A pandemia do novo coronavírus, para além de outros ramos do Direito, se fez sentir com força na esfera trabalhista, visto que as medidas de distanciamento social adotadas pela Administração Pública com base em diversos atos normativos para enfrentamento da crise sanitária ocasionaram severo impacto econômico na execução de inúmeros empreendimentos geradores de emprego e renda. Para se evitar o desemprego em massa e a perda de renda e do padrão de vida do brasileiro, o governo federal lançou mão de algumas medidas provisórias que criaram planos emergenciais para o enfrentamento dos efeitos da crise sanitária nas relações de trabalho.
Destacam-se as medidas provisórias nº 927/20[1], que tratava das medidas trabalhistas que poderiam ser adotadas com o declarado objetivo de preservar o emprego e a renda, e a nº 936/20[2], que trazia a possibilidade de redução proporcional de salário e de jornada de trabalho e a suspensão do contrato por acordo individual e negociação coletiva mediante o pagamento de benefício emergencial governamental. A primeira já caducou em virtude de não ter sido convertida em lei pelo Congresso Nacional no prazo de 120 dias. Já a segunda foi convertida na Lei nº 14.020/20.
O artigo 7º, caput, da Lei nº 14.020/20[3] prevê que, durante o estado de calamidade pública, poderá haver a redução proporcional de jornada e de salário de forma setorial, departamental, parcial ou na totalidade dos postos de trabalho por 90 dias, podendo tal prazo ser prorrogado por ato do Poder Executivo. Já o artigo 8º da mesma lei prevê que, de forma setorial, departamental, parcial ou na totalidade dos postos de trabalho, os contratos de trabalho poderão ser suspensos pelo prazo máximo de 60 dias, prazo fracionável em até 02 períodos de 30 dias. O prazo máximo de suspensão dos contratos também ser prorrogado por ato do Poder Executivo. Essas medidas podem ser adotadas, a depender de certas condições previstas na lei, via negociação individual com os empregados ou convenção ou acordo coletivo de trabalho. Conforme o artigo 16 da Lei nº 14.020/20, as medidas de redução proporcional de jornada e de salário e de suspensão do contrato de trabalho podem ser adotadas de maneira combinada desde que não excedam o prazo máximo de 90 dias. O prazo também pode ser prorrogado por ato do Poder Executivo.
A adoção das tais medidas emergenciais possui como condição “sine quae non” a contrapartida governamental, via Ministério da Economia, que, ao mesmo tempo, preserve a fonte de renda do trabalhador e sirva de refrigério econômico para o empregador: o pagamento do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda – BEPER (artigo 5º da Lei nº 14.020/20) e, no caso empregado intermitente, do Benefício Emergencial, no valor de R$600,00 (artigo 18 da Lei nº 14.020/20).
No que diz respeito ao BEPER, o empregador deverá informar ao Ministério da Economia a medida emergencial que adotou no prazo de 10 dias, isso para que a primeira parcela do benefício seja paga no prazo de 30 dias a contar da celebração do acordo (artigo 5º, § 2º, da Lei nº 14.020/20). Se o empregador não cumprir as suas obrigações legais de informação ao Governo Federal ou aplicar a medida emergencial sem a observância dos seus requisitos legais, ficará responsável pelo pagamento da remuneração no valor anterior à redução da jornada de trabalho e do salário ou à suspensão temporária do contrato de trabalho do empregado, inclusive dos respectivos encargos sociais e trabalhistas (artigo 5º, § 3º, I, da Lei nº 14.020/20).
Quanto ao Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda – BEPER, o artigo 6º da Lei nº 14.020/20 estabelece que ele é calculado com base no valor do benefício do seguro-desemprego que o empregado faria jus à data da implementação da medida emergencial. Já o § 2º do artigo 6º estabelece que certos empregados, por já estarem recebendo benefícios da Previdência social, seguro-desemprego ou bolsa de qualificação da Lei 7.998/90 ou receberem remuneração em razão do exercício de alguma função pública da Administração Direta ou Indireta, não receberão o BEPER.
Posteriormente à Lei nº 14.020/20, o Poder Executivo Federal editou dois decretos para regulamentá-la. O primeiro foi o Decreto nº 10.422/20[4] que em seu artigo 2º acresceu de mais 30 dias o prazo máximo de celebração da redução proporcional de jornada de trabalho e salário. Somado com o prazo original da lei, a medida poderia ser adotada por 120 dias. Já o artigo 3º do mesmo decreto federal acresceu de mais 60 dias o prazo máximo de suspensão dos contratos de trabalho, sendo que o prazo máximo passou a ser de 120 dias. O artigo 4º estabeleceu que as medidas combinadas não poderiam exceder de 120 dias. O artigo 6º diz que o empregado intermitente faria jus a mais 01 mês de benefício emergencial de R$600,00.
Já o segundo decreto, de nº 10.470/20[5], editado em 24 de agosto de 2.020, nos artigos 2º e 3º acresceu de mais 60 dias os prazos para a redução proporcional de jornada e de salário e para a suspensão dos contratos de trabalho, de modo a completar o prazo máximo de 180 dias já levando em consideração os prazos da Lei nº 14.020/20 e do Decreto nº 10.422/20. O artigo 5º ainda estabelece que o trabalhador intermitente fará jus a mais 02 meses de Benefício Emergencial. Os prazos das medidas emergenciais devem observar o período de duração do estado de calamidade pública federal vigente até 31 de dezembro de 2.020.
No entanto, o que mais chama a atenção nos dois decretos supracitados são os artigos 7º do Decreto nº 10.422/20 e 6º do Decreto nº 10.470/20 que condicionam o pagamento do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda – BEPER e do Benefício Emergencial do empregado intermitente às disponibilidades orçamentárias. Tal condição, referente à disponibilidade orçamentária, não está prevista na Lei nº 14.020/20 para fins de concessão dos benefícios governamentais, sendo os decretos, neste ponto específico, de duvidosa legalidade.
Nesse sentido, é importante dizer que o Poder Executivo, ao editar decretos prorrogando os prazos de redução proporcional de jornada e de salário e de suspensão dos contratos de trabalho, já deveria ter em conta as disponibilidades orçamentárias para o pagamento dos benefícios correlatos, pagamento que é condição fundamental para a implementação das medidas emergenciais. Ressalte-se que se não houvesse previsão orçamentária para o pagamento do BEPER ou do benefício emergencial do empregado intermitente, não haveria razão para que o Poder Executivo prorrogasse os prazos das medidas emergenciais via decretos.
Diga-se ainda que a Lei nº 14.020/20 em nenhum momento permite o denominado “lay off”, individual ou coletivo, sem qualquer tipo de contrapartida do empregador ou do Governo Federal. Ressalvadas as situações de determinados empregados que já ocupam funções públicas e que recebem determinados benefícios governamentais (artigo 6º, § 2º, da Lei 14.020/20), nenhum obreiro pode ver o seu salário reduzido ou o seu contrato suspenso sem a devida contrapartida em forma de benefício oriundo do Ministério da Economia que garanta o seu mínimo existencial. Qualquer interpretação em tal sentido viola o espírito da Lei nº 14.020/20, fugindo à legalidade.
Ainda é importante pensar na seguinte situação hipotética: como ficaria a situação do empregador que, acordando de maneira individual ou por norma coletiva as medidas de redução proporcional de jornada de trabalho e de salário e/ou suspensão dos contratos de trabalho de seus empregados, e que, após informar a adoção das medidas ao Ministério da Economia, nos moldes previstos nos §§ 2º e 4º do artigo 5º da lei 14.020/20, recebesse uma decisão administrativa de indeferimento/negativa de concessão do pagamento do BEPER sob a justificativa de ausência de disponibilidade orçamentária?
Se a Lei nº 14.020/20 não permite, via de regra, qualquer “lay off” sem renda ou nem mesmo a redução proporcional de jornada e de salário sem qualquer contrapartida governamental, não sendo deferido o pagamento do benefício governamental pelo Ministério da Economia, a única solução lógica que vem à mente é que a medida emergencial adotada pelo empregador restará sem efeito. Restando a medida sem efeito, infelizmente, não restará outra solução ao empregador que não a semelhante à prevista no artigo 5º, § 3º, I, da Lei nº 14.020/20, qual seja, o pagamento da remuneração no valor anterior à redução da jornada de trabalho e do salário ou à suspensão temporária do contrato de trabalho do empregado, inclusive dos respectivos encargos sociais e trabalhistas. É uma solução que não se deseja que ocorra, mas é a única que é estritamente jurídica frente ao princípio da proteção ao trabalhador (artigo 7º, caput, da CF/88) e, principalmente, do mandamento de que os riscos da atividade econômica são do empregador, não podendo ser transferidos ao empregado (artigo 2º, caput, da CLT).
No entanto, caso essa situação indesejável ocorra com o empregador, em razão da duvidosa legalidade dos artigos 7º do Decreto nº 10.422/20 e 6º do Decreto nº 10.470/20, após ser surpreendido com a negativa do Ministério da Economia em realizar o pagamento do benefício governamental por indisponibilidade orçamentária e, via de consequência, ver tornadas sem efeito as medidas emergenciais anteriormente adotadas, entende-se que o empreendedor pode acionar a União, no âmbito da Justiça Federal, para se ressarcir dos prejuízos que forem devidamente comprovados. E a razão dessa conclusão é muito simples: o Poder Executivo Federal, ao editar os decretos acima citados, já deveria ter em conta as disponibilidades orçamentárias para suportar o pagamento dos benefícios governamentais.
Ora, se não existisse a referida previsão orçamentária, o Poder Executivo não deveria ter prorrogado, via decreto, os prazos de adoção das medidas emergenciais, criando falsas expectativas às partes componentes do vínculo empregatício. Tendo prorrogado os prazos de adoção das medidas, não pode simplesmente lavar as suas mãos sob a alegação de indisponibilidade orçamentária.
Notas e Referências
[1] BRASIL. Medida Provisória nº 927, de 22 de março de 2.020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Mpv/mpv927.htm> Acesso em: 28 ago. 2020.
[2] BRASIL. Medida Provisória nº 936, de 1º de abril de 2.020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/mpv/mpv936.htm > Acesso em: 28 ago. 2020.
[3] BRASIL. Lei nº 14.020, de 06 de julho de 2.020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/L14020.htm > Acesso em: 28 ago. 2020.
[4] BRASIL. Decreto nº 10.422, de 13 de julho de 2.020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/d10422.htm> Acesso em: 28 ago. 2020.
[5] BRASIL. Decreto nº 10.470, de 24 de agosto de 2.020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/d10422.htm> Acesso em: 28 ago. 2020.
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