Os dramas novelescos da execução e o efeito Keneth Smith

28/02/2024

Eu tive um pesadelo. Há muito tempo. Eu era jovem e cheio de ideais. Ainda sou. Sempre. No pesadelo, eu fui condenado a pena de morte e tentava provar a todo custo a minha inocência. O Estado não acreditou em mim. Ninguém acreditava. As minhas palavras não valiam nada. A única coisa a meu lado era a minha esperança em não ser executado.

A execução da pena é a parte mais dolorosa do processo penal. As agruras do sujeito privado de liberdade reverberam com força total. A execução é a da pena privativa de liberdade. Mas no caso da pena de morte, é a execução da pena privativa de vida. Jogos de palavras à parte, temos que redimensionar a execução penal no Brasil e no mundo.

A pena de morte é a morte da pena. Senão, vejamos. Uma das funções da pena é ressocializar o condenado. Isso atende pelo nome de prevenção especial positiva. Quando o Estado-execução efetua a sua pretensão executória, ele pretende reabilitar o hóspede prisional, situação essa que não ocorre quando a pena de morte é aplicada contra alguém.

Dworkin criou o conceito de novela em cadeia (chain novel/la novela en cadena). Eu falo em cadeia em novela, isto é, os dramas da execução penal são dramas novelescos. Apenados que contraem doenças incuráveis no cárcere, mães que se deslocam grandes distâncias para a visitação do filho, esposas que choram na porta do presídio porque a saída temporária de seus maridos não foi deferida pelo juiz etc.

A pena não pode passar da pessoa do condenado. É isso que nos diz o princípio da intranscendência da pena, no entanto, ela acaba passando e respinga em outras pessoas. Quando uma mãe é submetida a uma revista vexatória no presídio, toda essa principiologia cai por terra e nos deparamos com mais um drama da execução penal.

A pena é um dispositivo de poder que não é autoexecutável. Ela precisa de um instrumento para cumprir essa função. Dessa maneira, o processo de execução penal se revela como o empreendimento capaz de executar as penalidades impostas ao sentenciado.

A pena sempre passa da pessoa do condenado. Por isso o que podemos falar é de uma transcendência mínima e não de uma intranscendência como a doutrina explica em seus manuais. Os efeitos nocivos do cárcere se refletem de forma acachapante no corpo e na mente do hóspede prisional. A pena privativa de liberdade acaba se convertendo em uma pena privativa de dignidade.

Em 25/01/2024, o condenado Keneth Smith foi executado no estado do Alabama nos Estados Unidos. A execução ocorreu pela inalação de nitrogênio. Uma execução inédita nos anais da história do Sistema de Justiça Criminal. O Alto Comissariado das Nações Unidos pelos Direitos Humanos qualificou o método como tortura. Os advogados de defesa tentaram suspender o plano de execução, mas não houve êxito[1].

O sujeito prisional, especialmente aquele que se encontra no corredor da morte, apenas espera o dia de sua execução. Não há mais vida. Até mesmo a esperança desaparece. No meu pesadelo, eu ainda tinha esperança. O efeito Keneth Smith acontece quando ninguém mais consegue interceder pela vida do detento.

Sou militante na execução penal há mais de sete anos e não tenho dúvida que estou na carreira certa. A minha missão de vida é lutar pelos direitos dos nossos encarcerados. Sempre tive em mente que até mesmo um crime cometido contra um dos meus familiares, qualquer que seja o crime ou qualquer que seja o familiar, nunca poderia ser punido com a pena de morte. Eu vivo aquilo que eu acredito.

 

Notas e referências

[1] BATEMAN, Tom. O que disse o 1º preso executado por asfixia com nitrogênio nos EUA. BBC. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw4q930n1kdo. Acesso em 23/01/2024.

BATEMAN, Tom. O que disse o 1º preso executado por asfixia com nitrogênio nos EUA. BBC. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw4q930n1kdo. Acesso em 09/02/2024.

 

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