Olimpíadas de Tóquio: reflexões sobre acesso ao esporte para o público infantojuvenil num Brasil desigual

10/08/2021

 Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

Há cada quatro anos, o mundo é tomado pelo clima de torcida e empolgação diante dos jogos olímpicos, fazendo com que os mais variados esportes ganhem um status diferenciado mesmo para aquelas/es que não são atletas, sendo tal momento palco não só para grandes feitos físicos e de superação, mas também para que possamos olhar de forma crítica, a partir das práticas esportivas, o emaranhado formado pelos desafios, potencialidades, conflitos e contradições que estão postos na realidade.

Nomes como os de Rebeca Andrade (22 anos), de Rhayssa Leal (13 anos), de Ítalo Ferreira (27 anos) e de Alison dos Santos (21 anos), têm sido comemorados nos últimos dias em virtude de suas conquistas nas Olimpíadas de Tóquio e, em que pese serem praticantes de modalidades distintas (ginástica artística, skate, surf e atletismo, respectivamente), são atletas que guardam em comum o fato de serem filhas e filhos da classe trabalhadora brasileira, tendo iniciado ainda na infância (Rebeca, Rhayssa e Ítalo) e na adolescência (Alison) as práticas esportivas que lhes fazem hoje serem vistas/os como o orgulho da nação. Quatro histórias de vida cravejadas por dificuldades socioeconômicas, que têm a cara de um Brasil alicerçado em desigualdades estruturais, e com protagonistas que encontraram na solidariedade e esforço de suas famílias e comunidades, assim como em projetos sociais, o apoio para criar suas próprias oportunidades. Quatro histórias que emocionaram o país e que merecem ser celebradas, mas que, sem a devida leitura das mediações que constituem a realidade, guardam também, combinada à crença na falácia da meritocracia, a armadilha da romantização das adversidades enfrentadas pelos grupos subalternizados brasileiros.

É em meio a casos de excepcionalidade como esses, que a falta de condições objetivas de vida sofre um processo de apagamento, fazendo com que a ascensão individual de determinadas/os sujeitas/os, dilua a responsabilidade do Estado no que se refere à garantia de direitos, mais especificamente de um direito que, por vezes, é encarado como acessório, e não como fundamental: o esporte.

Manifesto na Constituição Federal brasileira como um direito social em seu art. 6, na forma de lazer, e tendo sua especificação no art. 217 do referido marco legal, o acesso ao desporto constitui-se importante elemento para a materialização da dignidade humana na medida em que contribui para o desenvolvimento de bem-estar social. Em consonância com isso, outra legislação a trazer o esporte como direito, é o Estatuto da Criança e do/a Adolescente, que aborda a referida dimensão associando-a ao direito à educação, à cultura e ao lazer, e estabelecendo que é responsabilidade do Estado a garantia de recursos e de espaços que viabilizem o acesso do público infantojuvenil ao seu pleno exercício.

De acordo com Sanches e Rubio (2011), os desdobramentos da prática esportiva para as/os sujeitas/os envolvem tanto impactos para a saúde em termos físicos e psicológicos, quanto para a esfera das relações interpessoais e das relações sociais que estão na base do funcionamento da sociedade, de forma que, a partir de seu exercício e com a condução e a estrutura adequadas, poderão ser construídos valores como tolerância, integração, solidariedade, cooperação, autonomia, participação e igualdade, ganhando destaque tal processo para o público infantojuvenil. Entretanto, apesar de, tanto no senso comum quanto no campo científico, haver um reconhecimento de sua essencialidade para a vida humana, o esporte como direito a ser assegurado com prioridade para crianças e adolescentes, ainda está distante de uma efetiva materialização.

Marcado por desigualdades características de um sistema que se estrutura, de forma coordenada, no racismo, no patriarcado (que também é cisheteronormativo) e no classismo (Cisne & Santos, 2018; Gonzalez, 2019), o Brasil, em que pese o potencial transformador que carrega a área em questão, pouco tem investido em políticas públicas voltadas para a mesma. Se presenciamos hoje um crescente sucateamento de serviços públicos básicos, à exemplo da saúde e da educação, a situação da efetivação do acesso ao esporte (seja recreativamente, seja profissionalmente), além de ser negligenciada, parece só ganhar visibilidade como uma problemática a ser encarada com seriedade quando os resultados olímpicos nos sensibilizam para a importância de se assegurar a infraestrutura, o acompanhamento profissional e os materiais necessários para as práticas esportivas.

Ao invés de condições ideais, crianças, adolescentes e jovens pertencentes a grupos populacionais subalternizados contam com a mínima, ou até mesmo nenhuma, rede de serviços e de apoio ao esporte em suas comunidades, sendo comuns os cenários de improviso, como no agora tão comentado exemplo do surfista Ítalo Ferreira, que iniciou no esporte usando uma tampa de isopor como prancha. Assim, descampados de areia que se tornam quadras, quadras esburacadas por falta de manutenção, e ausência de profissionais para desenvolver atividades esportivas nos serviços de educação e da Assistência Social, dentre outras precariedades, são uma constante numa realidade na qual se insiste no “sou brasileiro e não desisto nunca”.

Dentre os escassos investimentos no esporte brasileiro, encontramos o programa Bolsa Atleta, que beneficia individualmente atletas com 14 à 19 anos de idade, com 12 parcelas de um benefício que pode ser de R$ 370 (atleta de base e estudantil), R$ 925 (nacional), R$ 1.850 (internacional), R$ 3.100 (olímpico e paralímpico), e de R$ 5.000 à R$ 15.000 (pódio)[1]. Das últimas olimpíadas, no Rio de Janeiro, até os jogos de Tóquio, o programa teve uma redução de 17%, situação que se agravou no ano de 2020, que, em oposição as 6.651 bolsas concedidas em 2019, teve apenas 274 atletas novas/os beneficiadas/os, não tendo acontecido também abertura de novo edital em 2020, o que impediu, em 2021, que outras pessoas tivessem a oportunidade de concorrer à bolsa. Sobre o programa, em que pese sua importância para quem dele se beneficia, há de se refletir sobre algumas questões, como a disparidade entre os valores referentes à cada categoria das/os atletas e o que isso diz sobre a manutenção das desigualdades brasileiras.

Em tese, a bolsa serve para que atletas possam se dedicar com exclusividade à prática esportiva, e certamente as/os atletas de alto rendimento e que conquistam os melhores resultados conseguem efetivar isso – até porque são essas pessoas também beneficiadas com patrocínios do setor privado, como as empresas Nike e Adidas. Contudo, esse é um grupo reduzido de atletas, de forma que a grande maioria daquelas/es que recebem a bolsa se encontra na base da pirâmide social que compõe a dinâmica do mundo do esporte e que acaba reproduzindo a mesma lógica de funcionamento que encontramos na sociedade como um todo, destacando-se assim, mais uma vez, o desequilíbrio abissal da distribuição de renda no Brasil.

Desequilíbrio esse que se manifesta na forma de fome, de elevados índices de violência, de crise sanitária, de desemprego, de trabalho infantil, e de hiperencarceramento combinado à criminalização da juventude negra e periférica, dentre outros desdobramentos. Caberia ao esporte sozinho a tarefa de socorrer uma nação inteira de tal estado de barbárie? Certamente não, e colocá-lo numa perspectiva salvacionista assim poderia gerar ainda mais frustrações a um povo que já tem a vida calejada, desconsiderando ainda que essa mesma dinâmica atravessa também as práticas esportivas.

Contudo, havemos sim de incentivá-lo e de reconhecê-lo na sua potência como ferramenta que, junto a outras práticas coletivas dentro do escopo das lutas sociais, pode viabilizar a construção de uma real transformação social. Nesse sentido, é necessário que pautemos o direito ao esporte com o protagonismo devido, entendendo que a sua garantia diz respeito a um compromisso ético e político também com a garantia da vida, não se tratando apenas de investimentos que visam vitórias em tempos olímpicos e a superação de recordes, mas sim que tenham como horizonte a conquista da dignidade humana por meio do acesso coletivo ao esporte, especialmente para o público infantojuvenil.

Para o deputado carioca Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), que, em suas redes sociais, fez da vitória olímpica da adolescente Rhayssa Leal, um palanque para a defesa de uma alteração no ECA para que seja permitida a prática do trabalho infantil, gritemos que o lugar das nossas crianças e adolescentes é nas escolas, nas quadras, nas piscinas, nas praças, e em todos os demais espaços nos quais possam ter segurança, oportunidades de crescimento, e o direito de sonhar com dias melhores.

Com muito mais força, diante da necropolítica do governo brasileiro, lutemos por isso, para que possamos viver num país no qual nossas crianças, adolescentes e jovens possam escrever e contar histórias de vida cheias de beleza e emoção, mas não apesar das barreiras oriundas das desigualdades que estão postas, e sim por terem condições de vida que garantam o seu pleno desenvolvimento!

 

 

Notas e Referências

Brasil. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da República Federativa do Brasil Poder Executivo, 5 de outubro de 1988. Brasília-DF, Brasil.

Brasil. (1990). Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº. 8.069, de 13 de julho de 1990. Brasília-DF, Brasil.

Cisne, M. & Santos, S. M. M. (2018). Feminismo, diversidade sexual e serviço social. São Paulo: Cortez.

Gonzales, L. (2019). Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: H. B. de Hollanda (Org.). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto (pp. 237-258). Rio de Janeiro: Bazar do Tempo. (Texto original publicado em 1984).

Sanches, S. M. & Rubio, K. (2011). A prática esportiva como ferramenta educacional: trabalhando valores e a resiliência. São Paulo: Educação e Pesquisa, 37(4), 825-842.

 

[1] Essas e outras informações podem ser encontradas no site do Ministério da Cidadania do governo federal.

 

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