Operadores do Direito – realmente humanos? A necessidade de uma formação humanística

28/05/2016

Por Danielle Mariel Heil – 28/05/2016

Ayres Britto esclarece que a Constituição, por mais humanista que seja, sempre dependerá da atuação dos seus humanos aplicadores.[1]

Michel Villey destaca que no direito natural, há Estados, e principalmente chefes, cuja função é dar forma às regras de direito.[2]

No sistema jurídico brasileiro, portanto, podemos afirmar que há vários “chefes do Direito”, tais como os advogados, juízes, promotores públicos, procuradores, defensores, ministros das cortes superiores, entre outros, considerados muitas vezes grandes intelectuais da aplicação do Direito.

Com esse raciocínio, poderia se afirmar que sem os operados do Direito, não há Direito. E sem o Direito, não há justiça.

No entanto, não basta apenas ser operador do Direito, aplicar mecanicamente as normas aos casos em análise, muitas vezes ignorando fatores externos, culturais e a realidade local. É preciso ser “humano”, antes de se tornar um bom operador do Direito.

Nesse sentido, na concepção de Warat, citado por Rosa, Ferrareze Filho e Matzenbacher, os juristas contemporâneos, herdeiros do senso comum teórico, são indivíduos irrefletidos.[3]

Warat se refere ao termo “senso comum teórico” como um imaginário que através da verdade organiza a vida social e promove a infantilização dos atores sociais.

Diante disso, é possível verificar certa (de)formação dos juristas brasileiros, muitos em uma condição de meros reprodutores de conceitos e normas, ou seja, evidencia-se uma operacionalidade do Direito muitas vezes fora do contexto complexo e multicultural da nossa sociedade contemporânea.

O cerne da questão é que o jurista brasileiro reflete um sistema incorporado através de sua formação, através do “conhecimento” adquirido nos bancos acadêmicos, e em vários casos, desde a sua formação e aprovação no concurso, cessa de imediato seu aprimoramento nos “estudos jurídicos”, muito embora, é sabido que o Direito se mantém em constante evolução.

Nessa linha de raciocínio, bem exemplifica Rosa: “Os juízes, então, tornam-se ´juízes da moda`, ou seja: aqueles que decidem conforme a grife (STF ou STJ).”[4]

Sobre tal problemática, um alerta:

um juiz pode tomar uma decisão (ou um advogado redigir uma petição, um promotor fazer alegações pelo Ministério Público e etc.) sem fazer a mínima ideia daquilo sobre o que está falando. Posto o problema, ele vai ao computador ou ao Código comentado e busca uma ementa ou verbete jurisprudencial que lhe pareça adequado ao que tem diante de si”.[5]

Streck sustenta que há uma banalização do Direito e simplificação do conhecimento jurídico, sendo que uma das causas dessa banalização é que no Brasil foram criadas inúmeras escolas de direito, especula-se, para além da capacidade e demanda existente.[6]

Importa registrar, que o Brasil possui mais faculdades de Direito que todos os países no mundo, juntos. Até o ano de 2010, existiam 1.240 cursos para a formação de advogados em território nacional enquanto no resto do planeta a soma chega a 1.100 universidades, conforme números informados pelo representante do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Conselho Nacional de Justiça (CNJ).[7]

O direito resumido virou produto, os concursos públicos viraram produto e as escolas de Direito e cursinhos, por sua vez, viraram meros (re)produtores de um ensino precário, e ouso ainda dizer, muitas vezes com ensino jurídico medíocre.

Muitos dos profissionais do Direito possuem uma visão estreitada do contexto social em que vivem, fundamentando suas escolhas e decisões com base em crenças e valores pré-concebidos.

Na visão de Rosa, Ferrareze Filho e Matzenbacher é de que os juristas, em geral, não percebem que suas constituições psíquicas determinam o modo como atuam no Direito.[8]

Assim, diante do contexto da formação dos estudantes de Direito, é possível verificar que o Direito vai na contramão da sabedoria.

Portanto, é tempo de abandonar os modelos tradicionais da dogmática jurídica, diante dos novos contextos da sociedade moderna. O Direito não pode ignorar e silenciar a todas estas transformações sociais e culturais, pelo contrário, tem o dever de aproximar os profissionais das novas configurações contemporâneas.

A Resolução nº. 75/2009 do Conselho Nacional de Justiça incluiu nos exames de ingresso da magistratura estadual e federal o tópico "noções gerais de direito e formação humanística", que aborda cinco áreas específicas: (i) sociologia do direito, (ii) psicologia judiciária, (iii) ética e estatuto jurídico da magistratura nacional, (iv) filosofia do direito, e (v) teoria geral do direito e da política.[9]

A resolução n. 75 do CNJ deixa bem clara a exigência da formação humanística dos estudantes e profissionais do Direito: “os currículos universitários já expressam essa preocupação, exigindo também professores com novos perfis. Se isso não bastasse, também está sendo incentivada a criação de escolas de magistrados pelas próprias instituições judiciárias.” [10]

Dallari defende a formação humanística dos estudantes de direito com conhecimento aprofundado sobre a história e a realidade das sociedades humanas, buscando a compreensão do direito e da justiça.[11]

A sociedade exige um critério ético para regular o Direito. Esse critério passa obrigatoriamente pela formação humanística dos operadores jurídicos, sendo, portanto, uma responsabilidade social dos concursos públicos a apropriada seleção de candidatos, com fundamento na idéia da formação ontológica e humanística.

O primeiro passo pelo Conselho Nacional de Justiça foi dado, e que dessa percepção de que é preciso realizar mudanças na formação dos operadores do Direito, venham mais métodos, iniciativas e propostas a serem implementadas nessa área, que ainda é tão precária.


Notas e Referências:

[1] BRITTO, Carlos Ayres. O humanismo como categoria constitucional. Ed. 1. Reimpl. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 107.

[2] VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Texto estabelecido, revisto e apresentado por Stéphane Rials; notas revistas por Eric Desmons; tradução Cláudia Berliner; revisão técnica Gildo Sá Leitão Rios. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 193.

[3] ROSA, Alexandre Morais da; FILHO, Paulo Ferrareze; MATZENBACHER, Alexandre. Estudos críticos de direito e psicologia / organizadores: Alexandre Morais da Rosa, Alexandre Matzenbacher, Paulo Ferrareze Filho. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 10.

[4] MORAIS DA ROSA, Alexandre Morais da. O hiato entre a Hermenêutica Filosófica e a Decisão Judicial. In Hermenêutica e Epistemologia. 50 anos de Verdade e Método. Orgs. Ernildo Stein e Lenio Streck. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011, p. 129.

[5] RAMIRES, Maurício. Crítica à aplicação de Precedentes no Direito Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 147.

[6] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011, p. 95-98.

[7] OAB, Conselho Federal. Brasil, sozinho, tem mais faculdades de Direito que todos os países. 14 de outubro de 2010. Disponível em: http://www.oab.org.br/noticia/20734/brasil-sozinho-tem-mais-faculdades-de-direito-que-todos-os-paises

[8] ROSA, Alexandre Morais da; FILHO, Paulo Ferrareze; MATZENBACHER, Alexandre. Estudos críticos de direito e psicologia / organizadores: Alexandre Morais da Rosa, Alexandre Matzenbacher, Paulo Ferrareze Filho. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 10.

[9] Resolução n.º 75, de 12 de Maio de 2009 do Conselho Nacional de Justiça. Dispõe sobre os concursos públicos para ingresso na carreira da magistratura em todos os ramos do Poder Judiciário nacional. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/atos-normativos?documento=100. No decorrer do artigo será utilizada a sigla CNJ, para referir-se ao Conselho Nacional de Justiça.

[10] ALEMÃO, Ivan da Costa; BARROSO; Márcia Regina C. O que se espera de um juiz? Revista Eletrônica Direito e Política, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da UNIVALI, Itajaí, v.8, n.1, 1º quadrimestre de 2013. Disponível em: www.univali.br/direitoepolitica - ISSN 1980-7791

[11] DALLARI, Dalmo de Abreu (1996). O Poder dos Juízes. São Paulo: Saraiva, p. 28.


Danielle Heil (1). Danielle Mariel Heil é advogada, especialista em Direito Constitucional pela Fundação Educacional Damásio de Jesus, em Direito Penal e Processual Penal pela Escola do Ministério Público de Santa Catarina e em Direito Ambiental pela Verbo Jurídico. Mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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