Por Ana Carolina De Macedo Buzzi - 17/12/2015
A Campanha Global 16 dias de Ativismo pelo Fim da Violência Contra as Mulheres, realizada de 25 de novembro a 10 de dezembro[1], tem por objetivo promover o debate e denunciar as várias formas de violência contra as mulheres no mundo, mobilizando, anualmente, pessoas e coletivos comprometidos com seu combate e eliminação.
É certo que a violência contra a mulher não é fato novo. Contudo, através destas mobilizações, os movimentos feministas tornam visível mais uma dimensão da opressão feminina, denunciando as inúmeras formas de violações que cotidianamente nos atingem, desvelando uma enorme margem de vitimação que permanecia oculta e tornando a violência de gênero uma questão a ser discutida e enfrentada no âmbito público.
Observa-se, ao mesmo tempo, uma forte demanda criminalizadora advinda destes movimentos, que tornam a punição dos agressores um dos pontos centrais de suas reinvidicações e clamam pela criminalização e punição mais severa de determinadas condutas. Assim, embora presencie-se uma profunda crise de legitimidade do direito penal, fortalece-se, por parte dos movimentos feministas, uma demanda relegitimadora de sua atuação (ANDRADE, 2005), cujos reflexos podem ser percebidos na edição da Lei Maria da Penha (n. 11.340/2006) e da Lei do Feminicídio (n. 13.104/2015).
Contudo, até que ponto o direito penal, "desigual por excelência" segundo Baratta, é instrumento eficaz para o combate desta violência e proteção de meninas e mulheres?
Por um lado, é certo que códigos jurídicos, em suas narrativas, validam e reconhecem as opressões a que determinados grupos sociais estão submetidos. A luta pelo acesso e inscrição, na narrativa jurídica, do discurso de um sujeito coletivo é, nesse contexto, a luta pelo reconhecimento de seu sofrimento, pois a lei possui potência discursiva e permite validar a influência de um sujeito coletivo que nela consegue fazer representar-se.
Nesse contexto, a luta pela criminalização ou não de condutas decorrentes da violência de gênero não é uma luta para obstar a sua prática, pois a lei já demonstrou sua absoluta incapacidade em controlar isso. É sim a pretensão de um grupo social de afirmar a sua existência, seu sofrimento, e sua influência na cena nacional.
Assim, ao alçar essas realidades à narrativa jurídica, o Estado outorga legitimidade a determinado posicionamento, garantindo a validade do discurso e oficialmente reconhecendo aquela opressão.
Por outro lado, a própria resistência em incorporar e dar judiciabilidade a certos direitos, mantendo e reproduzindo formas de poder e sujeição, apenas mostra como o Estado e a justiça ainda são claramente patriarcais, além de historicamente ineficazes na proteção das mulheres contra a violência de gênero.
O enfrentamento da violência de gênero tem se dado, principalmente, no campo criminal. Contudo, o sistema penal, enquanto reprodutor do discurso de um grupo dominante, somente replica a lógica e a função de todo mecanismo de controle social que, em última instância, pretende apenas manter o status quo social (ANDRADE, 2005), de forma que sempre se mostrará ineficaz no fortalecimento da autonomia feminina.
O sistema penal e a justiça criminal foram concebidos e são geridos por grupos dominantes que, através deles, garantem a perpetuação de seus privilégios. Adotar suas estratégias na busca pela autonomia feminina é utilizar-se de estratégias dominadas, insuficientes para transformar a relação de dominação existente. É necessário romper com esta estrutura, visto que ela não foi criada para os fim ambicionados pelos movimentos feministas – a solução de um conflito social.
Ainda, ao priorizar-se a punição do agressor, novamente promove-se o apagamento e negação da autonomia da mulher, uma vez que o sistema de justiça criminal retira o conflito de suas mãos, a conduzindo ao seu lugar passivo, reforçando seu papel de vítima e contribuindo para reduzir ainda mais o seu empoderamento.
É necessário, assim, pensar-se em meios efetivos de enfrentamento à violência de gênero, através da compreensão de que esta é apenas uma manifestação de valores e práticas machistas e de desumanização feminina, que não serão combatidas com uma simples pena restritiva de liberdade, e sim com a adoção de medidas que extrapolem o âmbito jurídico e atuem na transformação cultural e social.
As respostas capazes de serem fornecidas pelo sistema de justiça penal frustram e sempre frustrarão as demandas dos movimentos de mulheres, visto que este não foi concebido para tutelar as reivindicações das minorias sociais.
Dessa forma, o combate à violência de gênero depara-se com dois desafios: a necessidade de desconstrução da dominação masculina nas relações de gênero, aliado ao fortalecimento da autonomia e empoderamento femininos; e a superação da cultura punitivista, com a construção coletiva de alternativas ao cárcere para reparação de danos e responsabilização do agressor, visto que o sistema penal, como perpetuador de opressões, jamais dará a resposta adequada a qualquer problema social que lhe seja apresentado.
Notas e Referências:
[1] No Brasil, a campanha começa mais cedo: 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, para destacar a dupla opressão sofrida pelas mulheres negras.
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Revista Sequência, n. 50, p. 71-102, jul. 2005.
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan; Instituto Carioca de Criminologia, 2002.
BUZZI, Vitória de Macedo. Pornografia de Vingança: Contexto histórico e abordagem no direito brasileiro. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.
LAZARI, Joana Sueli de. Inferioridade Feminina: o (des)enredo da violência. In: Revista de Ciências Humanas, vol. 7, n. 10, p. 72-88, 1991.
SEGATO, Rita Laura. Femi-geno-cidio como crímen en fuero internacional de los Derechos Humanos: el derecho a nombrar el sufrimento en el derecho. In: Una Cartografia del Feminicidio en las Américas. México, 2010.
. Ana Carolina De Macedo Buzzi é Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), assistente jurídica na 1ª Procuradoria de Justiça Criminal, que atua nos casos de violência doméstica dentro do Ministério Público de Santa Catarina, pesquisadora e feminista. . .
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