Os Consórcios Públicos e o regime jurídico de seus servidores – inovações legislativas  

07/02/2019

 

Desde o advento da Emenda Constitucional 19/98, que deu nova redação ao artigo 241[1] da Constituição Federal, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios ansiavam por instrumento legislativo apto a legitimar a cooperação federativa para a realização de objetivos de interesse comum.

Trata-se da figura dos consórcios públicos, cuja base infraconstitucional somente surgiu com a Lei Federal nº 11.107/05, regulamentada pelo Decreto nº 6.017, de 7 de janeiro de 2007, estabelecendo mecanismos de gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade das atividades transferidas.

Por meio dos consórcios, entes políticos, limitados em recursos, criam uma nova entidade, com personalidade jurídica própria e autonomia, com especial finalidade de prestar um serviço público, no que se passou a denominar “gestão associada do interesse comum”, praticando atos em seu nome e participando diretamente das relações jurídicas.

Da Justificativa do respectivo Projeto de Lei n º1.071/99, de autoria do Deputado Federal Rafael Guerra do PSDB/MG, extrai-se que o estabelecimento de normas gerais pertinentes aos Consórcios Públicos visava a solucionar os problemas já verificados, sobretudo na área da saúde, como forma de racionalizar “investimentos, recursos humanos e gastos de custeio através da elaboração de uma escala de produção de serviços, evitando duplicação e desperdício”, uma vez que “melhoram substancialmente a capacidade resolutiva de seus partícipes”.

Isso porque, a despeito dos muitos deveres de prestar serviços públicos essenciais, de forma direta, o Poder Público se via, circunstancialmente, restringido pelos insuficientes fatores materiais necessários a atender à demanda coletiva.

Obviamente, a prestação positiva dos serviços imprescindíveis à sociedade não é facultativa à Administração Pública, que, por fatores econômicos se vê obstada de realizá-los a contento, com drástica redução de projetos e investimentos em áreas necessárias ao desenvolvimento social e intersubjetivo.

A concretização eficiente de competências materiais constitucionais era impraticável aos Municípios mais carentes, de arrecadação e orçamento limitados.

A união de esforços e recursos, pela via dos Consórcios Públicos, mostrou-se uma alternativa otimizadora, adequada, eficiente e, desde 2005, lícita, de cooperação interfederativa, na consecução de políticas públicas e implantação de melhoria das condições de vida da população local.

Por expressa determinação da Lei nº 11.107/2005, os Consórcios Públicos podem ser constituídos de duas formas distintas: associação pública ou associação civil, com personalidade jurídica de direito público e de direito privado, respectivamente, conforme constar do seu Protocolo de Intenções.

A adoção de regime de direito público ou privado importará em impactantes e distintos tratamentos jurídicos, como se nota do artigo 6º[2] da Lei Federal nº 11.107/2005.

O Decreto Federal nº 6.017, de 7 de janeiro de 2007, por sua vez, estabelece que os consórcios públicos de direito público terão natureza autárquica e os de direito privado serão entidades sem fins econômicos.

Assim, os Consórcios com personalidade de direito público, por serem autarquias (consorciais), merecem disciplina jurídica peculiar, além de integrar a Administração Indireta dos entes consorciados.

Nesse sentido, o “consórcio público com personalidade jurídica de direito público integra a administração pública indireta dos entes consorciados, ficando excluídos os consórcios públicos criados como pessoa jurídica de direito privado.” (DIAS, 2008, p. 99).

A controvérsia doutrinária ainda recai sobre a inserção dos consórcios que ostentam personalidade jurídica de direito privado na administração pública indireta. A propósito, é o entendimento de MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO:

Embora o artigo 6º só faça essa previsão com relação aos consórcios constituídos como pessoas jurídicas de direito público, é evidente que o mesmo ocorrerá com os que tenham personalidade jurídica de direito privado. Não há como uma pessoa jurídica política (União, Estados Distrito Federal e Municípios) instituir pessoa jurídica para desempenhar atividades próprias do ente instituidor e deixa-la fora do âmbito de atuação do Estado, como se tivesse sido instituída pela iniciativa privada. Todos os entes criados pelo Poder Público para o desempenho de funções administrativas do Estado tem que integrar a Administração Pública Direta (se o ente for instituído como órgão sem personalidade jurídica) ou Indireta (se for instituído com personalidade jurídica). Até porque o desempenho dessas atividades dar-se-á por meio de descentralização por serviços. (DI PIETRO, 2005a, p.4-5).

A definição da natureza jurídica de cada uma das modalidades consorciais é relevante, senão imprescindível, à perfeita subsunção do regime jurídico apropriado. Contudo, a Lei nº 11.107/2005 não foi feliz em tal mister.

Ao permitir que os entes federados, no ato de constituição do Consórcio, elejam a forma associativa pública ou privada, acabou-se por permitir que, dentro de um mesmo instituto jurídico, surjam cenários diametralmente opostos.

A própria faculdade de ser ente público ou privado já é questionável pela Doutrina.

ODETE MEDAUAR e GUSTAVO JUSTINO DE OLIVEIRA entendem não ser adequado permitir que o Consórcio Público ostente natureza jurídica de direito privado, pois composto por pessoas políticas de direito público, senão vejamos: “desperta estranheza a modelagem de pessoa jurídica de direito privado, pois o consórcio agrega pessoas jurídicas de direito público, reunidas para realizar fins de interesse comum[3]”.

Ademais, as múltiplas consequências jurídicas e econômicas decorrentes da eleição de um ou outro regime nem sempre são de conhecimento dos pequenos Municípios, que optam por se reunir em Consórcios Públicos.

Da mesma forma, a lei não é clara quanto ao regime jurídico a ser estabelecido entre o Consórcio Público e os agentes públicos a ele vinculados, concursados, vale dizer, se serão regidos por estatuto próprio ou regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Veja-se que o §2º do artigo 6º da Lei Especial estabelece, expressamente, que a admissão de pessoal dos Consórcios Públicos revestidos de personalidade jurídica de direito privado será regida pela Consolidação das Leis do Trabalho – CLT.

Nada fala, entretanto, quanto aos Consórcios Públicos de direito público.

Parte da Doutrina defende que a interpretação contrario sensu deste dispositivo informa que a admissão de pessoal pelo regime da CLT não é obrigatória, senão facultativa, aos consórcios de natureza autárquica, o que permitiria a esses a adção do regime estatutário.

Por evidência, um e outro regramento possuem suas peculiaridades, o que demandaria cautelosa ponderação na sua escolha, caso se entenda ela possível.

Isso porque, o regime celetista possui características próprias, que se antagonizam com as do regime estatutário.

A partir da leitura do artigo 7º, caput da Constituição Federal de 1988 e seus trinta e quatro incisos, apenas quatorze são extensíveis aos servidores ocupantes de cargos públicos, conforme estabelece o artigo 39, § 3º[4] da Carta Magna.

A título de ilustração, o empregado público não goza do direito à estabilidade no emprego, a despeito de sua demissão dever ser motivada. O servidor público estatutário, por outro lado, adquirirá o direito à estabilidade, desde que aprovado em avaliação especial de desempenho, após três anos de efetivo exercício do cargo público de provimento efetivo.

O inciso II do ora analisado artigo 7º prevê o seguro desemprego, em caso de desemprego involuntário, o que não vale para o servidor público estatutário, vez que, para este, a demissão do serviço público, após adquirida a estabilidade, só ocorrerá em virtude do cometimento de uma conduta caracterizada na lei como geradora de demissão (uma falta de natureza grave), apurada por meio de regular processo administrativo disciplinar.

No inciso III do artigo7º, a Constituição previu o fundo de garantia do tempo de serviço – FGTS, que não se aplica aos servidores públicos civis sujeitos a regime próprio.

O aviso-prévio proporcional ao tempo de serviço é incompatível com o regime estatutário a que são submetidos os servidores públicos estatutários, vez que não haverá dispensa imotivada para essa categoria de trabalhadores.

O próprio conceito de remuneração, para um e outro, é distinto. No âmbito do direito laboral, seu conceito vem prescrito no artigo 457 da CLT[5], sendo que, para o empregado, a remuneração corresponde à soma do salário devido e pago pelo empregador.

Para o servidor público estatutário o conceito de remuneração é outro. De acordo com o artigo 41 da Lei 8.112/90: "Remuneração é o vencimento do cargo efetivo, acrescido das vantagens pecuniárias permanentes estabelecidas em lei.".

Assim, vencimento é o valor fixado em lei para retribuição de cargo público; remuneração compreende a soma do vencimento com os adicionais de caráter individual, demais vantagens relativas ao local de trabalho.

São vários os pontos de divergência entre os regimes, que exigem dos entes públicos que desejam constituir Consórcio Público a delicada eleição de um ou outro.

Atento às dificuldades decorrentes da divergência hermenêutica quanto às regras que disciplinam o vínculo entre Consórcios Públicos de direito público e seus servidores, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 2543/2015, de autoria do Senador Fernando Bezerra Coelho - PSB/PE, que visa alterar a redação do § 2º do art. 6º da Lei nº 11.107/2005, para estender aos Consórcios de natureza autárquica a obrigatoriedade do regime celetista.

Cabe aos procuradores e entes consorciados se atentarem às alterações legislativas que estão por vir.

 

Notas e Referências

[1] Art. 241 da CF. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos.

[2] “Art. 6º. O consórcio público adquirirá personalidade jurídica:

I – de direito público, no caso de constituir associação pública, mediante a vigência das leis de ratificação do protocolo de intenções, disciplinar por lei a sua participação no consórcio público;

II – de direito privado, mediante o atendimento dos requisitos da legislação civil.

  • 1º O consórcio público com personalidade jurídica de direito público integra a administração indireta de todos os entes da Federação consorciados.
  • 2º No caso de se revestir de personalidade jurídica de direito privado, o consórcio público observará as normas de direito público no que concerne à realização de licitação, celebração de contratos, prestação de contas e admissão de pessoal, que será regido pela Consolidação das Leis do Trabalho – CLT.”

[3] MEDAUAR, Odete; OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Consórcios Públicos: comentários à Lei 11.107/2005. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

[4] "Aplica-se aos servidores ocupantes de cargo público o disposto no art. 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX, podendo a lei estabelecer requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo o exigir.".

[5] Art. 457 - Compreendem-se na remuneração do empregado, para todos os efeitos legais, além do salário devido e pago diretamente pelo empregador, como contraprestação do serviço, as gorjetas que receber.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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