos freqüente do que o padrão. Seria o caso, por exemplo, de uma pessoa com 1,65m de altura, pertencente a um grupo populacional em que a altura normal variasse de 1,70m a 1,80m; embora sua estatura fosse anormal neste caso, não seria de ordem a caracterizá-la como anã, patologicamente pequena. De qualquer maneira, a própria supremacia da valorização da norma já induz o entendimento da expressão “anormal” pelo viés da patologia. Correntemente, entendemos “anormal” como deficiente ou patológico.
Por outro lado, pode ser extremamente problemático considerar que o padrão de maior freqüência seja necessariamente a expressão do normal, pois diante de inúmeras situações verificam-se inversões, em que pelo senso comum se percebe a patologia adquirindo predominância estatística, como é o caso da violência na sociedade brasileira nos dias atuais. Quando se verifica que a maioria dos habitantes de São Paulo já foi vítima de algum tipo de violência e, ao mesmo tempo, não se considera que isto seja normal, pode-se notar com clareza que nesse caso o que condiciona o entendimento de normalidade e patologia social, ou pessoal – dos agressores –, não são fatores de ordem estatística e sim juízos de valor relativos a determinados padrões ideais de comportamento pessoal e de convivência em sociedade.
A consideração de juízos de valor e modelos ideais para a definição daquilo que é normal ou patológico não se restringe, entretanto, à avaliação de fenômenos sociais ou psicológicos, existindo, na tentativa humana de encontrar a “lógica da natureza”, uma contínua busca da “idéia de uma normatividade do ser vivo” que seria “uma projeção a toda a natureza viva da tendência humana ao aperfeiçoamento”. Tais juízos de valor quando assim aplicados ao julgamento de funções biológicas não apenas alçam a questão do normal e do patológico a patamares de impossível resolução como podem representar campo de perigosa incursão, como hoje se testemunha nas pesquisas e intervenções genéticas, atualmente em curso desenfreado.
VI
Podem-se verificar, também, exemplos em que a ambivalência inerente aos conceitos de normalidade e patologia não permite a simples consideração de que o normal não se configure simultaneamente em patológico. Assim, por exemplo, mesmo que se considere que a febre é o sinal de uma reação normal e salutar do organismo em determinadas situações em que se mobilizam suas defesas e que é normal que pessoas sadias por vezes apresentem febre, não se pode desconsiderar o caráter patológico de certas febres que podem resultar em morte. Repetindo o exemplo, para ressaltar as ambivalências e imprecisões dos conceitos envolvidos: febre é uma reação normal; é normal as pessoas terem febre; cuidado com a febre, entretanto, ela pode matar, pois pode ser patológica.
VII
O exemplo da febre, por ser de fácil compreensão para todos nós, não–médicos, talvez seja de especial interesse para ilustrar o caráter da investigação naturalista relacionada à questão do normal e do patológico. A primeira parte da tese de Canguilhem é toda ela dedicada à questão: “Seria o estado patológico apenas uma modificação quantitativa do estado normal ?”
Sabemos, pelo senso comum, que é normal a febre até certo ponto; a partir de determinado ponto, a própria febre, independentemente de sua causa, é nociva e deve ser considerada em si mesma como patológica. A intensidade quantitativa do fenômeno altera sua natureza e é nisto que reside a patologia. Para Canguilhem, o desenvolvimento da conceituação do normal e do patológico na cultura ocidental avançou na direção de diferenciar os dois estados a partir da diferenciação quantitativa subjacente aos fenômenos. Se a intensidade e quantificação corresponde a uma explicação descritiva, válida para inúmeras situações, ainda assim parece obscurecer a elucidação da exata natureza dos elementos que comporiam a normalidade, em diferenciação à patologia, pois neste caso seriam os mesmos.
Canguilhem não deixará de indicar, entretanto, os autores, como Comte, que definirão o normal a partir de conceitos valorativos e, em sua tese, não deixará de assinalar: “A saúde perfeita não passa de um conceito normativo, de um tipo ideal. Raciocinando com todo o rigor, uma norma não existe, apenas desempenha seu papel que é o desvalorizar a existência para permitir a correção dessa mesma existência”.
(Não seria exatamente a desvalorização do que naturalmente existe, para suprir o desejo obsessivo de aperfeiçoamento humano, corrigindo a própria existência, isto que hoje instrui a pesquisa genética?)
VIII
Na prática diária institucional, em curiosa inversão conceitual, continua a prevalecer o conceito de saúde como sendo equivalente ao “estado de ausência de doença”, tanto que todos os órgãos públicos que se denominam em prol da saúde, tal como os ministérios, secretarias de saúde, assim como as faculdades de medicina, apenas se dedicam às doenças. Conforme já comentei anteriormente, sem nenhuma ironia, para que ficasse mais claro a função de tais organismos, que raramente se dedicam à promoção do estado de saúde – até mesmo porque não se sabe o que é isto --, e sim apenas à tentativa de combate às doenças, seus nomes mereceriam ser trocados, como costumam os burocratas fazer em relação à denominação das patologias e deficiências. Daí diríamos, de forma mais apropriada: ministério das Doenças, secretarias municipais e estaduais das Doenças, conselho nacional das Doenças e assim por diante. De qualquer forma, se há eventualmente a possibilidade de certo controle das doenças (patologias) por meio institucional, para aqueles que acreditem nas instituições, certamente o estado de saúde, conforme sua definição ideal, parece ser apenas passível da conquista pessoal de cada um, e, conforme se colhe de diversos testemunhos pessoais, tal estado de bem-estar pessoal eventualmente independa da condição de normalidade ou patologia conforme definida por padrões socio-culturais correntes, em especial os de natureza científica. Kant, não por acaso, sinalizou que a idéia de saúde não se pode reduzir a conceito científico, tratando-se antes de noção vulgar, de alcance popular. Trata-se, também, de uma questão filosófica.
A atual definição de saúde, adotada por volta da década de 1970 pela OMS – Organização Mundial de Saúde, vinculada às Nações Unidas – corresponde exatamente a um conceito normativo de tipo ideal, ao estilo indicado por Canguilhem, nos seguintes termos: “Saúde é um estado de pleno bem estar físico, mental e social”.
Karl Jaspers, outro médico e filósofo dos mais notáveis, denuncia que tal saúde não existe -- e vai além. “De acuerdo con esto concepto, de hecho todos los seres humanos están de alguna manera enfermos en todo momento.” A imprecisão desse conceito de saúde pressupõe, igualmente, “la vaguedad del concepto de enfermidad, de un modo característico del mundo moderno”. Para ele, “este hombre moderno en sí se cree enfermo porque se siente desdichado. Todos necessitan la recuperación del ‘coraje para volver a sí mismos’ (título de um libro psicoterapéutico de princípios de siglo), el ‘coraje de ser’, el camino a la felicidad ”.
É meu privilégio, eu creio, mesmo se um pouco, ou bastante, em contraste com o que se prega em meu país, viver e testemunhar um tempo social em que me é possível adquirir bastante clareza a respeito de minhas patologias e, sem demasiadas imprecisões em relação a minhas enfermidades, optar por não escamoteá-las e, exatamente por isto, ser capaz de viver minha condição de psicótico, de portador de uma doença mental, sem negar o meu ser e por isto, após longa caminhada, exercendo a coragem de ser, “tornar-me aquilo que sou”, conforme a prescrição ética de Píndaro, sem com isto sentir-me “portador de sofrimento psíquico”, como gostariam os ideólogos e burocratas do ministério da Saúde em sua novilíngua.
IX
Para encerrar estas considerações preliminares em que, de forma apenas superficial e introdutória, discorri a propósito do complexo universo conceitual do normal e do patológico, antes de adentrar a questão específica da psicose, vale voltar a examinar a idéia de saúde que se consagrou com a definição da OMS – “pleno bem estar físico, mental e social”.
Tal definição, além de utópica e irrealista, como indica Jaspers, é mais complexa do que parece, eis que nesse conceito a idéia de “bem estar social” interliga explicitamente as noções de saúde individual e saúde coletiva e, a partir daí, recoloca-se a questão da saúde das sociedades. Qual é a possibilidade de atingir-se a saúde individual quando se vive no seio de uma sociedade doente em si mesma?
A filosofia e a ciência não alcançaram um conceito de "saúde" de aceitação universal, ainda que desde a antigüidade o tema já tenha sido analisado por muitos dos grandes filósofos. A discussão epistemológica sobre a questão, intensa entre os pensadores contemporâneos, sequer alcança o consenso de que "saúde" seja um conceito passível de ser definido em termos objetivos, na esfera do campo científico, ou se apenas se constitui em experiência vivencial de natureza individual e subjetiva, irredutível ao campo científico, em que o imperativo da generalização é mandatório. (Boa indicação de leitura introdutória ao tema é o artigo de Naomar de Almeida Filho e colaboradores, na Revista USP n. 43: O conceito de saúde mental).
Se tal ocorre com a questão da saúde, em geral, complicações adicionais surgem quando se pensa em saúde mental. Na prática, o estado de saúde mental também é definido, tal como em outras áreas, pela velha idéia de “ausência de doenças” -- ou transtornos -- mentais, mas não se diz, popularmente ou no meio médico, que a pessoa que não apresente transtornos é uma pessoa mentalmente sadia. A linguagem usual, também escorada em longas discussões conceituais, como acima se exemplificou, enuncia que a pessoa é "normal". Os transtornos mentais não são passíveis até hoje de diagnósticos por exames laboratoriais ou de qualquer outro tipo. Detectam-se tais transtornos pelo comportamento fora do padrão, anormal: fora da normalidade social e cultural.
Nesse ponto é que surge a questão crucial, já brevemente mencionada acima, e que raramente é abordada com seriedade. Normalidade acaso seria igual a saúde? E se o padrão normal de comportamentos e atitudes de uma dada sociedade for doentio? E se a sociedade for doente? Nesses casos, aliás nem um pouco raros, em que a normalidade é patológica, como se verifica amiúde em nosso próprio país, perdoem-me mencionar minha singela opinião... nesses casos os normais não são propriamente normais, senão normalpatas, pessoas “patologicamente normais”. Em outras palavras, isentas de chiste: ser normal não é ser sadio, porque a normalidade pode ser doentia.
O radicalismo dos culturalistas da década de 60, especialmente em relação às questões psiquiátricas, levou praticamente ao abandono da idéia de patologia das sociedades. Mas trata-se de uma questão de plena atualidade e que, ademais, encontra substrato nos fundamentos da sociologia clássica, já a partir do momento em que Durkheim propôs o conceito de anomia.
Particularmente, creio que seria mais útil a todos nós se tivéssemos a coragem de perceber e admitir que a sociedade brasileira como um todo, ao menos conjunturalmente, encontra-se em estado de profunda anomia, em vez de continuarmos tentando explicar pontual e setorialmente, de forma sempre parcial -- ou excessivamente complexa --, as permanentes e agudas crises que vivemos na educação, na saúde, no mercado de trabalho, na segurança pública e em diversos outros aspectos que contribuem para a crescente degradação das relações humanas em todas as esferas sociais.
X
Talvez eu já tenha dito tudo o que me cabia falar a respeito dos normais, eventualmente até mais do que o devido, de tal sorte que é de alvitre passar logo a discorrer a propósito dos psicóticos, não sem antes enunciar que há importantes diferenças entre loucura e doença mental e que os diversos tipos de psicoses não são mais do que uma categoria específica de doenças mentais, consideradas de natureza “severa”, ou seja: graves.
XI
Costumo dizer que a loucura é um tipo de comportamento, uma faceta da sociedade, presente nas mais diversas situações. Doenças mentais são transtornos de saúde que podem afetar sentimentos, pensamento e comportamento. Na maior parte das vezes, os portadores de doenças mentais nada têm que ver com a loucura que anda solta pelo mundo.
Se considerarmos, como é correto considerar, a despeito de tudo o que se discutiu acima, que existem padrões de normalidade de comportamento, podemos facilmente entender (retomando a noção de que nem tudo o que é anormal é patológico) que nem todos os comportamentos fora de norma que se denominam loucura advêm da doença mental.
Também podemos e devemos afirmar, ainda que para o desagrado dos que leram Foucault sem entendê-lo, que não apenas a loucura existe, como igualmente a doença mental.
A grande questão discutida por Foucault não dizia propriamente respeito à existência da loucura e sim à mutabilidade de sua fenomenologia, e de seu entendimento, ao longo dos tempos e das culturas. A noção de loucura, entretanto, tanto quanto a de doença mental, já se encontra estabelecida na antigüidade, em que já se verifica igualmente a ambivalência em relação ao julgamento da loucura. Sócrates refere-se à loucura em textos platônicos, de forma receptiva e elogiosa, tal como no diálogo Fedro, quando diz: “a loucura (manía) é para nós a fonte dos maiores bens”; enquanto Sófocles, na tragédia Ajax, atribui ao destemido e astuto Ulysses, face à “demência” de Ajax, momento e fala de inequívoco medo em diálogo com a deusa Atená: “Se ele fosse são de espírito eu não teria medo.”
A proposição foucaultiana de que a noção de doença mental se define no século XVII, em simultaneidade à fundação, avant la lettre, da psiquiatria enquanto disciplina, não se sustenta face à verificação de que na medicina hipocrática já se consideravam a existência de doenças mentais, tais como a mania e a melancolia. Trata-se na verdade de grande maçada ter-se de argumentar, a cada vez, para demonstrar a existência de coisas tão óbvias, apenas porque um grupo pequeno, porém influente, de intelectuais e de médicos radicalmente dissidentes da psiquiatria, foi capaz de gerar tamanha confusão a partir de sábios enunciados mal compreendidos.
XII
Assumindo, sem mais delongas, a existência tanto da loucura quanto da doença mental, podemos considerar, talvez, em relação ao universo da normalidade de comportamento, que as doenças mentais respondem pelos desvios de norma originários de patologias, enquanto outros tipos de desvios de comportamentos tidos como loucura poderiam ser meramente considerados como anormais, porém não necessariamente patológicos. Uma pessoa excêntrica pode comportar-se de forma absolutamente fora da norma, ao ponto de ser considerada como louca, sem que seja necessariamente doente mental. Uma pessoa apaixonada pode – e normalmente faz questão de –cometer loucuras em nome do amor, ao ponto de que os verbetes de dicionários considerem “apaixonado” como sinônimo de “louco” e dentre todos aqui presentes que já se apaixonaram na vida, apenas poucos eventualmente sejam portadores de doenças mentais.
XIII
Do ponto de vista existencial, creio que duas características distinguem a doença mental de outras formas de loucura. A primeira é dada pela natureza coercitiva do estado de alma e dos comportamentos determinados pela doença. Henry Ey, expoente médico da psiquiatria francesa, definia a doença mental como sendo uma “patologia da liberdade”, por roubar a possibilidade de livre arbítrio às pessoas. A pessoa se comporta de tal forma porque é a única maneira que lhe é possível, a doença não lhe oferece alternativa. A idéia é facilmente compreendida se pensarmos na compulsão que caracteriza os fenômenos obsessivos, e a mesma idéia geralmente é válida para caracterização de quaisquer outros fenômenos da patologia mental. A segunda característica marcante da doença, infelizmente não suficientemente considerada por todos os que romantizam a experiência, é o sofrimento inerente às patologias mentais.
Tanto a coercitividade quanto o sofrimento são passíveis de controle e superação, da mesma forma que altos níveis de “normalização” comportamental podem ser atingidos. Para isto, entretanto, são necessários tratamentos adequados, geralmente longos, dolorosos em si mesmos e muita vez permanentes -- para a vida inteira --, posto que para grande parte das doenças mentais, em especial as consideradas severas, não se conhece cura.
A recuperação das doenças mentais, conforme conceito desenvolvido pelos grupos anônimos de auto-ajuda em saúde mental, a partir da experiência dos Alcoólicos Anônimos, caracteriza-se como um processo, não como um evento, e trata-se de um processo interminável que se vivencia no cotidiano, um dia de cada vez.
XIV
Existem variados tipos de psicoses, embora o termo psicose esteja caindo em crescente desuso nos manuais de diagnósticos psiquiátricos; em igual sentido, pode-se dizer que existem variados tipos de psicóticos. (Aliás, é de se considerar que existam infinitos tipos de psicóticos, tantos quantos os psicóticos existentes, porque, afinal, antes de ser psicótica uma pessoa é uma pessoa e cada pessoa possui diferente personalidade – a psicose não consiste em distúrbio de personalidade – fato que pode condicionar diferentes intensidades de manifestação de certos sintomas, assim como facilitar ou dificultar a recuperação pessoal de cada indivíduo, embora aparentemente poucos psiquiatras prestem a devida atenção a essas particularidades.
Na década de 1890, Emil Kraeplin, eminente psiquiatra alemão, realizou a primeira classificação das psicoses em dois tipos principais, a esquizofrenia, a que ele atribuía outro nome, e a psicose maníaco-depressiva, que os psiquiatras atualmente consideram como sendo um transtorno de humor e denominam de transtorno afetivo bipolar. A classificação de Kraeplin é de ordem clássica e não se pode considerá-la ultrapassada, embora hoje a ela se sobreponham as novas taxionomias (classificações) diagnósticas, que em medicina se denominam nosologia.
XV
A manifestação inicial tanto da esquizofrenia quanto da PMD, psicose maníaco-depressiva, geralmente se dá no final da adolescência ou início da vida adulta.
A esquizofrenia afeta cerca de 1% da população, dado praticamente invariável de país para país. A cada ano, ocorrem cerca de 50 casos novos para cada 100 mil pessoas, o que significa que no Brasil se verificam cerca de 85 mil novos casos anualmente para somar-se aos cerca de 1,7 milhões de esquizofrênicos existentes no país.
A psicose maníaco-depressiva, ou transtorno bipolar, afeta cerca de 2% da população, podendo-se estimar que existem no Brasil cerca de 3,4 milhões de pessoas que apresentam esse tipo de psicose.
Independentemente da etiologia (origem), ainda não suficientemente conhecida, há suficientes evidências de que a manifestação destas doenças e de seus sintomas está relacionada a um desequilíbrio bioquímico cerebral, razão pela qual, independentemente de psicoterapia e outras terapêuticas, o tratamento medicamentoso é considerado imprescindível.
Trata-se de doenças altamente incapacitantes caso não sejam adequadamente tratadas. A boa notícia é que existem hoje recursos terapêuticos suficientemente eficazes para permitir altos níveis de recuperação e de reintegração social para a maioria dos casos. A má notícia é que tais tratamentos em geral não estão disponíveis para a população, por um lado, e grande parte das pessoas não reconhecem tais fenômenos como sendo problemas de saúde, sendo que muitas delas – até mesmo incentivadas por certas religiões – continuam a considerar seus sintomas como manifestações do sobrenatural, ao estilo medieval em que se configuram as crenças de possessões demoníacas, por exemplo, submetendo-se alguns, nestas searas, inclusive, a indevidas e temerárias práticas de exorcismo, de que infelizmente conheço exemplos especialmente violentos.
XVI
Não cabe aqui descrever todos os sintomas das psicoses, salvo enunciar que os mais proeminentes, no sentido de que são os que mais contribuem para a imagem que as pessoas fazem dos psicóticos, são os delírios e as alucinações.
Delírios podem ser entendidos como falsas idéias, crenças ou pensamentos, muitas vezes bizarros e implausíveis, em que a pessoa acredita piamente. Podem ser de diversos tipos, tal como os paranóicos, em que a pessoa se sente perseguida; de grandeza, em que a pessoa julga ser muito rica ou importante quando não é; de ordem mística, etc.
Alucinações podem ser entendidas como se fossem falsas percepções dos órgãos dos sentidos. Podem ser auditivas (“ouvir vozes”); visuais (“enxergar coisas”) e também, de ocorrência mais rara, existem as alucinações olfativas, gustativas ou táteis. As alucinações, assim como os delírios, podem ser bastante variados para cada pessoa, embora eu considere que há fortes componentes culturais que determinam a maior freqüência de certos temas de delírios, aos quais creio que as alucinações se associam de alguma forma, embora nunca tenha visto esse tópico ser discutido, talvez porque é praticamente tabu, na psiquiatria moderna, a proposição de interpretação de delírios.
Tais experiências permitem que se defina a psicose como uma circunstância em que o indivíduo sofre de uma quebra com a realidade. Definições dessa natureza, quando um pouco mais elaboradas, enunciam que na psicose ocorre uma dissociação entre a realidade subjetiva vivenciada pelo indivíduo em relação à realidade objetiva.
Por “realidade objetiva” entende-se a realidade tal como ela é percebida pelos outros indivíduos – normais. Assim, tal realidade objetiva, para o psicótico, afinal resume-se à somatória de percepções subjetivas idênticas das outras pessoas. Essa percepção dos outros, validada pelos normais como sendo a “correta”, a todo o tempo indica ao psicótico o erro em que se encontra, produzindo grandes des-encontros. Os psicóticos, nesta circunstância, são indivíduos cuj , por ser substancialmente diferente da norma, enquanto estejam vivenciando esses sintomas delirantes ou alucinantes, encontram-se dissociados da realidade que é comum aos outros, sendo suas percepções “incorretas”, quando não totalmente reprováveis, perante a comunidade dos normais.
XVII
Como se resolveria este desencontro entre os psicóticos e os normais, entre o normal e o patológico? Canguilhem, na maturidade, reafirmará que a normalidade é uma categoria que engloba tanto a saúde quanto a doença; ambas são normais.
A saúde nesse caso, para ele, representaria uma norma de vida superior e a doença uma norma de vida igualmente normal, porém inferior. Mais que isto, a saúde desprovida da possibilidade de testar-se pela doença é patológica, concluindo Canguilhem, por fim, que a absoluta ausência de doença situa-se no campo da patologia.
Seria isto excelente fecho para esta conferência, não ficasse a possibilidade de se cogitar com muita facilidade que as pessoas doentes são inferiores, a partir da consideração de que a doença constitui-se em norma de vida inferior [1] .
Creio que é importante considerar que a doença nunca é maior do que uma pessoa, ou qualquer organismo vivo, caso contrário sequer teria onde se instalar ou já teria dado cabo de tal organismo. Pouco se sabe a respeito dos limites e dos píncaros a que é capaz uma pessoa de alçar-se para conviver com uma patologia mental grave. Melhor considerarmos apenas como diferentes entre si os normais e os psicóticos, sem deixarmos que a idéia da doença como norma biológica inferior nos leve a considerar os doentes como inferiores, ou, exato ao contrário, como superiores, pelo fato de que sejam capazes de abarcar simultaneamente a normalidade e a patologia, em intensidades jamais conhecidas ou sequer sonhadas pelos normais, como é o caso da vendedora de cachorro-quente que lhes apresentarei a seguir.
XVIII
Tome-se como exemplo das infinitas forças que a norma de vida pode lançar mão, e como breve incursão ao complexo universo existencial de um psicótico, o caso da vendedora de cachorro-quente, nas ocasiões em que, ao meio de sua atividade, quando em delírio e sob alucinações, ao tempo em que servia os clientes, vislumbrava seus rostos em constante mutação, afigurando-se-lhe como máscaras monstruosas, enquanto vozes hostis sussurravam-lhe xingamentos.
Esta mulher, de que tive o privilégio de desfrutar da confiança e amizade por vários anos, e de que não tenho notícia do paradeiro, portadora de esquizofrenia, com cerca de 40 anos, vivia só, num quarto de pensão que dividia com outras quatro pessoas, embora tivesse família. Sua única fonte fixa de renda, em 1998, era um benefício do INSS, a que poucos têm acesso, da ordem de cento e poucos reais ao mês. Pessoa brilhante, alegre e jovial (quando não estava deprimida), era muito namoradeira, ainda que sempre queixosa a respeito da índole masculina. Trabalhando, quando conseguia, e era quase sempre, como vendedora ambulante de cachorro-quente, sem sequer ser dona de tal carrinho, sendo do proprietário simples funcionária na economia informal de São Paulo, ganhava 5 reais a cada dia por jornada de oito horas como ambulante.
Para esta corajosa mulher, de quem tenho muita saudade, vender cachorro-quente na calçada implicava decifrar a todo tempo, para efeito prático, entre a aparência e o real, simultâneamente em nível visual, auditivo, ontológico (mais que cognitivo) e afetivo. Vivendo simultaneamente duas totalidades diferentes, o mundo real e o mundo da loucura, ela era compulsoriamente lançada ao exercício da "crítica da realidade" a cada instante.
Quando conseguia fazer prevalecer o mundo real (seu esforço era neste sentido), continuava vendendo lanches aos transeuntes que se metamorfoseavam à sua frente; quando o mundo da loucura prevalecia, o terror e o sentimento de morte eram de tal ordem que a impossibilitavam de continuar trabalhando.
A possibilidade de aperceber-se e assenhorear-se do próprio delírio e das próprias alucinações implica transitar continuamente entre dois mundos distintos (o mundo real e o mundo da loucura). Estar em ou pertencer a (fixamente) um destes mundos, transitar entre ambos ou vivê-los em simultaneidade, significa, em cada caso, instâncias ontológicas diferentes, às quais se associam diferentes conteúdos existenciais.
Por este motivo, a decifração cognitiva ininterrupta a que se encontra lançada uma pessoa em estado-delirante-com-manutenção-da-crítica é muito mais ampla que apenas cognitiva. Trata-se, antes, de uma decifração ontológica contínua e ininterrupta, em que se encontra em jogo a todo instante a questão do Ser. Tampouco se pode reduzir este caleidoscópio da loucura-que-se-vive-ao-mesmo-tempo-que-se-critica a uma questão ontológica relativa exclusivamente ao Ser do indivíduo (uma questão de identidade). Em conjunto com a vivência da precariedade indefinida de seu próprio ser e existir, a existência e a essência de todo o mundo circundante e do próprio universo pode estar dramaticamente em questão, enquanto se vende um cachorro-quente ao transeunte distraído.
Realizar a crítica de um delírio-e-de-alucinações auditivas e visuais não significa o mesmo que um ajuste de percepções sensoriais, de natureza a distinguir ilusões de ótica para enxergar com nitidez determinado objeto, ou ouvir um som de forma nítida e não distorcida. Significa empreender profunda e instantânea investigação a propósito da essência e da aparência, não por interesse de diletante filosofar, porém de forma premente à manutenção da sanidade, no embate entre as duas normas de vida em que se constituem a saúde e a doença.
Vale salientar, para enunciar apenas mais uma diferença entre os psicóticos e os normais, que, salvo os filósofos e os loucos, os homens em geral são absolutamente avessos à crítica da realidade. É comum, e muitos o fazem, a todo o tempo, que se teçam críticas a determinadas realidades, em sentido político, social, ou qualquer outro, sugerindo-se mudanças, apontando erros, injustiças e problemas, etc. Mas não se trata esta outra natureza de crítica de um questionamento a respeito de o que vem a ser o real, afinal de contas. Não se trata de uma crítica constante e permanente a respeito do próprio eu e em relação à essência do verdadeiro e do falso dentre aquilo que os sentidos mostram e a mente julga, de forma certa ou errada, como sendo o correto, tal qual os filósofos se propõem voluntariamente a fazer e os loucos são compelidos a fazer por uma questão de sobrevivência.
Com a mais absoluta convicção, creio que as operações lógico-formais, mesmo se de peculiares características, que a vendedora de cachorro-quente se obrigava a realizar para manter-se em funcionamento eram poderosíssimas, como se pôde perceber pela descrição de suas condições de trabalho quando em estado de delírio e sob alucinações. Por isto se diz da lógica do louco - é seu único porto; quando falha, a espontaneidade pode jogá-lo de volta ao mundo da loucura – embora poucos reconheçam a lógica como um atributo dos psicóticos; justo ao contrário, há psiquiatras que caracterizam os delírios como sendo falhas de lógica.
XIX
Em contraponto ao desinteresse dos psiquiatras em relação à peculiar lógica dos psicóticos, é de se destacar a original e intrigante proposição de Gregory Bateson, oriunda de sua formação como antropólogo e seu interesse pelos esquizofrênicos e, principalmente, de seus aprofundados estudos sobre números (Bateson é considerado um dos fundadores da cibernética, ao lado de Norbert Wiener e outros; suas idéias a respeito dos processos mentais psicóticos foram inspiração para posições antipsiquiátricas). Diz ele, na derradeira conferência de sua vida, em que explicita resumir o sumo de sua experiência e saber, ao analisar a natureza dos “números biológicos” e a forma de pensar dos esquizofrênicos, que a lógica dos esquizofrênicos não é “(...) boa ou má [porém ele considerava] que era de fato a lógica sobre a qual o universo biológico tinha sido construído; a característica principal, o fator agregador deste mundo do processo mental”. A esta conclusão chegou Bateson a partir do exame de um silogismo construído por um esquizofrênico e coletado por Domarus, um psiquiatra holandês, no início do século passado. Trata-se do silogismo-planta, que se articula pelos predicados e assim se expressa: “A planta morre./ Os homens morrem./ Os homens são plantas.” Cerca de oitenta anos após Domarus coletar esse curioso silogismo de lógica aparentemente indecifrável para os normais, e perfeitamente incorreto sob a ótica da lógica clássica, encontrei na letra da canção “Semente Constante”, de autoria de Flávio, um grande amigo esquizofrênico, creio que exatamente a mesma estrutura de pensamento, nas seguintes palavras: “Eu não curto o vento de motocicleta./ Eu chamo o vento/ O vento é pateta,/Eu sou pateta.”
Jung considerava ter extraído, a partir do método de associação de palavras originalmente desenvolvido por Wundt, o exato significado da alocução “Eu determino um milhão de Hufeland à esquerda na última lasca da Terra, no alto da colina.” de que se valia Babete, uma de suas pacientes no Hospital Psiquiátrico de Burghölsli, da Universidade de Zürich, onde foi assistente de Bleuler, um dos mais importantes autores clássicos no estudo das esquizofrenias.
Jung, é importante ressaltar, notabilizou-se no início de sua carreira, como psiquiatra, por dedicar-se intensivamente ao estudo dos psicóticos, junto aos quais colheu inspiração para formular, posteriormente, vários dos conceitos centrais de sua teoria psicológica – em contraste a Freud, cujos estudos e teorias se baseiam primordialmente na observação das neuroses, em especial da histeria. (A distinção entre fenômenos psicóticos e neuróticos tende ao desuso em certos meios psiquiátricos, ou, ao menos, a certa relativização, inclusive nos manuais internacionais de classificação diagnóstica; de um lado, pela importância privilegiada que se dá aos aspectos orgânicos e aos tratamentos medicamentosos na psiquiatria biológica, a mais forte corrente hegemônica atual; de outro lado, pelo fato de que parcela dos psiquiatras entende que, em diversos casos, transtornos anteriormente considerados neuróticos, segundo classificações clássicas, podem ser tão graves ou mais do que os considerados de ordem psicótica, de tal sorte que falar em neuroses e psicoses poderia contribuir para a perpetuação da idéia valorativa – preconceituosa, nesse caso -- de que as primeiras sejam sempre menos graves, o que não é o caso).
Para quem se interesse por saber, não muito, mas apenas o exato e insuspeito significado de sentir-se pateta como o vento, atrevendo-se a adentrar um pouco mais o universo da psicose, tomo a liberdade de sugerir, como me compete no distinto e honroso papel de professor que me reservou a Universidade no dia de hoje, mais uma leitura... (ninguém há de se queixar porque é apenas a terceira indicação). Aceitem o desafio de Elizabete, outra de minhas amigas esquizofrênicas, e leiam a história de Lady Falcão (nome inspirado na personagem do filme “O feitiço de Áquila”, que é águia ao tempo que o seu amor é lobo, ambos sob a maldição do desencontro). Neste poema, invertendo o enigma da Esfinge, integrante do mesmo mito a respeito do qual Freud construiu tão curiosas teorias, o desafio da loucura, que se apresenta tanto aos normais como, igualmente, aos próprios psicóticos, é sintetizado da seguinte maneira: “Decifra-te ou me devorarei”. Creio que isto talvez queira dizer, em maravilhosa síntese, que, para haver o entendimento entre quaisquer partes, é necessário antes que cada qual cumpra com o primeiro mandamento socrático de conhecer-se a si mesmo, sob o risco de destruir o outro – ou a si mesmo --, não seja cumprido esse mais elementar preceito ético.
Perdão pela distração: a indicação de leitura é “Decifra-te ou me devorarei. Psicose e poesia.”, ensaio inclusso no corpo de livro "Os Normalpatas, Não Matei Jesus e Outros Textos" modestamente de minha autoria, em superlativo esforço de homenagem a meus amigos.
Notas e Referências:
[1] Três discussões de interesse: (1) sintoma é uma palavra conotada, gerando na área da saúde em geral, e particularmente na área da saúde mental, acirrada discussão entre o que é tratamento de sintoma e o que é a eliminação das causas da manifestação indesejada. Para aquilo que não existe cura conhecida, o tratamento é dito sintomático, buscando-se atenuação ou eliminação dos sintomas. (2) é interessante, também, a discussão a propósito de diferentes intensidades de manifestação de certos sintomas. Isto recoloca a questão da quantificação como critério de patologia, a questão dos juízos de valores; e os aspectos e posturas puramente pragmáticos. (3) quanto à discussão a propósito de as normas de vida, saúde ou doença, enquanto superiores ou inferiores, talvez se possa dizer que "as pessoas doentes não são necessariamente 'inferiores' às pessoas sãs, venha isto a ser o que quer que seja. Apropriadamente podemos considerá-las, entretanto, inferiores ao que poderiam ser, caso não estivessem "doentes". Exatamente no sentido e na medida que a doença ou a patologia é ou pode ser definida como incapacitante. Erasmo considerado (O Elogio à loucura), a loucura nada tem com a doença. Em muitos sentidos Erasmo discute e aproxima a questão da sanidade com a da loucura. De modo inverso e complementar como o conceito de 'normalpatas' aproxima normalidade e doença. A normalidade em si, enquanto aproximação, conformidade, o pautar-e pela moda, pelo mais freqüente pode ser tão incapacitante quanto a doença. Do mesmo modo como o seu contrário, a compulsão pela dife-renciação, pelo bizarro, ou pela oposição. [Devo esta nota a Paulo Barros, psicólogo clínico e meu irmão mais velho].
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Originalmente publicado na Revista Videtur Letras – 5: 2002. Editora Mandruvá em co-edição com o Centro de Estudos Árabes do Departamento de Línguas Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
Disponível em: http://hottopos.com/seminario/sem2/barros1.htm
Luiz Ferri de Barros é Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Administrador de Empresas pela FGV, escritor e jornalista.
Publica coluna semanal no Empório do Direito às terças-feiras.
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