OS 45 ANOS DO TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA

08/07/2023

Coluna Por Supuesto

Ao tentar compreender as intenções do constituinte de 1988 quando organiza os elementos essenciais do Estado brasileiro, chama a atenção positivamente a leitura do parágrafo 4º do artigo 225. O dispositivo estabelece que “A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais”.

Poderia o constituinte escolher outras regiões, mas dentre todas as do imenso Brasil estas foram indicadas como patrimônio nacional, atribuindo incluso, um regime legal especial. Isso não significa que sejam as únicas a merecer tal atenção, mas certamente se observa uma vigilância redobrada, que sugere que por sobre elas existe uma proteção singular e específica, que está sem dúvida vinculada, pela interpretação sistemática da Carta, ao sentido político e jurídico de soberania, aos interesses estratégicos nos campos econômico, energético, ambiental e militar, além de outros aos quais se dirige a ação brasileira.  

Lembrei deste artigo ao receber o honroso convite para participar em Brasília da comemoração dos 45 anos da assinatura do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA). O evento, realizado na sede da OTCA, a organização do Tratado, surgida em 1998, contou com a destacada presença da Ministra do Meio Ambiente Marina Silva e do Embaixador Rubens Ricupero.

O Embaixador encantou com a sua fala, própria de quem viveu as dificuldades diplomáticas que ocasiona a negociação de um tratado de tamanha importância. Ofereceu um panorama histórico sobre as conversações previas à assinatura do tratado e sua vigência até o momento. A Ministra Marina, a seu turno, expôs amplamente a visão governamental em torno ao tema da preservação da Amazônia e o desenvolvimento sustentável, sobre os programas em curso assim como aqueles que podem e devem ser executados em parceria com outros Estados da região. 

Do TCA fazem parte os Estados de Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela. No terreno da integração da América do Sul, o TCA complementa o compromisso de proteção e cooperação, a partir do domínio territorial e exercício da soberania, que também se assume com o Tratado da Bacia do Prata (TBP) assinado em 1969, e do qual participam, além do Brasil, a Argentina, Bolívia, Paraguai e o Uruguai. Destarte, ficam salvaguardadas, nos termos dos respectivos tratados, as duas bacias hidrográficas mais importantes de América do Sul. 

Vale a pena lembrar, em consonância com as intenções dos tratados, que o artigo 3º da CF de 1988 foi interpretado em seu momento pelo próprio STF na ADI 3540, relatada pelo Min. Celso de Mello, em particular para conectar o desenvolvimento nacional ao princípio do desenvolvimento sustentável e aos compromissos internacionais emanados de tratados como o TCA e o TBP.  Diz a ementa: 

“A questão do desenvolvimento nacional (CF, art. 3º, II) e a necessidade de preservação da integridade do meio ambiente (CF, art. 225): O princípio do desenvolvimento sustentável como fator de obtenção do justo equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia. O princípio do desenvolvimento sustentável, além de impregnado de caráter eminentemente constitucional, encontra suporte legitimador em compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro e representa fator de obtenção do justo equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia, subordinada, no entanto, a invocação desse postulado, quando ocorrente situação de conflito entre valores constitucionais relevantes, a uma condição inafastável, cuja observância não comprometa nem esvazie o conteúdo essencial de um dos mais significativos direitos fundamentais: o direito à preservação do meio ambiente, que traduz bem de uso comum da generalidade das pessoas, a ser resguardado em favor das presentes e futuras gerações” [1]

Focando no TCA, que foi assinado em 1978 e introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto 85050 de 1980, vale a pena destacar elementos dos seus desideratos. Algumas das suas virtudes já foram ressaltadas nos terrenos da intenção política e da tecnicidade jurídica. Por exemplo, deve-se ressaltar que tanto o desenvolvimento social e econômico da região amazônica, bem como a preservação do meio ambiente são consideradas responsabilidades inerentes ao atributo da soberania territorial de cada um dos Estados; em segundo lugar, que o fato de compartilharem a Amazonia como área de vital importância para o planeta impõe uma responsabilidade que extrapola o continente. O fato provoca, necessariamente, a realização de esforços conjuntos para a integração, como processo dinâmico fundado na solidariedade, é dizer, na análise de prioridades, no intercâmbio de experiencias e o investimento conjunto para potencializar os recursos de maneira a reverter esse esforço coletivo no bem-estar dos habitantes da região.

Há duas questões que devem se adicionar e que, inclusive, fazem parte da apresentação da OTCA em redes e plataformas. A primeira, que o TCA de 1978 desenvolve a tese da necessidade do equilíbrio entre ecologia e desenvolvimento, proclamada na Conferência da ONU sobre Meio Ambiente de 1972. A segunda, que o TCA se antecipa aos postulados do Relatório Brüntland, que em 1987 sob a premissa e o título “Nosso Futuro Comum” foi divulgado pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da ONU e que trouxe a ideia de “desenvolvimento sustentável”.  

Convêm consignar, como referência importante, que o Relatório manifesta sem ambages que o desenvolvimento sustentável é aquele que: (...) atende às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de atenderem as suas próprias necessidades" e deve ser entendido como um “ (...) processo de transformação no qual a exploração dos recursos, a direção dos investimentos, a orientação do desenvolvimento tecnológico e a mudança institucional se harmonizam e reforçam o potencial presente e futuro, a fim de atender as necessidades e aspirações humanas.

A OTCA – a Organização do TCA, nasceu em 1998 e desenvolve projetos que merecem ser talvez mais divulgados e conhecidos pelas sociedades de América Latina e Caribe de maneira geral, porque abrem possibilidades para uma gestão pública mancomunada em várias áreas. Assim, por exemplo, é preciso avançar mais na participação do Observatório Regional Amazônico – ORA – que serve de referente para propiciar o fluxo de informações entre governos, as instituições não governamentais, a comunidade científica, a academia e a sociedade civil dos países amazônicos, contando com indicadores conforme os temas que fazem parte da Agenda Estratégica de Cooperação Amazônica (AECA). 

O Brasil encabeça um processo de integração latino-americana e caribenha, que tem como fundamento a comunidade de nações estampada no parágrafo único do artigo 4º da Carta de 1988. A integração constitucional é uma integração que rejeita qualquer tentativa de militarização da área por parte de potências da que Samuel Pinheiro Guimarães chama a “estrutura hegemônica de poder” que define rumos nas relações internacionais. Portanto, América Latina e Caribe devem ser zonas de paz, desmilitarizadas, isto é, sem a presença de bases militares de Estados considerados potências dominantes extrarregionais.

A integração implica soluções políticas para eventuais controvérsias e o intercambio regional de produtos, intensificando o comércio entre os países. Igualmente supõe o exame de formas de atender às necessidades da população mais vulnerável para avançar contra a pobreza e a desigualdade.

Os recursos amazônicos são imensos, as potencialidades inúmeras, as possibilidades gigantescas, se houver diálogo, cooperação, internacionalismo e solidariedade é possível criar condições de desenvolvimento regional que consolidem um bloco capaz de enfrentar os desafios impostos por agentes internacionais, transnacionais e Estados que enxergam a região como exclusivamente provedora de matérias primas e que empreendem formas de exploração baseadas no extrativismo e o descaso com as populações. Ao final, os povos de América Latina e Caribe, e especialmente os povos da Amazônia, tem todo o direito de exigir e efetivar direitos, para superar o abandono e avançar a novas formas de justiça social. Por supuesto.

 

Notas e referências

[1] ADI 3540 mc Rel. Min. Celso de Mello. DJ. 3-2-2006.

 

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