Os impactos da lei 13.964/19

02/02/2020

Há muito ainda o que desenvolver doutrinariamente sobre a nova lei e é importante esclarecer que o tema não é novo e desde Frederico Marques, ou seja, há 40 anos, já se falava da figura do Juiz de garantias e da necessidade de se fazer cumprir o sistema acusatório no Brasil. Tal modelo evidencia que a função de investigar, acusar e julgar são completamente separadas e estanques. As autoridades responsáveis por impulsionar o processo, devem estar cada uma dentro da sua área de atuação, ou seja, de forma simples, concisa e precisa a expressão quer dizer que cada um deve estar dentro do seu quadrado.  O modelo não é novo e o Brasil não descobriu o ovo da serpente ao promulgar a nova lei, eis que países como Uruguai e Chile já possuem esse sistema operando normalmente e com bons resultados. A Constituição de 1988 já exigia que se alterassem diversos artigos do Código de Processo Penal, código esse elaborado numa época de regime fascista e totalitário. Infelizmente desde 1988, nosso sistema fez vista grossa a essa exigência e, de forma tímida vinha alterando certos dispositivos, mas que na sua totalidade remanescia uma visão ainda muito inquisitória. A reforma, embora pontual, resgata um déficit significativo no tocante a sua estrutura processual.  Nas palavras do Mestre Alexandre Morais da Rosa: “somos uma ilha na América latina que ainda nos valemos de uma lógica autoritária e, que o juiz é pleno e o dono do processo penal”.

A lei em si não reforma integralmente todo o Código, mas altera dispositivos importantes e inaugura a mudança com o artigo 3º A, trazendo uma clara  exigência do respeito ao sistema acusatório.

O processo terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase da investigação e a substituição da atuação probatória do órgão da acusação”.

Tal inovação não enfraquece as Instituições como muitos têm apregoado nas críticas, sem sentido, vazias por puro desconhecimento ou pelos chamados resistentes, e não impede que se olhe o processo como um sistema estratégico das partes, eis que essa visão é difundida no mundo inteiro. Isso só não ocorre com quem enxerga o processo penal como um meio para se buscar a suposta verdade real, algo inacreditável no século XXI.  A mudança é significativa e implica uma alteração em todos os dispositivos do processo penal que precisam ser relidos a luz dessa realidade, inclusive com a vedação de atuações de oficio pelo Juiz.

Um exemplo claro dessa mudança é que não se pode mais ter o mesmo olhar ao artigo 156, inciso I do Código de Processo Penal e mantê-lo subsistente no sistema, pois ele é violador da regra inicial do artigo 3º A, que ilumina toda a interpretação dos demais artigos do CPP. Senão vejamos:

Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:

I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida;

É obvio que teremos o conhecido movimento da sabotagem inquisitória, pessoas que vão continuar insistindo em atuar de forma primitiva como fizeram com o artigo 212 do Código de Processo Penal que preconiza com clareza ímpar de que o Juiz não pode perguntar inicialmente para as partes e apenas complementar o que ficou obscuro. Esse e diversos outros dispositivos são mantidos dessa forma, por anêmica alegação dos Tribunais de que o réu deve provar o prejuízo das meras irregularidades alegadas, quando na verdade, é nítida a presunção de prejuízo para quem está se defendendo de um processo criminal onde forma é e sempre será, garantia de um processo justo.

Em suma, com a nova lei, muda a estrutura processual e se a lei não sofrer alterações políticas, haverá a figura de dois Juízes. Um acompanhará o inquérito, atuando na fase inquisitiva e o outro irá atuar na fase judicial. Esse último, não receberá os autos do inquérito para que não seja contaminado com o que se produziu na fase investigativa e nem com as decisões tomadas pelo Juiz de garantias, exceto é claro, se tiver que tomar alguma decisão sobre uma cautelar com exigência de contraditório diferido. Enfim, temos alterações profundas que exigirão dos profissionais que atuarão no processo diversas mudanças de posturas. O Ministério Público terá que se adaptar e montar uma estrutura parecida com os escritórios de advocacia, caso contrário, perderá tempo, metas e poderá trazer riscos para a sociedade com estrutura pública precária e sem avançar no combate a criminalidade. Por sua vez, os advogados terão que se aperfeiçoar e entender de narratividade, linguagem, falácias, estratégias e investigações defensivas, pois a finalidade do sistema é fazer com que o processo siga seu curso célere de forma oral e não escrito. Enfim, fora a adaptação e ressalvadas as opiniões fora de contexto, estatísticas de rede social e fake news, o sistema processual democrático avança com relativa paridade de armas, ganha em qualidade técnica e, quem ganha mesmo é a sociedade.  

 

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