Por Atahualpa Fernandez - 23/03/2015
“…soñar con tu libertad me hizo soñar con la mía. Y tuve esperanza por ti y por mí. Seguí adelante, tumbando muros [...] peleando con los míos y contra los míos para recuperar tu dignidad robada, mi dignidad al fin”.
P. Mendoza
O Brasil se encontra – e sobre isso parece que há certo consenso - em um estado deplorável. Não se trata de nenhuma novidade. Basta com mirar atrás para dar-se conta de que já faz algum tempo que a situação é funesta e que, apesar de todos os esforços e discursos oficiais para tentar maquiar a realidade, não vivemos “no melhor de todos os mundos possíveis”. O pesado fardo de desditas, mentiras, corrupções e misérias que os brasileiros vêm suportando, já seja como indivíduos ou como membros da sociedade organizada, é o resultado do modo extremadamente estúpido de como vem sendo governado o País.
O surpreendente, o realmente surpreendente, é o fato de que alguns cidadãos deixaram de ser "passivamente injustos". Somos passivamente injustos quando não nos indignamos, quando não informamos de delitos, quando miramos deliberadamente para o outro lado ante a desonestidade e o enriquecimento injusto, quando toleramos a corrupção, a impunidade e o poder devastador e destrutor da ignorância política, ou bem aceitamos, com gesto bovino, leis e governantes a sabendas de que são injustos, torpes e/ou oportunistas (J. Shklar).
Parece que estamos experimentando o fim da sadomasoquista indiferença ao mal e da insofrível renúncia à indignação, do turvo mundo de insolvência moral e alienação, de interesses e dominações, cumplicidades múltiples e ganâncias colaterais, impotências aprendidas e insensibilidades voluntárias. A indignação cívica se fez ato «e habitou entre nós», gerando e dando lugar a um sobressalto em grande escala. Já entendemos que a pobreza, a ignorância, a decadência do sistema de ensino, a degradação da saúde pública e as desigualdades sociais não são meros acidentes ou males em si mesmos, senão uma consequência direta da injustificável e alarmante degradação da «res publica à res privata».
Já assumimos o quanto nos custa de dignidade a dimensão real das cifras de escândalos sobre corrupção que quase diariamente assolam o País e/ou do perigo que representa para uma democracia quando um regime tendencialmente autoritário e manifestamente populista pretende ocupar todos os espaços e obriga o Judiciário e o Legislativo a sujeitarem-se aos caprichos do Executivo. Já não descuidamos da «eterna vigilância cidadã» (republicana), que trata de evitar que o comportamento pervertido por parte dos mais astutos rompa os vínculos da igualdade cidadã e rebaixe as concepções da justiça e da ética a uma banalização do uso do poder ou ao serviço de espúrios e injustificados interesses egoístas. Já não buscamos consolo na patológica tentativa de purificação institucional e social provocada pela crescente idiotização da cobertura mediática sobre a reconfortante crença de que a gente geralmente tem o que merece e que deve aprender a viver com o que tem. Já não falhamos como cidadãos.
Se a democracia significa algo moralmente, tal significado será que importam as vidas de todos os cidadãos e que o sentido que têm de seus direitos deve prevalecer. Por isso é essencial denunciar a desfaçatez do governo e a apatia política de que todos somos vítimas, esse tipo de prática que debilita tanto as bases da vida social comunitária como a eficácia mesma da liberdade. Toda essa indignação coletiva que estamos vendo tem a virtude de recordar-nos que a responsabilidade pelo bem- estar da democracia depende do compromisso dos cidadãos por clamar e lutar contra a generalização das assimetrias, a anarquia moral e a pavorosa orgia de corrupção e impunidade de um governo que trata a realidade como se fora um capítulo mais de “Game of Thrones”.
Em um Estado republicano, democrático e constitucional, em que se supõe que as autoridades são responsáveis e devem render contas aos cidadãos, toda e qualquer manifestação de indignação e revolta comunitária, por “insignificante” e contingente que pareça, é algo bom em si mesmo, uma contribuição ao bem público, na medida em que exige que a atuação dos governantes e políticos seja menos incoerente, arrogante e errática agora e no futuro. Somente se expressamos com veemência nosso sentimento de injustiça e nos comprometemos em sua defesa deixaremos de habitar em “um mundo de sombras”.
A sociedade despertou da letargia do desinteresse e, com irresignação e “fúria justa”, iniciou um legítimo movimento popular contra a atual e epidêmica pornografia moral e política, cuja única finalidade é a de sumir a massa na ignorância, na impotência, na desigualdade e na pobreza mais profunda. Um tipo de rebeldia e intolerância contra esses monstros talhados pelas circunstâncias de um Estado que não se cansa de tolerar, incentivar e proteger o desbarate egoísta e malicioso da usurpação pessoal dos recursos públicos.
O grito popular de resistir ao inaceitável, de não fazer concessões ao absurdo, principalmente ante a evidência de que os atuais governantes têm uma acentuada admiração pela moralmente repugnante “cacocracia” (pelo poder dos maus, dos piores, um estranho tipo de situação em que há uma muito difundida predileção por um tipo de comportamento medíocre e de inércia cúmplice que vai “contra nuestros intereses a largo plazo y contra la paz a corto y medio plazo” - S. Hessel), é a legítima demonstração de que já não tem nenhum sentido evadir-se da responsabilidade política por meio de um esquizofrênico evangelho de desesperação e negação da relevância dos fatos ou de qualquer “agenda de mais diálogo” com a sociedade. Nada, exceto o mais sombrio e lúgubre cinismo, justifica esse tipo de aporte ao infinito catálogo das loucuras do governo de turno.
Ademais, em minha opinião, o que hoje não falta é diálogo, senão que sobra; e tão pouco há carência de espírito pacífico e festivo, senão escassez de manifestações e conflitos como Deus manda, porque, diante da desmedida proliferação de insegurança, abusos e corrupções, a verdadeira violência «es quedarse en casa viendo la televisión mientras fuera se cometen injusticias» (B. Dohrn e B. Ayers). Todo discurso (ou episódicas manifestações “uterinas”) que se use para camuflar e/ou manipular os problemas de fundo que atravessa o País é parte do problema, e não parte da solução. Já não há mais tempo e nem motivos para este tipo de comportamento: as evasivas retóricas da atração, a inação e a desídia como modelos de funcionamento já constituem um problema crônico que deveria fazer reflexionar vivamente sobre o ponto de estancamento a que chegou o Estado.
Aborrecida de ver diariamente dilapidado seus direitos e garantias constitucionais, a gente aprendeu a levantar-se, a rebelar-se contra a insuportável sensação de normalidade vendida por um governo moralmente corrupto. Aprendeu que lutar contra toda e qualquer forma de prática política perigosa. Aprendeu que existem explosões que não são terroristas, como as explosões de indignação (C. Malabou). Aprendeu a gritar aos governantes que se governa por meio da participação integral e compromisso ético, e que a ausência de seriedade e honradez por detrás de toda atuação administrativa condena qualquer tipo de Estado à ruína. Aprendeu que os governantes não são os donos do País e nem representantes exclusivos de uma minoria de “bem aventurados”.
Assim as coisas, perguntar-se o que fazer com toda essa indignação é, em boa medida, considerar a possibilidade de continuar a dizer não a um tipo de cultura política deplorável, de dissimulação e de exploração que parece só saber bazofiar de nosso sentimento de injustiça, apontar soluções ineficazes e consagrar o reino de indivíduos obedientes e passivos que não tem mais mérito que saber baixar a cabeça, conformar-se e voltar a preparar-se para outro grande “evento desportivo”. É, depois de tudo, adotar a célebre exclamação de Lutero: “Não posso mais, aqui me detenho!”.
Somente baixo esta perspectiva de indignação ativa poderá a sociedade reinventar o Estado brasileiro como uma instituição preocupada com a cidadania, a moralidade pública, a liberdade e a igualdade social, não somente controlando toda a desregrada maquinaria estatal, senão também, e sobretudo, alertando aos que estão governando de que não é insignificante ou “sem sentido” o que está sucedendo, que não se tolerará mais, nunca mais, transigir com seus direitos e esperanças, que não se consentirá mais, nunca mais, a crueldade política e a humilhação moral, que não se admitirá mais, nunca mais, as fontes públicas que fazem perigar a integridade e a dignidade cidadã.
Enfim, reafirmando e assegurando a capacidade de comover-se ante a indecência democrática e de rebelar-se contra os estragos da contingência de converter-se “en presa de los hombres malvados, los cuales lo pueden manejar con plena seguridad, viendo que la totalidad de los hombres prefiere soportar sus opresiones que vengarse de ellas.”(Maquiavelo).
Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España
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