Por Andityas Soares de Moura Costa Matos – 10/11/2016
Ontem publiquei um artigo em que apresentei uma leitura das ocupações estudantis como formas de desobediência civil, esta entendida como um tipo de interpretação popular da Constituição. Algumas pessoas passaram então a me perguntar: será que essas ocupações são mesmo exemplos de desobediência civil? A desobediência civil não é passiva, uma abstenção, um deixar de fazer, enquanto as ocupações são ativas? As ocupações não seriam autoritárias por imporem sua maneira de pensar ao resto da sociedade?
Nessas perguntas há certa incompreensão e confusão sobre o que é desobediência civil. Não vou reescrever toda a história dessa ideia, mesmo porque ela é cheia de dissonâncias e diferenças conceituais que pouco importam agora no momento de perigo em que vivemos. Mas algumas coisas têm que ficar claras. A primeira delas é que a desobediência civil não se confunde com abstenção, passividade ou inação. Movimentos desobedientes podem até mesmo adotar abstenções – como Thoreau que deixou de pagar seus tributos ao governo ou alguns desobedientes espanhóis do movimento de insumisión que no final dos 80 se recusaram a prestar serviço militar obrigatório até que este foi abolido em 2001 –, mas isso é apenas uma das várias táticas da desobediência. Muitas vezes a desobediência civil se realiza com verdadeiras ações concretas, como são as ocupações estudantis e como foram a marcha do sal convocada por Gandhi e as reivindicações de políticas públicas igualitárias por parte de Martin Luther King. A desobediência civil corresponde a um NÃO dito aos poderes oficiais no que diz respeito a algumas normas e projetos políticos, como a PEC 55. A desobediência civil é um movimento reativo da sociedade contra o Estado, uma ação ou inação que pretende invalidar ou modificar alguma norma jurídica ou política pública. Por ser a expressão de uma recusa, alguns confundem a desobediência civil com simples abstenções que, como vimos, efetivamente podem encarnar atos de desobediência civil, mas nem por isso a resumem.
Por ser sempre reativa a uma política injusta já existente ou em vias de ser implantada, dificilmente poderíamos classificar a desobediência civil como autoritária por tentar impor certa maneira de pensar à sociedade. Ao contrário: o que os desobedientes civis querem é abrir o espaço do diálogo até então obstaculizado pelos poderes. Os desobedientes querem dizer que há outras soluções para os problemas que o governo pretende resolver de maneira indiscutida, rápida, emergencial e muitas vezes autoritária. Os desobedientes pretendem mostrar que há pontos de vista alternativos a serem ponderados, os quais não foram levados a sério até o momento.
Considero a desobediência civil como um ato – ou um conjunto de atos – coletivo, pública, não-violento e ilegal que questiona certa política ou norma jurídica de modo a demonstrar sua injustiça e assim obter sua revogação ou não-aplicação. Essa é a definição de desobediência civil de meu artigo anterior e nela cabem as ocupações estudantis. Agora me dirijo diretamente aos desobedientes civis das ocupações para conversar sobre essa definição. Não quero dar conselhos ou enquadrar teoricamente suas práticas, mas apenas debater as ideias que venho desenvolvendo com aqueles que as estão praticando:
1. A desobediência civil é coletiva. É preciso reafirmar isso em todas as oportunidades. A desobediência civil é um movimento social que questiona decisões políticas e jurídicas consideradas injustas. Por isso vocês, desobedientes civis, precisam se apresentar como uma comunidade – diferenciada, múltipla, aberta, plural, mas uma comunidade – que expressa certo projeto político. Não se trata da decisão isolada de alguém que, sozinho, decidiu heroicamente para alguns ou estupidamente para outros ocupar uma escola. Ao contrário, falamos de movimentos multitudinários e coletivos que ocuparam espontaneamente, sem lideranças nem partidos, mais de 1.200 escolas nos Brasis. Nesse contexto, a primeira coisa a fazer é não deixar que os outros julguem vocês. Para a grande mídia vocês são baderneiros, desocupados, adolescentes à-toa ou qualquer outra coisa do estilo. Aceitar esses rótulos significa já estar derrotado. Vocês são os únicos que podem dizer quem de fato são. Em cada oportunidade que tiverem – e também naquelas que vocês criarem – algo mais ou menos assim deve ser dito: “falamos por meio de várias vozes, somos diferentes, mas temos um projeto de vida comum. E não seremos calados. Estamos aqui exercendo um direito constitucional fundamental que só as ditaduras não reconhecem. Somos democráticos. A confusão que vocês veem é, na verdade, poder popular. Estamos aqui exercendo nosso direito de resistência contra a opressão, coisa que os franceses fizeram há mais de 200 anos e hoje é estudada monotonamente nos livros de História. Queremos tirar esse atraso no último país a abolir a escravidão. Estamos aqui com nossos rostos e nossos nomes, sem medo das listas do MEC. Estamos aqui pensando e fazendo. Estamos aqui como cidadãos. Estamos aqui como desobedientes civis. E merecemos respeito”.
2. A desobediência civil é pública. Muitos de nossos pais e professores perderam a noção do que isso significa. Vocês aí, acossados por bombas e ordens judiciais, sabem muito bem o que é estar exposto à violência, ir contra os padrões da casa, construir uma vida outra para além do quintal. Melhor: a diferença entre o público e o privado se reflete na distância entre o quarto e a praça. No quarto estamos bem acomodados e dorminhocos, mas só na praça fazemos amigos. A ocupação não é uma acumulação de quartos formando um hotel, mas praças comuns abertas ao mundo. Vocês acharam uma forma outra de estar nele, no mundo. Agora precisam espalhar essa novidade. Façam blogs, sites, grupos de whatsapp, remetam petições diárias aos poderes explicando o que estão fazendo e porque estão fazendo, enviem pombos-correios e não se esqueçam dos sinais de fumaça – entupam o facebook a cada segundo com as suas verdades. Montem centrais de notícias e as distribuam como der. Fotografem e filmem suas rotinas. Digam por que estão aí nessas barracas e não em seus quartos, expliquem que a ocupação não é só uma revolta hormonal necessária para vocês virarem adultos produtivos e trabalhadores. Façam todos saber que as 1.200 ocupações nos Brasis não são nosso maio de 68. São sim as 1.200 ocupações de um país em convulsão que os poderes querem exterminar na porrada. A exigência de publicidade é uma exigência ética. Dizer por que vocês estão fazendo tudo isso, que é o que os poderes não fazem, equivale a arrancar a crosta da ferida. Não se fechem. Digam a cada segundo: eu sou, eu fluo. Mais: criem os segundos para dizer do ser, da fluidez. Não sejam simplificados, não deixem que os simplifiquem. Falem sem parar, por todos os meios. E se comuniquem uns com os outros, criem redes de apoio e troca de experiências – isso exorciza o medo. Ocupem a existência.
3. A desobediência civil é não-violenta. Esse ponto é absolutamente central e inegociável. Não porque a violência seja algo em si mesmo mau. Quase todos os Estados se constituíram violentamente e muitas lutas de libertação precisaram em certo momento lançar mão da violência. Mas no caso da desobediência civil a violência é uma fraqueza. Só é violento, nesse contexto, quem não quer ou não consegue conversar. Os desobedientes expressam antes de tudo um desejo de abertura, de reavaliação de políticas públicas, de chamamento ao debate. E isso não se faz com pau, pedra e algema. Além do mais, caso vocês usem a violência, estarão se transformando exatamente naquilo que os poderes dizem que vocês são, legitimando que eles usem contra vocês uma intensa carga de violência legal e “legítima”. Nenhuma ocupação tem a menor chance de, com métodos violentos, vencer o Estado ou ser levada a sério pela opinião pública. Na verdade, se vocês usarem a violência, já terão perdido a luta. Em todos os sentidos. A não-violência do desobediente é tanto uma tática quanto uma ética; significa apelar ao que ainda há de pensante nas pessoas para que elas possam se questionar: por que esses meninos e meninas estão aí se arriscando a serem presos, a apanharem, a perder o ENEM e o ano letivo? Quando as pessoas começam a pensar as coisas ficam interessantes. E em um mundo afogado em violência, 1.200 escolas ocupadas de forma não-violenta dão o que pensar. O risco da não-violência que vocês correm é então o próprio risco do pensar, do criticar, de se colocar como garantia das suas verdades (sempre abertas, discutíveis, mutáveis... nunca divinas). Como notou o filósofo francês Michel Foucault no livro O governo de si e dos outros, na Grécia antiga havia uma figura que se parecia com vocês: o parresiasta, ou seja, alguém que se arriscava fisicamente para dizer o que pensava das coisas, tal como um escravo que discordava de seu senhor ou uma mulher que não aceitava as ordens do marido. O simples ato de falar contra o poder os punha em perigo, de maneira que o corpo vivo do parresiasta é a garantia da sua verdade. Na não-violência que vocês praticam, apesar das bombas que caem e da truculência dos poderes, está a garantia das verdades éticas que animam as ocupações.
4. A desobediência civil é ilegal. Essa frase pode chocar alguns, já que nos acostumaram a ter pela lei um respeito sagrado, como se fosse algo dado pelos céus. Não, não foi. A lei é apenas o resultado humano, imperfeito e precário dos jogos antagônicos de inúmeras forças políticas, econômicas e culturais. Quando a lei deixa de realizar o bem coletivo e passa a ser um instrumento de opressão, ela precisa ser questionada. Lei e direito não são a mesma coisa. A lei é apenas uma das formas do direito. Prova disso é que todas as leis devem se curvar a algo que não é lei. É muito mais: a Constituição. É isso que vocês devem responder aos que os chamam de baderneiros: estamos exercendo nosso direito democrático-constitucional à expressão, à opinião, à crítica, à reunião. A desobediência civil é sim ilegal, mas não é inconstitucional. Além do mais, não é criminosa. Por isso as ocupações desobedientes não são criminosas e seu objetivo não é a prática de crimes. Ilegalidade e crime são coisas diferentes e vocês não devem aceitar ser tradados como criminosos: denunciem todas as violências (policiais, midiáticas, institucionais etc.) que sofrerem, tragam à luz todas as violações de seus direitos constitucionais-democráticos, não permitam que os vejam como crianças rebeldes que merecem um castigo. Para além do legalismo frio que sempre justificou as opressões deste mundo, é preciso fazer como Jesus, que dizia não ter vindo anular a lei judaica, mas cumpri-la, ou seja, superá-la na medida que a excede. Para nós, o excesso, o transbordamento de toda lei humana tem um nome radical (de raiz mesmo!): democracia popular.
. . Andityas Soares de Moura Costa Matos é Doutor (UFMG) e Pós-Doutor (UB) em Direito. Professor de Filosofia do Direito da UFMG. vergiliopublius@hotmail.com . .
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