OS FILHOS DO ESTADO

11/02/2020

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Rêgo, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Vivian Degann

É cruel pensarmos que vivemos em uma sociedade que invisibiliza pessoas. E é nefasta a compreensão de que, ao pararmos no sinal de trânsito, fechamos os vidros a fim de eliminarmos qualquer possibilidade de contato que nos iguale àqueles “subumanos” “sujos” e “malvestidos” que habitam as ruas e vivem das migalhas, muitas vezes, sonegadas pelas classes mais abastadas. Diferente das migalhas que, poeticamente, levam João e Maria a um caminho de novos desafios na floresta de seu conto de fadas, estas servem apenas para massagear o ego daqueles que executam uma falsa caridade, pois jamais concebem uma possibilidade de justiça social.

Como canta Caetano, “enquanto os homens exercem seus podres poderes”[1], há crianças, adolescentes e jovens “vendendo drops no sinal para alguém”[2], como denunciam Lenine e Moska. Este fato social consiste somente na ponta do iceberg acerca da tamanha desigualdade que encontramos na nossa sociedade. Entretanto, estas desigualdades têm uma raiz mais profícua, se assim quisermos entender o que pode existir por trás de tamanho descaso estatal.

Historicamente, os cuidados destinados a crianças e adolescentes, no país, apresentou um viés paternalista, assistencialista e higienista. Em discurso, na data de 11 de setembro de 1896, o então Senador Lopes Trovão declarou: “Temos uma pátria a reconstruir, uma nação a firmar, um povo a fazer... e para empreender essa tarefa, que elemento mais dúctil e moldável a trabalhar do que a infância?!...” (RIZZINI, 2008). Neste discurso, a criança deixa de ocupar uma posição secundária na família e passa a ser percebida como um valioso patrimônio da nação, podendo ser moldada e transformada em benefício da sociedade. Assim como os projetos seguintes, ao longo da história do Brasil, as ações do Estado brasileiro só incidiam desta forma sobre crianças e adolescentes de origem pobre. Os filhos da aristocracia não eram, assim, alvo destas ações de controle.

Com o intuito de salvar a criança e embasado nos discursos médico e jurídico, logo no início do século XX, foi promulgada a primeira lei especificamente voltada para o público infanto-juvenil no Brasil. A hipótese sobre o Código de Menores de 1927 era de que se tratava de um projeto essencialmente político, pois era necessário proteger a infância como forma de proteger a sociedade. O discurso era considerado ambíguo, pois ao mesmo tempo que se falava em proteger as crianças e adolescentes, se defendia a ideia de contê-las, a fim de que não causassem desordens à sociedade.

Crianças e adolescentes em situação de rua, como os que crescem em número ocupando os sinais de trânsito hoje, deveriam, sob a vigência do Código de Menores de 1927, ser encaminhados para setores que as viam sob a ótica de um reformador, ou seja, um agente do Estado que atuava no sentido de atender as demandas de ordem social destas crianças e, ao mesmo tempo, torná-las úteis à sociedade. Sendo assim, a partir de 1940, estes sujeitos eram encaminhados para o Serviço de Assistência ao Menor – SAM, órgão cujo objetivo era o de sistematizar e orientar a assistência às crianças e adolescentes. Os “menores desvalidos” e os “infratores e delinquentes” eram internados em estabelecimentos do Estado ou financiados pela iniciativa privada. Esta instituição tentou associar as práticas corretivas e punitivas às atividades de cunho pedagógico, mas a medida acabou se restringindo a internação e a ideia fracassou absurdamente (BRASIL, 1984).

Com o histórico de violações no SAM e com as ações do Estado brasileiro durante a Ditadura Militar, as décadas de 1960 e 1970 foram de muitas contestações, por parte da sociedade civil, em relação aos cuidados voltados para este público (MARCÍLIO, 2006). Em 1964, mesmo ano do golpe civil-militar, o Estado autoritário criou a Fundação Nacional do Bem Estar do Menor (FUNABEM) e, em 1979, foi instituído o Novo Código de Menores, através da Política Nacional de Bem Estar do Menor (PNABEM), que estabelecia a consagração da Doutrina da Situação Irregular, mais uma vez, fazendo da criança e do adolescente pobres, objetos de intervenção. Este seguimento populacional continuou sendo institucionalizado pelo pai Estado que mais violava do que, propriamente, amparava estes sujeitos em suas demandas por direitos básicos.

Durante a década de 1980, houve uma grande mobilização por parte dos trabalhadores que lidavam com este público para tentar romper com o atendimento institucionalizado e passaram a realizar os atendimentos a estas crianças e adolescente na rua, ou seja, no seu espaço de convivência. Edifica-se, com isso, a Educação Social da Rua, como método de trabalho assistencial voltado para esta categoria (OLIVEIRA, 2004).

Na sequência, acende-se uma luz, pois, em 1990, a partir do período de redemocratização, foi instituído o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. Esta legislação, sob o manto da Doutrina da Proteção Integral, se destina a incidir sobre todas as crianças e adolescentes do país, independente de sua condição financeira ou de classe, tornando-as sujeitos de direitos, não apenas objetos de intervenção do Estado. Conforma-se, portanto um novo olhar e uma nova política para a infância e a adolescência no Brasil, de modo que as ações do Estado deveriam garantir os direitos fundamentais acerca deste público. Esta é a legislação que continua vigente até os dias atuais.

Esta retomada histórica acerca das legislações direcionadas para estas pessoas justifica-se para entendermos o lugar deste público na sociedade atual. Ao nos depararmos com o crescimento do número de famílias inteiras pedintes nos sinais, a maioria delas com crianças socialmente vulneráveis, precisamos refletir sobre os cuidados do Estado Democrático de Direitos diante deste público. Mais do que isso, precisamos problematizar sobre o olhar da sociedade em relação a estas crianças e adolescentes.

A própria condição de pobreza na qual se encontram estas famílias, como resultado do desastroso desmonte das políticas públicas atuais precisa ser considerado. Por que cada vez mais pais e mães seguram seus bebês no colo e se aproximam dos nossos carros quando paramos nos sinais de trânsito? O que você, leitor, sente diante disso? O que o governo de ultradireita pensa acerca destas famílias e, mais especificamente, de seus filhos? Por que vemos muito mais o aparato policial de forma ostensiva e menos as ações de socioassistenciais direcionadas a este público?

Retomando as palavras de Irene Rizzini, acima citadas, como proteger estas crianças, se o que queremos é contê-las? Vivemos sem opção, sob as regras do modo de produção capitalista, no qual os pobres da nossa sociedade, são dispensáveis e isso se estende a seus filhos, por isso o incômodo em relação às crianças nos sinais de trânsito. Seria melhor não vê-las. A sociedade é somente o reflexo do aparelho estatal, que se reveste de uma moralidade higienista e passa a atuar de forma a conter esta população sobrante não com o intuito de ressignificar estas pessoas dentro de sua humanidade, mas com o objetivo de desumanizá-las, assujeitá-las, fazendo doer na carne em detrimento da sua infeliz existência. E fazemos isso, não só quando as institucionalizamos, mas principalmente, quando fechamos nossas portas para este público, quando nos negamos a cobrar do poder público ações efetivas que garantam os direitos destas crianças e adolescentes.

Esta reflexão é necessária porque nos faz pensar sobre o lugar destinado às infâncias e às adolescências no nosso país, em face das frequentes ameaças que estes sujeitos vêm sofrendo com o atual governo antidemocrático, que cerceia direitos, por exemplo, defendendo o trabalho infantil e preconizando a necessidade de reduzir a imputabilidade penal para os 16 anos, quando o ECA determina que deve ser aos 18 anos. Perguntamos, com isso, a qual infância e a qual adolescência recairão as consequências nefastas destes retrocessos.

Mais uma vez serão atingidos os seguimentos pobres da nossa sociedade. Com estas prerrogativas, crianças poderão ser cada vez mais exploradas pelo trabalho e, na sequência, serão encarceradas pelo poder penal legitimado pelo Estado Democrático de Direito, este “pai” ausente que atua violando direitos, seja pela negligência ou mesmo pela violência física que fere não só a pele, mas também a dignidade destes meninos e meninas que erram as cidades na tentativa de garantir suas sobrevivências.

Se existe uma forma destes “sujeitos de direito” ganharem a visibilidade da sociedade, é exatamente quando eles recorrem a isso da forma mais perversa que o Estado pode conceber, ou seja, através da prática infracional. Com a ruptura das normativas sociais, estes(as) adolescentes deixam de ser invisíveis para causar temor aos “cidadãos de bem”, ou seja, à parte “boa” da sociedade, aquelas mesmas pessoas que param nos sinais e oferecem seus vidros fechados ou uma migalha de trocado como forma de caridade. Esta mudança no olhar sobre estes sujeitos é o desenho do que é definido como invisibilidade perversa, adolescentes sendo colocados como metáfora da violência, como se eles, e somente eles, fossem os grandes responsáveis pelas situações de violência na nossa sociedade. (SALES, 2007). Violência que, de tanto eles sofrerem, eles passam a praticar, na cruel tentativa de serem vistos, somente.

Vemos que, com frequência, este “pai” ausente recorre ao autoritarismo, através do aparato policial, e cada vez mais adolescentes e jovens de origem pobre vem sendo alvos diretos das ações da política penal que atravessa suas vidas, deixando marcas em suas histórias e dores em suas famílias. Este Estado, que institucionaliza mais uma vez estes meninos e meninas, atua de forma avassaladora, desautorizando mães, pais, avós da sua condição de provedores(as) destes sujeitos ainda em desenvolvimento.

Diante destas reflexões, precisamos desnaturalizar a visão destes(as) adolescentes como criminosos. É preciso refletir sobre suas histórias de vida, sobre como e por que chegaram até estes comportamentos. É tarefa nossa não só nos compadecermos, mas somar forças junto a esta população e cobrar do poder público políticas sociais que amparem estas crianças, adolescentes, jovens e suas famílias. A justiça social é uma medida mais do que necessária na nossa sociedade para minimizarmos os efeitos do sistema capitalista, que desumaniza estas pessoas.

 

Notas e Referências

BRASIL. FUNABEM, ano 20. Ministério da Previdência e Assistência
Social/MPAS. FUNABEM, 1984.

BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 16 de julho de 1990.

MARCÍLIO, M. L. História Social da Criança Abandonada. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Edições Ltda, 2006.

OLIVEIRA, W. F. de. Educação social de rua: as bases políticas e pedagógicas para uma educação popular. Porto Alegre: Artmed, 2004.

RIZZINI, I. O século perdido: Raízes Históricas das Políticas para a Infância
do Brasil. São Paulo: Cortez, 2008.

SALES, M. A. (In)Visibilidade perversa: adolescentes infratores como
metáfora da violência. São Paulo: Cortez, 2007.

[1] Podres poderes: composição de Caetano Veloso lançada em 1984, no álbum Velô.

[2] Relampiano: composição de Lenine em parceria com Paulinho Moska, lançada em 1997, no álbum Contrasenso.

 

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