Os Abutres

09/01/2016

Por Leonardo Isaac Yarochewsky - 09/01/2016

“Em Assunção no Paraguai, morreu a tia mais querida Nicolás Escobar. Morreu serenamente, em casa, enquanto dormia. Quando soube que perdera a tia, Nicolás tinha seis anos de idade e milhares de horas de televisão. E perguntou:

- Quem a matou?”

Eduardo Galeano – “De pernas pro ar...”

“O Abutre” (2014) é um filme do diretor DAN GILROY e que tem como ator principal JAKE GYLLENHAAL no papel do usurário e ganancioso jovem Louis Bloom. Diante das dificuldades para encontrar um emprego formal o jovem Louis Bloom decide entrar no submundo do jornalismo criminal independente de Los Angeles. Deste modo, Bloom passa a correr atrás de cenas chocantes de crimes e acidentes violentos, onde quanto mais sanguinolento melhor, para registrar e filmar tudo e, posteriormente, vender para veículos interessados. Bloom passa praticamente a vender todos os seus filmes para um determinado Canal de TV que via sua audiência desabando. Apesar de um ou dois questionamentos éticos, o Canal de TV passa a exibir e transmitir as imagens e as cenas violentas, cruas e sanguinárias fazendo com que este comece a recuperar a audiência perdida.

Não é de hoje que a exibição e reprodução da violência, em uma relação sadomasoquista, envolvem a mídia e a sociedade. Também não é de agora que a mídia manipula fatos numa busca desenfreada, sem ética e sem escrúpulo, para aumentar a audiência. Muitos jornalistas atuam como verdadeiros “Abutres” na caça de matérias que poderão lhe render créditos, aumentar a venda de jornais, a audiência das emissoras de TV e das estações de rádio. Nesta caçada vale tudo, a verdade é marginalizada. O sensacionalismo é uma das armas preferidas dos “Abutres”. MARCONDES FILHO escreve que “escândalos, sexo e sangue compõem o conteúdo dessa imprensa (...) como as mercadorias em geral, interessa ao jornalista de um veículo sensacionalista o lado aparente, externo, atraente do fato. Sua essência, seu sentido, sua motivação ou sua história estão fora de qualquer cogitação”. [1]

O meio de comunicação sensacionalista se assemelha a um neurótico obsessivo, um ego que deseja dar vazão a múltiplas ações transgressoras – que busca satisfação no fetichismo, voyeurismo, sadomasoquismo, coprofilia, incesto, pedofilia, necrofilia – ao mesmo tempo em que é reprimido por um superego cruel e implacável. É nesse pêndulo (transgressão-punição) que o sensacionalismo se apoia. A mensagem sensacionalista é, ao mesmo tempo, imoral-moralista e não limita com rigor o domínio da realidade e da representação. Nessa soma de ambiguidades se revela um agir dividido, esquizofrênico”. [2]

Os “Abutres” se alimentam do medo que eles próprios criam, além de sedentos de sangue, de morte e hoje, também, de prisão, como parte do chamado “Processo penal do espetáculo” [3] ou de um “Populismo penal midiático”. [4]

No “Processo Penal do Espetáculo” as prisões e as condenações às penas elevadas são anunciadas pelos “Abutres” com júbilo e satisfação, enquanto concessões de habeas corpus e as absolvições que devolvem a liberdade aos acusados são noticiadas com certo espanto, desapontamento e frustração.

Com toda propriedade, RUBENS CASARA observa que “O fascínio pelo crime, em um jogo de repulsa e identificação, a fé nas penas, apresentadas como remédio para os mais variados problemas sociais (por mais que todas as pesquisas sérias sobre o tema apontem para a ineficácia da ‘pena’ na prevenção dos delitos e na ressocialização de criminosos), somados a um certo sadismo (na medida em que aplicar uma ‘pena’ é, em apertada síntese, impor um sofrimento) fazem do julgamento penal um objeto privilegiado de entretenimento”. [5]

Em relação promiscua com autoridades os “Abutres” chegam ao local do crime, muitas vezes, antes mesmo da polícia. Nas operações espetaculosas e midiáticas conduzidas pelas Forças Tarefas os “Abutres” não deixam escapar nenhum detalhe. Fazem questão, em flagrante violação de direitos e garantias, de filmar, fotografar e gravar todos os passos dos conduzidos. Alguns, inutilmente, tentam se esconder, mas são alcançados e exibidos pelos “Abutres” como troféus depois da caçada vitoriosa.

Tudo é feito em nome da “Sociedade do Espetáculo”, da qual se refere GUY DEBORD[6]. De acordo com o DEBORD, “Considerado em sua totalidade, o espetáculo é ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente. Não é um suplemento do mundo real, uma decoração que lhe é acrescentada. É o âmago do irrealismo da sociedade real. Sob todas as suas formas particulares – informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto de divertimentos -, o espetáculo constitui o modelo atual de vida dominante na sociedade (...)”. [7]

Não resta dúvida de que a violência, em todas as suas formas, também faz parte do espetáculo. Já foi dito alhures que a morte como espetáculo interessa a todos. Não é sem razão que emissoras de televisão tem apostado em programações que usam e abusam de imagens sanguinárias. Alguns tabloides se especializaram em narrativas de violência e crimes. Na lógica dos “Abutres” a foto mais espetacular e com mais chance de ilustrar a primeira será aquela que mais “jorrar sangue”.

Como bem observou GILBERTO DUPAS[8], “Submetida à tirania da audiência, a mídia eletrônica moderna é especializada em violência, frenesi, contextos macabros e serial killers. Ainda, de acordo com DUPAS, “A sociedade moderna pode acabar pagando caro por certas incoerências e hipocrisias. A globalização da mídia eletrônica tem espalhado os apelos e os ícones da sociedade de consumo por centenas de milhões de pessoas. A propaganda sedutora de TV, o programa de auditório das tardes de domingo e o filme da moda invadem dos lares miseráveis às enormes mansões, despejando valores e padrões de comportamento. E as consequências têm sido graves”. [9]

Dentre as incoerências e hipocrisias da sociedade, revela-se o fato de que ao mesmo tempo em que por meio da televisão há uma glamorização da violência através de filmes, seriados, novelas etc. - dirigidos, inclusive, às crianças e aos adolescentes – apregoa-se penas mais severas e o aumento da criminalização.

De igual modo, o medo é produzido e disseminado pela mídia para que posteriormente seja justificada uma política de segurança seletiva e repressora.

Os perigos dos quais se tem medo, de acordo com BAUMAN, podem ser de três tipos: “Alguns ameaçam o corpo e as propriedades. Outros são de natureza mais geral e ameaçam a ordem social e a confiabilidade nela, da qual se depende a segurança e o sustento (renda, emprego) ou mesmo da sobrevivência no caso de invalidez ou velhice. Depois vêm os perigos que ameaçam o lugar da pessoa no mundo – a posição hierárquica social e identidade (de classe, de gênero, étnica, religiosa) e, de modo mais geral, a imunidade à degradação e à exclusão sociais”. [10]

Os “Abutres” sabem muito bem trabalhar com o medo e difundi-lo. Neste sentido, VERA MALAGUTI BATISTA[11] observa que: “No Brasil, a difusão do medo do caos e da desordem tem sempre servido para detonar estratégias de neutralização e disciplinamento planejado do povo brasileiro. Sociedades rigidamente hierarquizadas precisam do cerimonial da morte como espetáculo de lei e ordem. O medo é a porta de entrada para políticas genocidas de controle social”.

Isto tudo leva ao círculo vicioso: medo → criminalização→ repressão → violência→ medo...

NILO BATISTA[12] ressalta que os enunciados secundários do discurso criminológico da mídia, tais como, “a impunidade aumenta o número de crimes”; “nas drogas é como uma escada passa-se das mais leves para as mais pesadas”; “pena elevadas dissuadem” etc. são completamente indemonstráveis, pois “não alcançariam jamais constatação empírica”.

No discurso criminológico midiático todo final de ano é divulgado em tom de preocupação, alerta e medo o número de presos que serão liberados para passar o fim de ano em casa com a família. Em quase a totalidade dos casos os presos estão no regime semiaberto e já fazem jus às saídas temporárias (art. 122 da LEP), mas continuam sendo apresentados como uma verdadeira ameaça para os chamados “homens e mulheres de bem”. Quando, lamentavelmente, um desses presos, por exemplo, comete um crime grave durante o período em que estava em “liberdade” à mídia fará disso - como já fez - uma bandeira para revogação das saídas temporárias.

O medo é a matéria-prima das prósperas indústrias de segurança particular e do controle social[13], observa EDUARDO GALEANO em sua obra “De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso”. Segundo um especialista em venda de segurança sua “melhor publicidade são os noticiários da televisão”.

A lógica midiática de incutir o medo para se chegar à neutralização do infrator como medida de controle social integra o que RAUL ZAFFARONI denomina de “criminologia midiática” [14] que tem como lema o seguinte: “quanto maior a repressão, menor a liberdade e maior a segurança”. Para ZAFFARONI, a “criminologia midiática” impulsiona uma política de controle que neutralize a “população excluída ou marginalizada, às custas do sacrifício de muitas vidas humanas”.[15]

Nesta lógica perversa de vincular o medo à política de repressão e de controle social a “criminologia midiática” tem nos juízes seu alvo preferido que “faz uma festa quando um ex-presidiário em liberdade provisória comete um delito”. [16] Os chamados “juízes brandos” são o obstáculo para uma luta eficaz contra os estereotipados – os que se desviam da normalidade controlada. [17] Não é sem razão que atualmente um juiz precisa ter muita coragem e independência para absolver ou mandar soltar um acusado. Já aqueles que se submetem ao discurso da “criminologia midiática” serão transformados em heróis, pelo menos enquanto atenderem aos interesses do populismo midiático.

Ressalte-se que essa manipulação do medo, bem como a amplificação da violência não é exclusiva da mídia sensacionalista e nem dos “Abutres”, mas se apresenta, hodiernamente, em todos os veículos de comunicação de massa. Ora de maneira escancarada, ora de modo velado.

BOURDIEU em aula “sobre a televisão” demonstra como a televisão pode “ocultar mostrando”. O sociólogo francês observa que: “Os jornalistas têm ‘óculos’ especiais a partir dos quais veem certas coisas e não outras; Eles o operam uma seleção e uma construção do que é selecionado”. [18]

Por fim, se de um lado a liberdade de imprensa é um valor caro à democracia e à sociedade, por outro lado não se pode permitir que a mídia e seus “Abutres” assumam o lugar dos três poderes da República. A mídia - considerada por muitos o quarto poder - vem cada vez mais tomando para si as atribuições próprias dos outros poderes. Verifica-se, assim, que a mídia vem “legislando” em matéria penal e processual penal; vem “elegendo” e “derrubando” políticos; vem influenciando os julgamentos, inclusive, do STF. Enfim, vem, sem pedir licença, entrando nas casas e manipulando vidas. Por tudo, é necessário que seja repensando o verdadeiro papel da mídia na sociedade contemporânea e na democracia.

Belo Horizonte, 07 de janeiro de 2016.


Notas e Referências:

[1] MARCONDES FILHO, Ciro. O Capital da Notícia. Apud ANGRIMANI SOBRINHO, Danilo. Espreme que sai sangue: um estudo do sensacionalismo na imprensa. São Paulo: Summus, 1995. www.wejconsultoria.com.br/site/wpcontent/uploads/2013/04/Danilo-Angrimani-Sobrinho-Espreme-que-sai-sangue.pdf

[2] ANGRIMANI SOBRINHO, Danilo. Espreme que sai sangue: um estudo do sensacionalismo na imprensa. São Paulo: Summus,1995.

[3] Sobre o “Processo Penal do Espetáculo” ver: CASARA, Rubens R. R. Processo penal do espetáculo: Ensaios sobre o poder pena, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.

[4] GOMES, Luiz Flávio. e ALMEIDA, Débora de Souza de. Populismo penal midiático: caso mensalão, mídia dsruptiva e direito penal crítico. São Paulo: Saraiva, 2013.

[5] CASARA, Rubens R. R. Processo penal do espetáculo... Ob. cit.

[6] DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

[7] Idem.

[8] DUPAS, Gilberto. Desafios da sociedade contemporânea: reflexões de Gilberto Dupas. São Paulo: Editora Unesp, 2014.

[9] DUPAS, Gilberto. Ob. cit.

[10] BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

[11] MALAGUTI BATISTA, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

[12] BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, Ano 11 – nº 42 – Jan/mar de 2003.

[13]GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Trad. Sérgio Faraco. Porto Alegre: L&PM Editores, 2015.

[14]ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. coordenadores: Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini. São Paulo: Saraiva, 2012.

[15] Idem, Ibidem.

[16] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos. Ob. cit.

[17] Idem.

[18] BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Trad. Maria Lúcia Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.


Sem título-1

. Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista, Professor de Direito Penal da PUC Minas, Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP). . . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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