Os limites da tecnologia

27/10/2015

Por Luiz Ferri de Barros - 27/10/2015

O desenvolvimento tecnológico amplia os limites do crescimento econômico e social e a qualidade de vida, mas não terá a própria tecnologia limites intransponíveis?

Em 1798 o inglês Thomas Malthus enuncia uma clara limitação para o crescimento populacional no planeta: a produção de alimentos crescia em escala aritmética enquanto a população crescia em progressão geométrica. Chegaria o momento, segundo esse enunciado que ficou conhecido como "lei de Malthus", em que a população seria maior do que a capacidade de produzir os alimentos necessários. O avanço tecnológico da agricultura e áreas afins foi o que permitiu que se contornasse até o momento a categórica previsão de Malthus. Isto é tanto mais claro se considerarmos que não é por falta de capacidade produtiva de alimentos que persistem populações famintas no mundo atual.

Em 1968, uma nova formulação teórica sobre os limites do crescimento é enunciada pelo Clube de Roma, reunindo cientistas, economistas e altos funcionários de vários países. As idéias do Clube de Roma, de grande impacto na década de 1970 e seguintes, podem ser entendidas como malthusianas, adaptadas a novos tempos e em nova linguagem.  O planeta foi definido do ponto de vista ecológico como sendo um sistema global, contando com recursos finitos que vinham sendo exauridos pelo crescimento exponencial da população e da produção econômica. Os cientistas anunciavam um colapso para o início do século 21.  As formulações teóricas do Clube de Roma estão presentes nos fundamentos da maioria das organizações ambientalistas da atualidade.

O fato de que o colapso previsto não tenha ocorrido não diminui a importância do alerta e para enfrentar o desafio há duas posições radicais no cenário dos debates. Uns acreditam que a tecnologia será capaz de resolver todas as dificuldades presentes e futuras. Outros defendem a necessidade de interromper o crescimento e a conseqüente exaustão dos recursos naturais.

Para evitar o colapso que adviria no caso de se ultrapassarem os limites do crescimento, defende-se atualmente a noção de "desenvolvimento sustentável", que assim se define: "Desenvolvimento sustentável é aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras satisfazerem suas próprias necessidades". Esse enunciado difundiu-se a partir de sua introdução na ONU (Organização das Nações Unidas), em 1987, em relatório apresentado por Gro Brundtland, ex-ministra norueguesa perante o organismo.

Percebe-se a partir do Clube de Roma, quando as preocupações ambientais e de preservação de recursos passam a ser imperativas, a face negativa do desenvolvimento tecnológico.  Basta lembrar a poluição que infesta os recursos naturais do planeta, problema de fantástica dimensão, afetando o ar, o solo, as águas, a atmosfera na camada de ozônio etc. A produção industrial e a utilização extensiva dos produtos tecnológicos de uso cotidiano, como o automóvel, por exemplo, fazem parte do problema global.

Desde a Revolução Industrial o desenvolvimento da tecnologia e dos produtos dela derivados são moedas de duas faces, uma criando soluções que expandem os limites do homem e sua qualidade de vida, outra criando novos problemas que contribuem para a ameaça de caos.  Existe, é claro, ainda uma terceira face desta moeda tecnológica: aquela que queima recursos para criar soluções que não funcionam e para problemas que não existem, o que geralmente está relacionado a modismos e à crescente e perniciosa mentalidade consumista.

Limites e inconvenientes da tecnologia

O Homem tem apostado suas fichas no desenvolvimento científico e tecnológico para tentar resolver os problemas gerados pelo crescimento, inclusive para resolver os problemas que são fruto da própria tecnologia. É o caso das pesquisas atuais buscando fontes alternativas de energia. Busca-se, por exemplo, a geração de energia a partir do hidrogênio não apenas pela exaustão das fontes tradicionais, porém entre outros motivos porque a poluição gerada pela queima de combustíveis fósseis atinge níveis insuportáveis. (Novas descobertas de reservas de petróleo parecem mais recentemente ter feito arrefecer a busca por energias alternativas).

Mas parece ingenuidade acreditar que caso se atinja viabilidade econômica para a inclusão do hidrogênio, ou de outras fontes de energia, na matriz energética isto apresente resultados tão somente positivos, sem nenhum fator desfavorável. É mais razoável supor que a cada novo passo no desenvolvimento tecnológico novos problemas sejam também gerados. Assim, a humanidade depende da tecnologia para resolver os problemas de hoje e continuará dependendo no futuro para resolver os novos problemas que o desenvolvimento tecnológico criará. Neste cenário, uma das principais questões é saber se podemos confiar indefinidamente no desenvolvimento tecnológico.

Descartando-se a hipótese de um colapso geral da civilização humana, hoje unificada sob o signo global, aparentemente não há limites para a evolução científica e tecnológica. Isto do ponto de vista interno das ciências e da tecnologia, porque no amplo espectro do conhecimento e da sabedoria humana sempre haverá questões éticas, políticas, sociais e de outras ordens inacessíveis às cogitações tecnológicas. Tais questões compõem o limite divisório do campo científico e tecnológico. Esse campo é demarcado por linhas tênues, nem sempre respeitadas pelos cientistas e quase nunca pela indústria de produtos tecnológicos.

Controle social e limites éticos da tecnologia: 

A proibição de experimentações visando à clonagem humana é bom exemplo daquilo que foge da alçada científica e tecnológica.  Mesmo que houvesse perfeito domínio técnico e certeza com relação aos aspectos científicos da clonagem, a decisão a respeito da utilização de tal procedimento não compete à ciência e à tecnologia. Nesse caso, os aspectos filosóficos, éticos, jurídicos, religiosos e de tantas outras ordens são de tal monta que a decisão final se dá em nível político, com a aprovação de leis proibindo o uso de tal tecnologia em seres humanos, como ocorreu.

O exemplo é evidente porque o fato é recente e comoveu a opinião pública. Mas é preciso que se percebam com mais clareza os desafios éticos que a tecnologia amiúde propõe. Para tanto, basta assinalar, nesse mesmo campo da reprodução humana, a questão ética e jurídica criada a partir das chamadas "barrigas de aluguel". Uma criança fruto de fecundação in vitro do óvulo de uma mulher cuja gestação se deu no útero de outra mulher... essa criança é filha de quem?; qual das duas mulheres é a sua legítima mãe? A tecnologia possibilitou o nascimento de tais crianças, mas não é capaz de resolver os impasses éticos e jurídicos decorrentes.  Essa incompetência da tecnologia para atribuir significado ético, jurídico e social a seus frutos, e decidir sobre o uso daquilo que inventa, caracteriza um necessário limite de sua atuação que exige permanente controle social.

O mito da tecnologia indispensável

Os novos produtos tecnológicos ajudam na vida das pessoas tanto quanto infernizam. Nesse caso é necessário que cada indivíduo assuma a plena consciência e controle de sua própria vida, discernindo dentre a parafernália tecnológica à sua disposição quais produtos lhe são de fato necessários e para que fins. A propaganda e os modismos, todos sabemos, são maus conselheiros capazes de nos enredar em falsas necessidades.

Para ilustrar esse fato, são interessantes os dados de uma pesquisa divulgada em janeiro de 2007 pelo MIT (Massachussets Institute of Technology). Segundo o estudo, à época quase um terço (30%) dos americanos considerava que os telefones celulares são a invenção mais detestável de todos os tempos, sendo mais odiados que os despertadores, indicados como a invenção mais odiada por 25% dos entrevistados e que a televisão, terceira colocada na lista negra, com 23% de apreciação negativa. Mas esses aparelhos, assim como outros também detestados, são considerados indispensáveis.

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Tais aparelhos adquirem o caráter de fetiche e as pessoas julgam-se incapazes de viver sem eles, quando em muitos casos isto não passa de um mito derivado da propaganda e dos modismos e também da acomodação individual a que nos entregamos.

Deixando de lado o despertador, odiado não por si mesmo porém pelo que representa, possivelmente as pessoas também não odeiam o televisor em si, porém a péssima programação e o grande número de horas que despendem em frente ao aparelho, hipnotizadas, por falta de criatividade e melhores hábitos sobre como usar seu tempo.

E os celulares, amados pelas mágicas que proporcionam em suas telinhas, são detestáveis pela escravização que também impõem.

Quaisquer que sejam os benefícios e os incômodos, não é uma verdade universal que a televisão ou os celulares sejam indispensáveis em nível individual.  Por estranho que pareça, as inovações tecnológicas de fato indispensáveis para o indivíduo são aquelas relacionadas à infraestrutura econômico-social coletiva. Aquelas que, por exemplo, garantem o suprimento energético e alimentar e dos produtos básicos, dentro de padrões de desenvolvimento sustentável. Claro que as telecomunicações, aqui incluídos os celulares e a televisão, são indispensáveis hoje por muitos motivos, inclusive para garantias democráticas. Mas, se é necessário que existam os mais modernos recursos de telecomunicações na sociedade, continua sendo da alçada individual de cada cidadão a decisão a respeito da utilização de tais recursos em sua vida pessoal – e até em que nível.

A manutenção do livre arbítrio na escolha e no nível de adesão ao uso dos diversos produtos tecnológicos é uma dimensão dos limites da tecnologia que deve ser preservado e cabe a cada um cultivar.  Voltando à invenção mais odiada de todos os tempos, trata-se de sandice considerar os celulares absolutamente indispensáveis, não obstante o fato de que tenham atualmente adquirido tal popularidade e que as redes sociais imprimam novos padrões de relações na sociedade. Rigorosamente, celulares somente são de imprescindível uso para pequeno contingente de pessoas em circunstâncias ou períodos específicos; nos outros casos não passa de um mito que circunda este novo fetiche tecnológico, que aliás mais afasta do que aproxima as pessoas. Tais mitos aliás circundam todo o universo das inovações tecnológicas.  Se as pessoas utilizarem os aparelhos tecnológicos criteriosamente, eles serão menos detestáveis e estaremos mais próximos do ideal de desenvolvimento sustentável.


Originalmente publicado no Diário do Comércio. São Paulo, 2007.


Luiz Ferri de Barros é Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Administrador de Empresas pela FGV, escritor e jornalista.

Publica coluna semanal no Empório do Direito às terças-feiras.                                        

E-mail para contato: barros@velhosguerreiros.com.br 


Imagem Ilustrativa do Post: Day 2: Technology // Foto de: Nick Harris // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/nickharris1/8026290210

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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