“Os Fundamentos Éticos do Devido Processo Penal” – breves comentários sobre a obra  

10/06/2018

Um livro primoroso que diz muito. A pretensão crítica manifestada pelo autor na apresentação da obra é alcançada com notório sucesso, sendo isso facilmente percebido pelo leitor logo nas primeiras linhas do livro. Conforme se destaca ainda na apresentação, indaga o autor: "quantos de nós terá coragem de abdicar de suas certezas passadas para buscar algo mais consistente no presente? Ou pelo menos questionar aquelas verdades, para certificar-se de que ainda o são?". Essa frase pode ser apontada como sendo o mote daquilo que o autor constrói nas linhas que compõem o livro, pois é através desse juízo crítico de repensar as coisas (as certezas passadas que imperam no âmbito jurídico) que se põe o Direito (tal como se manifesta através de seus operadores, em especiais os juízes) à prova.

A obra é um clássico primoroso, cativante desde o prefácio, quando Ranulfo de Melo Freire, desembargador aposentado do TJSP, ao invés de apresentar o livro, resolve expor seu autor, tal como o vê, destacando que “Adauto não negava ao réu o que a lei não negava...”, o que demonstra o respeito que o autor nutria com o devido processo penal e à condição de réu.

Conforme prefaciado, Adauto SUANNES julgava com base em princípios humanísticos, os    retirando até mesmo de uma Constituição de um período autoritário.

Muito embora, o autor tenha se aposentado precocemente no ano de 1983, antes, pois, da Constituição Federal de 88, ele já era um visionário em defesa do devido processo penal fundado na dignidade da pessoa humana, que “nada mais será que a “eticização” da conduta do Estado enquanto ocupado na prevenção e repressão das condutas desviantes”. Vale dizer, que em Os Fundamentos Éticos do Devido Processo Penal, com sua primeira edição em 1999, o autor expôs o conservadorismo que vai do Supremo Tribunal Federal ao juiz de primeiro grau, no que diz respeito aos direitos e garantias que devem (ou pelo menos deveriam) ser determinantes do devido processo penal.

Em que pese o tom modesto do autor, o resultado de seu trabalho é excepcional. Aquilo que menciona buscar expor em seu trabalho, a saber, "indicar que (grande? pequena?) parte de nossos juízes, inclusive e principalmente os de nossa Suprema Corte, manifesta, em seus votos, uma indisfarçável má-vontade - para dizer o mínimo - para com os direitos fundamentais do acusado, tornando-se eles, em termos práticos, nada obstante preceitos constitucionais claros, letra-morta", é realizado de maneira única: pontual, certeira, clara e crítica.

A divisão do livro é algo que merece destaque. A forma concatenada com a qual se constrói o raciocínio do autor leva o leitor a compreender inicialmente as bases daquilo que está a se falar, possibilitando uma compreensão mais precisa das amargas e necessárias críticas presentes ao longo da obra. Estabelecendo suas diretrizes desde a compreensão de "ética, religião e direito" (primeiro capítulo), os direitos humanos vistos hoje (ou como deveriam ser vistos) são também firmados a partir de grandes pactos políticos da sociedade - ainda antes da nossa Constituição Federal, dentre eles a "grande carta das liberdades" (trabalhada no terceiro capítulo), a Constituição norte-americana (que é analisada no quarto capítulo) e a "Declaração norte-americana dos direitos fundamentais" (presente no quinto capítulo). Assim, tendo estabelecido a questão, o autor passa a tratar de tudo aquilo que decorre dos fundamentos éticos do devido processo penal, explicando cada ideia e criticando o desrespeito à estas - cada qual sendo trabalhada em capítulo próprio: "o processo penal justo", "a indevida publicidade dos atos investigatórios", "a indispensabilidade do advogado", "o dever de fundamentar as decisões judiciais", "a irrelevância dos antecedentes criminais do réu", "os limites subjetivos da coisa julgada criminal" e "o direito do réu ao silêncio". Por meio de exemplos de decisões concretas, uso de precisas metáforas e fundamentos legítimos naquilo que se pode chamar de Estado Democrático de Direito, o autor tece diversos apontamentos críticos para denunciar o estado de coisas presente no Judiciário (mas não apenas nele, pois os demais "atores jurídicos" também são admoestados no decorrer do livro) que não levam em conta os expostos fundamentos éticos do devido processo penal.

Curioso é que, as críticas apontadas pelo autor ainda continuam vivas no modo de operar o processo criminal no Brasil. Infelizmente, o contraditório é tratado como “mera sucessão de formalidade”, não tendo o peso de um princípio constitucional. Na maioria das vezes, o juiz se coloca em posição distante do réu, quando é essencial “saber ouvir, adequando os fatos aos meios e tirar de si a solução”. Para SUANNES é imprescindível que “esse processo seja presidido por alguém que efetivamente acredita na inocência do acusado”. Apesar de a última frase ter sido escrita há mais de quinze anos, é impossível não relacioná-la ao cenário atual, quando punir é a palavra de ordem.

Igualmente, o autor se preocupava com eventuais constrangimentos do indiciado no inquérito policial, tendo em vista a divulgação da investigação na mídia, quando a autoridade policial deveria agir com discrição, já que se trata de hipóteses com classificação provisória. Todavia, esse tipo de comportamento tende a ser comum, transformando a investigação em uma condenação antecipada.

Para Adauto SUANNES, o processo penal justo (capítulo sexto) só encontra razão na humanização do processo, não na busca da verdade real a qualquer preço, mas sim na superação da dúvida. Sendo assim, a evidência não dispensa instrução criminal.

Vemos que em cada capítulo do livro, o juiz aposentado confronta a forma que é desenvolvida o processo e como ele pode ser desigual ao réu, por exemplo, quando uma decisão judicial leva em consideração “os maus antecedentes criminais”. Também, se mostra contrário ao fornecimento de certidão do distribuidor criminal, apontando os inquéritos e processos em trâmite de uma determinada pessoa, sem condenação transitada em julgado. Fora a falta de fundamentação das decisões judiciais, pois há juízes que resumem as alegações da parte, deixando de constar pontos importantes ou julgando a partir da invocação de fatos estranhos à documentação processual. Nas palavras de Adauto: “O juiz deve estar próximo dos autos, não dos fatos”.

De maneira direta a obra vislumbra pontos até hoje discutidos, como o fato do Ministério Público ter o poder de pré-constituir provas pessoalmente ao seu favor, deixando de lado aquelas que contrariem seus objetivos, sem falar no direito ao silêncio, ainda interpretado em desfavor do réu, não obstante ser proibida tal compreensão.

O trabalho expõe que o princípio da ampla defesa não é tão amplo para uma parte (grande? pequena?) de juízes brasileiros, diferentemente do juiz americano, que segundo o autor: “A preocupação principal do juiz americano é assegurar a todos um efetivo contraditório, e em cada espécie concreta à Corte cabe verificar que a oportunidade de defesa tenha sido realmente plena, não permitindo a supressão ou a limitação das provas”.

Enfim, Adauto SUANNES denuncia a insensibilidade de uma parcela de julgadores e a necessidade de dar ao devido processo penal o alcance que o próprio nome diz, vez que este está ligado, na visão do autor, a uma conquista da humanidade, se relacionando com a dignidade da pessoa humana e não mais à segurança do Estado.

O livro é certeiro. A leitura é agradável - incômoda para alguns, com toda a certeza, mas devida e necessária. Diante de todos os apontamentos críticos que estão presentes na obra, a conclusão do autor não poderia ser outra: "a divulgação de uma ideologia dos direitos humanos [...] contribuirá para a diminuição dos abusos praticados pelas autoridades constituídas, em especial aquelas encarregadas da segurança pública e do julgamento dos acusados". O livro contribui para esse fim. Sua leitura, portanto, é salutar e necessária. 

Notas e Referências

SUANNES, Adauto. Os Fundamentos Éticos do Devido Processo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Tribunal de Justiça do Estado // Foto de: Eli Kazuyuki Hayasaka // Sem alterações

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